sexta-feira, 17 de dezembro de 2010
Corre, corre: vem chegando o Natal
Corre, corre,
Pro Menino nascer feliz...
Corre, corre
O espírito aprendiz...
A mãe faz faxina geral;
A avó, biscoitos de Natal.
O avô arruma o pinheiro
Trabalha, trabalha o dia inteiro.
A tia ralha com o menino:
- Olha só, escuta o sino!
Papai Noel está espiando.
Acho bom ir se comportando!
O pai monta o presépio, muito ocupado:
Manjedoura, vaquinhas, tudo com lugar marcado.
Entram os três reis magos em fila indiana:
Melquior, Baltazar e Gaspar trazem presentes bacanas.
Depois, Maria e José – e, para a sagrada família completar,.
No centro, o Menino Jesus vem a todos iluminar.
O guri queria que sempre fosse Natal
Cheiro de comida boa
Sua gente sorrindo à toa
Nem precisava presente
Já está todo contente.
Do Papai Noel, tem até pena...
Andar de trenó, puxado por rena
Aos solavancos, deve ser desconfortável!
E aquela roupa? Calor insuportável!
O Menino Jesus não iria querer
Fazer um pobre velhinho derreter!
- O Papai Noel merece um descanso!
Falou o guri, do seu jeito manso.
O Avô deu uma gargalhada.
A avó abafou uma risada.
- Esse garoto tem cada ideia mirabolante!
Falou a tia implicante.
A gente faz a festa de aniversário do Jesus Menino
Mas esquece de convidar o aniversariante
Só lembra do Papai Noel, com suas botas, presentes e sino.
O guri percebeu: algo estava errado...
Alguém ali estava muito enganado!
Festa de aniversário sem o aniversariante?
Roupa comprida com calor escaldante?
Foi procurar explicação.
Do avô, ouviu a lição:
Natal mesmo é no coração da gente
Amor é o maior presente
Essa é a mensagem do menino Jesus
Lembrada nessa noite de luz.
Presentes, bolas coloridas
Alegram, sim, nossas vidas
Mas o mais genial
É a verdadeira lição de Natal:
Todos pararam seus afazeres
Era a hora de ir além dos deveres.
Todos juntos cantando a velha canção
Que traz paz, alegria e amor ao coração.
Discurso da paraninfa - Fundação Evangélica - 16/12/10
Queridos formandos!
É com muita honra e emoção que coube a mim, em nome de seus professores, como paraninfa, dirigir as últimas palavras a todos vocês juntos pela última vez. Hoje é um dia de especial alegria pra vocês, assim como para seus familiares, amigos e professores. É o dia da formalização de uma passagem que significa a transição da vida adolescente para o mundo adulto, das responsabilidades em maior número e em maior intensidade.
Essa passagem, para seus professores e pais, parece que se deu de forma muito rápida. Parece que foi ontem que eu lhes estava dando as boas-vindas ao terceiro e melhor ano do Ensino Médio. Também para seus pais parece que faz tão pouco tempo que os levaram, pela mão, ao primeiro dia de aula.
Neste mundo adulto, esperamos que não se esqueçam desta escola, dos ensinamentos que aqui obtiveram, mas – principalmente – que não se esqueçam das lições paralelas que aqui tiveram, daquelas lições – vivenciadas, presenciadas, ouvidas – que falam não tanto à razão, mas ao coração e à sensibilidade.
No entanto, vocês não apenas levam ensinamentos desta escola: todos nós aprendemos – e muito – com todos vocês. As três excelentes turmas deste ano deixarão, cada uma a seu modo, muita saudade. Poderia compará-las ao estereótipo da família com três filhos. Nessa metáfora, a terceira A seria a irmã mais velha: responsável, exemplar. Marcou para sempre essa escola com sua eterna busca pela excelência: não se tratava apenas de obter notas altas, mas de entender os meandros de cada assunto, de cada detalhe, de cada vírgula. Já a terceira B seria a irmã do meio: contestadora, chamando atenção da sua maneira peculiar. Reuniu, na mesma sala, pessoas com personalidades fortíssimas e provou que palavra, caráter, honestidade e transparência são, sim, características dos jovens de hoje. Já a terceira C, a irmã caçula, lega a essa escola, como marca indelével, a alegria de viver, as demonstrações de afeto, a generosidade e a ternura.
Todas essas características reunidas fazem, portanto, com que nossas expectativas em relação a vocês, queridos formandos, sejam altíssimas. Apostamos alto em vocês: desejamos, do fundo de nossos corações, que possam liderar a necessária e urgente mudança dos rumos absurdos que nossa sociedade vem tomando. Esperamos que vocês possam ousar ser e ter vozes dissonantes da “grande massa”, que realmente tenham a coragem de enfrentar o desafio da construção de um mundo mais justo, onde não haja espaço para o egoísmo, para a ganância, para a miséria, para a violência. Sabemos que vocês trazem as mentes e os corações prontos para essa tarefa, pois carregam consigo a coerência necessária para saber que qualquer prática desvinculada do respeito ao próximo, do amor, da solidariedade, do desprendimento pessoal em favor de uma coletividade, entre outros valores atemporais, não será algo de que vocês poderão se orgulhar, porque não edifica o ser humano, mas reforça a construção de uma sociedade injusta, como vem se configurando, infelizmente, a nossa. Vocês aprenderam em História que, muitas vezes, o apogeu pode ser o início do fim e que a intolerância só traz tragédias; aprenderam, nas aulas de Literatura, a olhar o outro com respeito às individualidades e às suas capacidades criadoras, sabendo que cada um traz consigo um interior riquíssimo, único e irrepetível; aprenderam em Matemática que não é possível apenas somar e multiplicar em detrimento do dividir; em Física, aprenderam que cada ação sua corresponde e corresponderá a uma reação; enfim, tudo aprenderam de tudo porque se fizeram “gente”.
Para finalizar, gostaria de dar minhas duas últimas tarefas. Não é preciso anotar: há que se levar no coração. A primeira: jamais temam o tamanho dos seus sonhos: se eles nasceram de vocês, é porque são capazes de dar conta deles. Como disse Monteiro Lobato, “Tudo é loucura ou sonho no começo. Nada do que o homem fez no mundo teve início de outra maneira - mas já tantos sonhos se realizaram que não temos o direito de duvidar de nenhum.” E daí advém minha derradeira tarefa: vão lá e arrasem!
Muito obrigada!
É com muita honra e emoção que coube a mim, em nome de seus professores, como paraninfa, dirigir as últimas palavras a todos vocês juntos pela última vez. Hoje é um dia de especial alegria pra vocês, assim como para seus familiares, amigos e professores. É o dia da formalização de uma passagem que significa a transição da vida adolescente para o mundo adulto, das responsabilidades em maior número e em maior intensidade.
Essa passagem, para seus professores e pais, parece que se deu de forma muito rápida. Parece que foi ontem que eu lhes estava dando as boas-vindas ao terceiro e melhor ano do Ensino Médio. Também para seus pais parece que faz tão pouco tempo que os levaram, pela mão, ao primeiro dia de aula.
Neste mundo adulto, esperamos que não se esqueçam desta escola, dos ensinamentos que aqui obtiveram, mas – principalmente – que não se esqueçam das lições paralelas que aqui tiveram, daquelas lições – vivenciadas, presenciadas, ouvidas – que falam não tanto à razão, mas ao coração e à sensibilidade.
No entanto, vocês não apenas levam ensinamentos desta escola: todos nós aprendemos – e muito – com todos vocês. As três excelentes turmas deste ano deixarão, cada uma a seu modo, muita saudade. Poderia compará-las ao estereótipo da família com três filhos. Nessa metáfora, a terceira A seria a irmã mais velha: responsável, exemplar. Marcou para sempre essa escola com sua eterna busca pela excelência: não se tratava apenas de obter notas altas, mas de entender os meandros de cada assunto, de cada detalhe, de cada vírgula. Já a terceira B seria a irmã do meio: contestadora, chamando atenção da sua maneira peculiar. Reuniu, na mesma sala, pessoas com personalidades fortíssimas e provou que palavra, caráter, honestidade e transparência são, sim, características dos jovens de hoje. Já a terceira C, a irmã caçula, lega a essa escola, como marca indelével, a alegria de viver, as demonstrações de afeto, a generosidade e a ternura.
Todas essas características reunidas fazem, portanto, com que nossas expectativas em relação a vocês, queridos formandos, sejam altíssimas. Apostamos alto em vocês: desejamos, do fundo de nossos corações, que possam liderar a necessária e urgente mudança dos rumos absurdos que nossa sociedade vem tomando. Esperamos que vocês possam ousar ser e ter vozes dissonantes da “grande massa”, que realmente tenham a coragem de enfrentar o desafio da construção de um mundo mais justo, onde não haja espaço para o egoísmo, para a ganância, para a miséria, para a violência. Sabemos que vocês trazem as mentes e os corações prontos para essa tarefa, pois carregam consigo a coerência necessária para saber que qualquer prática desvinculada do respeito ao próximo, do amor, da solidariedade, do desprendimento pessoal em favor de uma coletividade, entre outros valores atemporais, não será algo de que vocês poderão se orgulhar, porque não edifica o ser humano, mas reforça a construção de uma sociedade injusta, como vem se configurando, infelizmente, a nossa. Vocês aprenderam em História que, muitas vezes, o apogeu pode ser o início do fim e que a intolerância só traz tragédias; aprenderam, nas aulas de Literatura, a olhar o outro com respeito às individualidades e às suas capacidades criadoras, sabendo que cada um traz consigo um interior riquíssimo, único e irrepetível; aprenderam em Matemática que não é possível apenas somar e multiplicar em detrimento do dividir; em Física, aprenderam que cada ação sua corresponde e corresponderá a uma reação; enfim, tudo aprenderam de tudo porque se fizeram “gente”.
Para finalizar, gostaria de dar minhas duas últimas tarefas. Não é preciso anotar: há que se levar no coração. A primeira: jamais temam o tamanho dos seus sonhos: se eles nasceram de vocês, é porque são capazes de dar conta deles. Como disse Monteiro Lobato, “Tudo é loucura ou sonho no começo. Nada do que o homem fez no mundo teve início de outra maneira - mas já tantos sonhos se realizaram que não temos o direito de duvidar de nenhum.” E daí advém minha derradeira tarefa: vão lá e arrasem!
Muito obrigada!
Discurso de formatura - Letras/Faccat - 10/12/10
Queridas afilhadas.
É com muita emoção que lhes dirijo, como grupo reunido, as últimas palavras. Agora já formadas, teria tanto ainda para lhes dizer, mas, como convém ao momento, propus-me a aplicar a máxima conversacional do filósofo da linguagem Grice, de apenas “dizer o que for necessário e não mais do que isso.”
O que considero estritamente necessário dizer neste momento? Primeiramente, que dez de dezembro de 2010 não é apenas uma data com um interessante jogo sonoro. Trata-se de um marco, que ficará guardado no rol das mais caras recordações não só das nossas queridas formandas da quarta turma de Letras das Faculdades Integradas de Taquara como também de seus familiares e de seus professores. Com o tempo, talvez a data exata seja esquecida, porém a marca indelével nos corações será a das amizades e das emoções vivenciadas nesses anos todos nesta casa. E digo “casa” pois foi justamente nisso que vocês, queridas afilhadas, transformaram a Faccat: em um segundo lar, com todas as implicações semânticas do termo. Com metas em comum, vocês foram criando laços, compartilharam alegrias e tristezas, vitórias, decepções, opiniões. Nesse clima, os sábados transformavam-se em momentos de muitas celebrações: o culto ao saber, às amizades, à vida, enfim. Indubitavelmente, essa lição de humanidade e de solidariedade é um dos grandes diferenciais que vocês levarão consigo para suas vidas profissionais e que saberão, magistralmente, transversalizá-la nas suas práticas docentes.
Entretanto, há que se destacar que não só de lições paralelas, que falam não tanto à razão, mas ao coração e à sensibilidade, foram feitas as suas trajetórias nesta faculdade. Para o orgulho de seus familiares e de seus professores, vocês brilharam no mundo acadêmico. Senhores pais, maridos, namorados, filhos e netos: será difícil alguma turma repetir o feito dessas 19 formandas, as quais eu tive o privilégio de acompanhar mais de perto neste último ano: os excelentes resultados obtidos nos trabalhos de conclusão de curso, com um número muito expressivo de aprovações com distinção. Isso foi fruto de muita dedicação, empenho e, sobretudo, de competência. Cada uma, a seu modo, destacou-se, seja pela liderança, pela capacidade de expressão ou pelos exemplos de dedicação e persistência. Apesar das diferenças, todas essas personagens protagonizaram a crônica diária que vivenciamos, cujo tempo psicológico, por vezes, voou e, por outras, arrastou-se. Mas o melhor de tudo foi o decorrer do curso, quando a aprendizagem se concretizou. Portanto, há que se concordar com o que disse Riobaldo, personagem de “Grande sertão: veredas”, de Guimarães Rosa: “Digo: o real não está na saída nem na chegada: ele se dispõe para a gente é no meio da travessia”.
Parece que o tempo passou rápido, que foi ontem que vocês, queridas afilhadas, iniciaram o curso, na disciplina de Teoria Literária I. Como diz a Boneca Emília, em suas memórias, “a vida é um pisca-pisca. Pisca e mama, pisca e anda, pisca e ama, pisca e cria filhos, pisca e geme os reumatismos”. Então, todos nós piscamos, e hoje vocês estão se formando. Para algumas famílias, este momento representa a concretização de um sonho: ver a filha formada. Algumas das formandas, inclusive, são as primeiras da família a completar a graduação, o que torna ainda mais especial este momento.
A esta altura, de acordo com o que se convencionou para o gênero textual discurso, deveria dizer algumas palavras a fim de conclamá-las ao cumprimento dos deveres inerentes à profissão. Entretanto, julgo redundantes tais palavras, uma vez que isso já foi feito à exaustão durante o curso, e as práticas de ensino demonstraram que vocês já incorporaram essa postura no exercício docente. Por isso, direi apenas o seguinte: queridas afilhadas, continuem empregando seus conhecimentos da melhor maneira possível, livremente, corretamente, em favor do próximo, em benefício da coletividade, em proveito do povo e da nação a que pertencemos.
Por último, gostaria que, neste momento, ressignificassem um conhecido poema de Fernando Pessoa, que pode ser entendido como um código não só para a realização profissional como também pessoal, que diz:
Espero que o brilho desta noite seja o prenúncio do seu sucesso, porque, se ele depende só de vocês, não há dúvidas de que chegará em uma magnitude muito maior do que a que presenciamos na noite de hoje. Brilhem muito! Em grandes constelações! Não necessariamente nas já descobertas, mas naquelas intrínsecas a cada uma de vocês!
Parabéns!
Muito obrigada!
É com muita emoção que lhes dirijo, como grupo reunido, as últimas palavras. Agora já formadas, teria tanto ainda para lhes dizer, mas, como convém ao momento, propus-me a aplicar a máxima conversacional do filósofo da linguagem Grice, de apenas “dizer o que for necessário e não mais do que isso.”
O que considero estritamente necessário dizer neste momento? Primeiramente, que dez de dezembro de 2010 não é apenas uma data com um interessante jogo sonoro. Trata-se de um marco, que ficará guardado no rol das mais caras recordações não só das nossas queridas formandas da quarta turma de Letras das Faculdades Integradas de Taquara como também de seus familiares e de seus professores. Com o tempo, talvez a data exata seja esquecida, porém a marca indelével nos corações será a das amizades e das emoções vivenciadas nesses anos todos nesta casa. E digo “casa” pois foi justamente nisso que vocês, queridas afilhadas, transformaram a Faccat: em um segundo lar, com todas as implicações semânticas do termo. Com metas em comum, vocês foram criando laços, compartilharam alegrias e tristezas, vitórias, decepções, opiniões. Nesse clima, os sábados transformavam-se em momentos de muitas celebrações: o culto ao saber, às amizades, à vida, enfim. Indubitavelmente, essa lição de humanidade e de solidariedade é um dos grandes diferenciais que vocês levarão consigo para suas vidas profissionais e que saberão, magistralmente, transversalizá-la nas suas práticas docentes.
Entretanto, há que se destacar que não só de lições paralelas, que falam não tanto à razão, mas ao coração e à sensibilidade, foram feitas as suas trajetórias nesta faculdade. Para o orgulho de seus familiares e de seus professores, vocês brilharam no mundo acadêmico. Senhores pais, maridos, namorados, filhos e netos: será difícil alguma turma repetir o feito dessas 19 formandas, as quais eu tive o privilégio de acompanhar mais de perto neste último ano: os excelentes resultados obtidos nos trabalhos de conclusão de curso, com um número muito expressivo de aprovações com distinção. Isso foi fruto de muita dedicação, empenho e, sobretudo, de competência. Cada uma, a seu modo, destacou-se, seja pela liderança, pela capacidade de expressão ou pelos exemplos de dedicação e persistência. Apesar das diferenças, todas essas personagens protagonizaram a crônica diária que vivenciamos, cujo tempo psicológico, por vezes, voou e, por outras, arrastou-se. Mas o melhor de tudo foi o decorrer do curso, quando a aprendizagem se concretizou. Portanto, há que se concordar com o que disse Riobaldo, personagem de “Grande sertão: veredas”, de Guimarães Rosa: “Digo: o real não está na saída nem na chegada: ele se dispõe para a gente é no meio da travessia”.
Parece que o tempo passou rápido, que foi ontem que vocês, queridas afilhadas, iniciaram o curso, na disciplina de Teoria Literária I. Como diz a Boneca Emília, em suas memórias, “a vida é um pisca-pisca. Pisca e mama, pisca e anda, pisca e ama, pisca e cria filhos, pisca e geme os reumatismos”. Então, todos nós piscamos, e hoje vocês estão se formando. Para algumas famílias, este momento representa a concretização de um sonho: ver a filha formada. Algumas das formandas, inclusive, são as primeiras da família a completar a graduação, o que torna ainda mais especial este momento.
A esta altura, de acordo com o que se convencionou para o gênero textual discurso, deveria dizer algumas palavras a fim de conclamá-las ao cumprimento dos deveres inerentes à profissão. Entretanto, julgo redundantes tais palavras, uma vez que isso já foi feito à exaustão durante o curso, e as práticas de ensino demonstraram que vocês já incorporaram essa postura no exercício docente. Por isso, direi apenas o seguinte: queridas afilhadas, continuem empregando seus conhecimentos da melhor maneira possível, livremente, corretamente, em favor do próximo, em benefício da coletividade, em proveito do povo e da nação a que pertencemos.
Por último, gostaria que, neste momento, ressignificassem um conhecido poema de Fernando Pessoa, que pode ser entendido como um código não só para a realização profissional como também pessoal, que diz:
Para ser grande, sê inteiro: nada
Teu exagera ou exclui.
Sê todo em cada coisa. Põe quanto és
No mínimo que fazes.
Assim em cada lago a lua toda
Brilha, porque alta vive.
Espero que o brilho desta noite seja o prenúncio do seu sucesso, porque, se ele depende só de vocês, não há dúvidas de que chegará em uma magnitude muito maior do que a que presenciamos na noite de hoje. Brilhem muito! Em grandes constelações! Não necessariamente nas já descobertas, mas naquelas intrínsecas a cada uma de vocês!
Parabéns!
Muito obrigada!
sexta-feira, 12 de novembro de 2010
domingo, 7 de novembro de 2010
De vozes e silêncios
Decorrido o pleito presidencial no país, expressão máxima da democracia, deparamo-nos, estarrecidos, com a tentativa de amordaçamento de um dos maiores escritores que o Brasil já teve. Conhecido pelas diversas polêmicas em que se envolveu no decorrer de sua vida, Monteiro Lobato, decorridos 63 anos de sua morte, conseguiu novamente: está no olho do furacão de mais uma – injusta e desnecessária – polêmica. Desta feita, a acusação não é, de todo nova: outros pseudoleitores incautos já fizeram a infeliz delação: as obras de Monteiro Lobato conteriam conteúdos racistas. Na nova versão do equívoco, o foco da vez é a obra Caçadas de Pedrinho.
Vamos, pois, situar os leitores de orelhas de livros. Monteiro Lobato, nasceu a 18 de abril de 1882, no seio de uma família de cafeicultores do Vale do Paraíba. Portanto, nasceu antes da abolição e viveu em um ambiente que guardava os resquícios escravocratas – como o próprio autor bem denunciou, por exemplo, em seu célebre conto “Negrinha”, no qual representa os sofrimentos de uma etnia desvalida, que não era salvaguardada sequer pela Igreja. Pois bem: se, na literatura voltada para o público adulto Lobato já se posicionava contra esse estado de coisas, não o fez diferente na sua obra infantil, em que projetou o seu ideal de nação. Se, no Sítio da democrata Dona Benta todos tinham voz – até espigas de milho, bonecas de trapos, porcos e burros falavam, essas vozes também não silenciavam o que estava acontecendo no país.
Os insultos que a desbocada boneca Emília proferia a Tia Nastácia, sua criadora, eram devidamente admoestados por Dona Benta. Essas palavras, na verdade, expressavam o que, na época, ouvia-se escancaradamente nas ruas do país. Hoje, no entanto, como se fez justiça e racismo é considerado crime, essas vozes, infelizmente, ainda são ouvidas no subterrâneo das piadas de péssimo gosto. Mas, “brincando”, expressam o pensamento de grupos numerosos no país. E aí que reside o problema: ao não se admitir a existência dos preconceitos, não se abre espaço para a efetiva conscientização, o que pode fomentar ainda mais esse tipo de intolerância. E intolerância grassa nas sociedades pós-tudo em que vivemos – vejamos a recente descoberta de materiais neonazistas noticiada na semana passada.
Há quem também acuse Lobato de racista por colocar uma branca, Dona Benta, na sala e uma negra, Tia Nastácia, na cozinha. Entretanto, se na época de produção dos textos de Lobato ele fizesse o contrário, estaria sendo hipócrita, porque isso não correspondia à realidade. Compartilharia da mesma hipocrisia daqueles que agora querem silenciá-lo, mais uma vez.
Lobato, enfim, é um escritor bastante conhecido, tendo em vista a visibilidade que as sucessivas adaptações televisivas de suas obras sofreram, mas pouquíssimo lido. Quem sabe se as pessoas, antes de criticar sem fazer a devida leitura, espelhassem-se, pelo menos um pouco, na trajetória desse “brasileiro sob medida”, parafraseando o título de uma obra de Marisa Lajolo, esse país seria menos hipócrita, mais justo e mais – verdadeiramente – democrático.
Vamos, pois, situar os leitores de orelhas de livros. Monteiro Lobato, nasceu a 18 de abril de 1882, no seio de uma família de cafeicultores do Vale do Paraíba. Portanto, nasceu antes da abolição e viveu em um ambiente que guardava os resquícios escravocratas – como o próprio autor bem denunciou, por exemplo, em seu célebre conto “Negrinha”, no qual representa os sofrimentos de uma etnia desvalida, que não era salvaguardada sequer pela Igreja. Pois bem: se, na literatura voltada para o público adulto Lobato já se posicionava contra esse estado de coisas, não o fez diferente na sua obra infantil, em que projetou o seu ideal de nação. Se, no Sítio da democrata Dona Benta todos tinham voz – até espigas de milho, bonecas de trapos, porcos e burros falavam, essas vozes também não silenciavam o que estava acontecendo no país.
Os insultos que a desbocada boneca Emília proferia a Tia Nastácia, sua criadora, eram devidamente admoestados por Dona Benta. Essas palavras, na verdade, expressavam o que, na época, ouvia-se escancaradamente nas ruas do país. Hoje, no entanto, como se fez justiça e racismo é considerado crime, essas vozes, infelizmente, ainda são ouvidas no subterrâneo das piadas de péssimo gosto. Mas, “brincando”, expressam o pensamento de grupos numerosos no país. E aí que reside o problema: ao não se admitir a existência dos preconceitos, não se abre espaço para a efetiva conscientização, o que pode fomentar ainda mais esse tipo de intolerância. E intolerância grassa nas sociedades pós-tudo em que vivemos – vejamos a recente descoberta de materiais neonazistas noticiada na semana passada.
Há quem também acuse Lobato de racista por colocar uma branca, Dona Benta, na sala e uma negra, Tia Nastácia, na cozinha. Entretanto, se na época de produção dos textos de Lobato ele fizesse o contrário, estaria sendo hipócrita, porque isso não correspondia à realidade. Compartilharia da mesma hipocrisia daqueles que agora querem silenciá-lo, mais uma vez.
Lobato, enfim, é um escritor bastante conhecido, tendo em vista a visibilidade que as sucessivas adaptações televisivas de suas obras sofreram, mas pouquíssimo lido. Quem sabe se as pessoas, antes de criticar sem fazer a devida leitura, espelhassem-se, pelo menos um pouco, na trajetória desse “brasileiro sob medida”, parafraseando o título de uma obra de Marisa Lajolo, esse país seria menos hipócrita, mais justo e mais – verdadeiramente – democrático.
Contra a proibição de "Caçadas de Pedrinho"
ABL é contra a proibição do livro "Caçadas de Pedrinho", de Monteiro Lobato, nas escolas
A Academia Brasileira de Letras se posicionou contrária à tentativa de censura ao livro "Caçadas de Pedrinho", de Monteiro Lobato, pedida pelo Conselho Nacional de Educação (CNE), que alegou ter conteúdo racista na obra do escritor.
Em reunião plenária realizada na tarde de ontem, 4 de novembro, na ABL, a Casa manifestou repúdio “contra qualquer forma de veto ou censura à criação artística”, e apoiou o Ministro da Educação, Fernando Haddad, que foi contrário à determinação do CNE, que proibiu a circulação do livro no país.
De acordo com a decisão dos Acadêmicos, “cabe aos professores orientar os alunos no desenvolvimento de uma leitura crítica. Um bom leitor sabe que tia Anastácia encarna a divindade criadora dentro do Sítio do Picapau Amarelo. Se há quem se refira a ela como ex-escrava e negra, é porque essa era a cor dela e essa era a realidade dos afro-descendentes no Brasil dessa época. Não é um insulto, é a triste constatação de uma vergonhosa realidade histórica”.
A ABL sugere ainda que seria muito melhor se os responsáveis pela educação estimulassem uma leitura mais aprofundada por parte dos alunos, ao invés de proibir as crianças de saberem disso.
Os Acadêmicos afirmaram que é necessário aos professores e formuladores de política educacional ler a obra infantil de Lobato e se familiarizar com ela. “Então saberiam que esses livros são motivo de orgulho para uma cultura. E que muito poucos personagens de livros infantis pelo mundo afora são dotados da irreverência de Emília ou de sua independência de pensamento. Raros autores estimulam tanto os leitores a pensar por conta própria quanto Lobato, inclusive para discordar dele. Dispensá-lo sumariamente é um desperdício. A obra de Monteiro Lobato, em sua integridade, faz parte do patrimônio cultural brasileiro e apelamos ao senhor Ministro da Educação no sentido de que se respeite o direito de todo cidadão a esse legado, e que vete a entrada em vigor dessa recomendação”, concluíram os Acadêmicos.
5/11/2010
Link: http://www.academia.org.br/abl/cgi/cgilua.exe/sys/start.htm?infoid=10947&sid=672
A Academia Brasileira de Letras se posicionou contrária à tentativa de censura ao livro "Caçadas de Pedrinho", de Monteiro Lobato, pedida pelo Conselho Nacional de Educação (CNE), que alegou ter conteúdo racista na obra do escritor.
Em reunião plenária realizada na tarde de ontem, 4 de novembro, na ABL, a Casa manifestou repúdio “contra qualquer forma de veto ou censura à criação artística”, e apoiou o Ministro da Educação, Fernando Haddad, que foi contrário à determinação do CNE, que proibiu a circulação do livro no país.
De acordo com a decisão dos Acadêmicos, “cabe aos professores orientar os alunos no desenvolvimento de uma leitura crítica. Um bom leitor sabe que tia Anastácia encarna a divindade criadora dentro do Sítio do Picapau Amarelo. Se há quem se refira a ela como ex-escrava e negra, é porque essa era a cor dela e essa era a realidade dos afro-descendentes no Brasil dessa época. Não é um insulto, é a triste constatação de uma vergonhosa realidade histórica”.
A ABL sugere ainda que seria muito melhor se os responsáveis pela educação estimulassem uma leitura mais aprofundada por parte dos alunos, ao invés de proibir as crianças de saberem disso.
Os Acadêmicos afirmaram que é necessário aos professores e formuladores de política educacional ler a obra infantil de Lobato e se familiarizar com ela. “Então saberiam que esses livros são motivo de orgulho para uma cultura. E que muito poucos personagens de livros infantis pelo mundo afora são dotados da irreverência de Emília ou de sua independência de pensamento. Raros autores estimulam tanto os leitores a pensar por conta própria quanto Lobato, inclusive para discordar dele. Dispensá-lo sumariamente é um desperdício. A obra de Monteiro Lobato, em sua integridade, faz parte do patrimônio cultural brasileiro e apelamos ao senhor Ministro da Educação no sentido de que se respeite o direito de todo cidadão a esse legado, e que vete a entrada em vigor dessa recomendação”, concluíram os Acadêmicos.
5/11/2010
Link: http://www.academia.org.br/abl/cgi/cgilua.exe/sys/start.htm?infoid=10947&sid=672
quarta-feira, 27 de outubro de 2010
segunda-feira, 25 de outubro de 2010
Domingueira III
Este é para quem lembra da letra do jingle antigo do Fantástico.
O fantástico domingo de Ana
O jingle do Fantástico não provocou em Ana o costumeiro frio na barriga. Foi pior. Uma tontura, uns engulhos... mal conseguiu chegar ao vaso. A tremedeira depois do vômito não a deixou levantar. O frio do piso a incomodava – não mais do que a situação vexatória. Vergonha própria. Tamanha mulher com medo de segunda-feira. Domingo, para ela, era a antevéspera do inferno. Depois que o inferno vinha, os diabos nem eram tão grandes e vermelhos assim. Mas e se nem sempre fosse assim? A dúvida tornava, a cada domingo, os capetas em gigantes mais colossais.
Cambaleando, zonza, a mãe a consolava:
- Pelo menos botou pra fora. Não passa mal amanhã.
Quando ela passava pela sala, a irmã mais nova, deitada no colo do noivo, retruca:
- Sorte tua: foi-se a macarronada. Se não, amanhã, terias que malhar... E isso tu não fazes, né, maninha?
Os risinhos maldosos da irmã e do futuro cunhado deram-lhe vontade de voltar ao banheiro... Não venceu. Vomitou novamente - nos pés do cunhado. A irmã se enfureceu:
- Sua gorda porca! Só porque tu não arranjas ninguém não precisa espantar meu noivo. – O rosto da irmã estava verde de raiva. – Ô, mãe, olha a Ana aqui, que nojo.
Enquanto a confusão instaurava-se na sala, o pai a puxou ao quarto. Trouxe-lhe chá e remédio. Cobriu-a com um edredom, como fazia na infância. Ela se sentiu aliviada. O pai fez menção de ligar a tevê, mas ela fez que não...
- Era só para relaxar, Ana, ver uma bobagem no Fantástico antes de dormir...
O estômago retorceu-se novamente. O remédio contra náusea já começava a fazer efeito: um soninho... Sobressaltou-se: e se o chefe não tivesse recebido o relatório? E se tivesse selecionado o endereço de e-mail errado? E se o relatório estivesse todo errado? E se os cálculos estivessem errado? Se tivesse feito um terrível erro de concordância? O jingle pedia: “Olhe bem, preste atenção”. Não, ela nunca olhava bem. Não o suficiente. Era imensa, inadequada, exagerada no que não precisa. Nunca sabia o que era essencial ou acessório. Nenhum acessório lhe caía bem. Nada servia. Viu uma vendedora da loja, que consultara o estoque para ver se havia algo que servisse. “Nada na mão, nesta também” – continuava o jingle. Lembrou do médico charlatão que prometera o emagrecimento rápido. “Nós temos mágicas para fazer”. Só o que diminuiu foi sua conta bancária. “Milhares de sonhos só para sonhar”. O cunhado asqueroso que lhe apresentou um primo encalhado e psicopata, “Miragens que não se pode contar”. E aquele colega novo que entrou no escritório? Tão lindo, simpático, sensível. Até conversou com ela como se ela fosse gente. “Numa fração de um segundo qualquer emoção agita o mundo.” Mas saiu com a colega loira de farmácia. A loirosa sabia que ela gostou dele. Nem remorso sentiu. E ainda espalhou. “Riso, criado por quem é mestre”. Vão casar, os dois. O que ele vê nela, aquela burra? “Sexo, sem ele o mundo não cresce”. Mas eles, os colegas, ainda pagariam caro pelas brincadeiras sem graça. “Guerra, pra matar e morrer / Amor, que ensina a viver”. Qual nada. O tempo se encarregaria de levar tudo, “Foguete no espaço / Rumo ao infinito / Provando que tudo / Não passa de um mito”. Mágoas e rancores vão para o espaço. O efeito do Plasil “É fantástico”.
Ela só queria ser feliz. Provar que conseguiria conquistar alguém. Com 35 anos, “da idade da pedra” à beira de ser titia, qualquer alguém, “Ao homem de plástico”. Nada como ser sincera consigo mesma: “é o show da vida”. “É fantástico”.
segunda-feira, 4 de outubro de 2010
Domingueira II
A vida deve ser mais fácil para quem vive próximo de acidentes geográficos, pensou ela. Era mais fácil, sim. Haveria de ser. Não era mais um pensamento de domingo à noite. Se o dia estava estressante, tudo bem, o mar ficava a duas quadras. Se a sogra encheu o saco, nada de mal atingiria: dez minutos de bicicleta e estaria à beira de um cânion, vento fresco batendo na cara, segurando o dedo de Deus. Se o caso fosse de gente invejosa e chata, era só esperar o final do expediente. Caminharia descalça à beira da lagoa, areia grossa massageando os pés, marolinhas para refrescar a alma. E o verde. O verde... pastai, pastai olhos meus.
O fato é que ela morava na grande cidade média. E era domingo. E tudo voltaria à média. Até sexta, teria inveja das vacas que ela via de relance, no caminho para um dos trabalhos, ruminando ao sol.
Cogitou ligar para um dos chefes, demitir-se naquele instante, nem ir na segunda. Sorriu ao pensar em dormir até as 10. Olhou os gêmeos no berço. Não, e a faculdade deles, quem vai garantir? O emprego do marido era bom, dava conta. Mas e se até lá não desse mais? E se não arrumasse outra coisa? E se... Um dos gêmeos choramingou, era bom atender logo, antes que acordasse o outro.
Fez contas mentalmente. Era boa nisso. Pensou em se demitir do outro emprego. Mas aquele era legal, os colegas gente-fina. Não, não dava. Quer dizer, até daria, mas e o medo? E se... E se?
Pensou em conversar com o marido. Ele queria ver a última reportagem do Fantástico. As mesmas notícias. Sempre. Aquela musiquinha punha-lhe os nervos em bolas de fogo. Fez um chá. Não, o marido não quis. A tal da reportagem não vinha nunca. Sobre o quê, mesmo? De novo? Os empregos, os chefes, os colegas, as pilhas de problemas para resolver. E se...
A reportagem veio, o marido nem prestou atenção, trabalhando no laptop. Muito menos ela. E se ela fizesse de conta que dormia, o fingimento resultaria em sono? Tentava. O marido não desligava aquele troço. E se ela jogasse contra a parede? Não, muito caro.
E se ela pedisse para ele desligar?
- Benhê, não vai dormir?
...
E se ela pedisse mais diretamente? Não era hora de discutir. Isso tiraria de vez a possibilidade do sono. E se ela pedisse uma redução de carga horária no emprego chato? Não, mais reduzida do que está não daria. E se eles a mandassem embora? Tomariam a decisão por ela, fácil assim. E se a família se mudasse para uma cidade mais calma, perto de um acidente geográfico maravilhoso? O mar, que saudade do mar. Poderiam mudar de ramo, o marido e ela, fazer algo menos estafante. Mas... e a faculdade dos pimpolhos, daqui a 16 anos? E se não houvesse mais faculdade federal? E se eles não conseguissem passar no vestibular? E se... E se?
Um dos gêmeos choramingou de novo. Febre. O outro também. O marido largou o laptop e dormiu. A noite prometia.
O fato é que ela morava na grande cidade média. E era domingo. E tudo voltaria à média. Até sexta, teria inveja das vacas que ela via de relance, no caminho para um dos trabalhos, ruminando ao sol.
Cogitou ligar para um dos chefes, demitir-se naquele instante, nem ir na segunda. Sorriu ao pensar em dormir até as 10. Olhou os gêmeos no berço. Não, e a faculdade deles, quem vai garantir? O emprego do marido era bom, dava conta. Mas e se até lá não desse mais? E se não arrumasse outra coisa? E se... Um dos gêmeos choramingou, era bom atender logo, antes que acordasse o outro.
Fez contas mentalmente. Era boa nisso. Pensou em se demitir do outro emprego. Mas aquele era legal, os colegas gente-fina. Não, não dava. Quer dizer, até daria, mas e o medo? E se... E se?
Pensou em conversar com o marido. Ele queria ver a última reportagem do Fantástico. As mesmas notícias. Sempre. Aquela musiquinha punha-lhe os nervos em bolas de fogo. Fez um chá. Não, o marido não quis. A tal da reportagem não vinha nunca. Sobre o quê, mesmo? De novo? Os empregos, os chefes, os colegas, as pilhas de problemas para resolver. E se...
A reportagem veio, o marido nem prestou atenção, trabalhando no laptop. Muito menos ela. E se ela fizesse de conta que dormia, o fingimento resultaria em sono? Tentava. O marido não desligava aquele troço. E se ela jogasse contra a parede? Não, muito caro.
E se ela pedisse para ele desligar?
- Benhê, não vai dormir?
...
E se ela pedisse mais diretamente? Não era hora de discutir. Isso tiraria de vez a possibilidade do sono. E se ela pedisse uma redução de carga horária no emprego chato? Não, mais reduzida do que está não daria. E se eles a mandassem embora? Tomariam a decisão por ela, fácil assim. E se a família se mudasse para uma cidade mais calma, perto de um acidente geográfico maravilhoso? O mar, que saudade do mar. Poderiam mudar de ramo, o marido e ela, fazer algo menos estafante. Mas... e a faculdade dos pimpolhos, daqui a 16 anos? E se não houvesse mais faculdade federal? E se eles não conseguissem passar no vestibular? E se... E se?
Um dos gêmeos choramingou de novo. Febre. O outro também. O marido largou o laptop e dormiu. A noite prometia.
quarta-feira, 22 de setembro de 2010
Domingueira
Se essa vida é só um demoramento, pra que jogo de pife? Pra retardar no sem-pressa de viver? Era o que era. Ademais, não havia o que fazer. Domingo de tarde, cumpridas as santas obrigações, sobrava isso: ver os amos no jogo, velhinhos que eram, prestar assistência. Assistência de parte de gente boa em função de parte má. Explico.
No aturdido do dia-que-vem-que-vai, a boa dona patroa andava de olhos no chão. Nem mais ralhava “Domingas, traz isso”, “Domingas faz aquilo”. O coração de Domingas dava falta dos supetões. Do chamado. Da utilidade. Não era ela quem sempre acudia? Fazia o bolo preferido, dona patroa mal e mal mastigava uns farelinhos. Lavava a casa com água cheirosa, anil pra cortar quebranto, dona nem piava. Domingas, alma enosada, pensou até em quebrar um estimado prato pra ver se a dona ralhava. Do que não se encorajou.
Domingo veio, no devagar-depressa dos tempos. As muitas visitas se chegaram à casa. Gente regular, sem susto nem novidades. Se fizeram os doces, se serviram os pratos, se sesteara. À hora do café da tarde, Domingas acordou a todos com rescendentes bolinhos. Canela e baunilha. Café.
Na mesa de carteado, a dona ganhava cor. Os olhos ressurgiam da neblina. Tonitroava o nome: “Domingas, traga mais café, minha filha”. “Domingas, faz o favor de buscar um refresco pra esse daqui.” “Domingas, minha joia, faz mais uns bolinhos, mas regala mais no açúcar. Filha. Favor. Joia. Não tinha conta a felicidade de Domingas.
No que domingo findou. Restou o cricrilar do fim de tarde, com o frio chiado do radinho de pilhas anunciando o novo campeão brasileiro de futebol. Foguetes espoucavam aqui e ali. O patrão esmurrava paredes. Dona nem botou sentido. Adormeceu num sorriso.
A semana passou com a cara fechada de segunda-feira de céu cinza. Cadê bochechas vermelhas? Cadê olhos verdes brilhantes? Na terça, Domingas experimentou: não varreu a casa. Dona nada disse não. Na quarta, solou o bolo. Dona nem tomou assunto. Domingas não achou ousadia mais. Esperança teve no domingo.
Certo e regular, o dia santo chegou, com suas visitas e comilanças. Veio o jogo, só não vinha a sorte pra Dona. Domingas botou lembrança: um baralho igualzinho na gaveta da cristaleira. De parte de má, de parte de boa, Domingas enfiou as cartas no bolso do avental. Era o errado pelo certo. Se fazia o mal pelo bem, desenganava o diabo. Tudo no seu tempo, tampa e panela. Andava a servir a mesa de carteado. Sabia do jogo, abestada não era. No que ao servir um café pr’aquele, mais um bolinho pr’este, botou na mão da Dona a carta de precisão.
A Dona ganhou uma, ganhou duas, ganharam três partidas. Perderam a quarta, modo de não dar na vista. Jogo acabou – o sol se deitava. Domingo acabou, nem ouviram o cricrilar: eram as risadas da Dona, entre uma cantoria, que se ouvia no banho.
A semana teve ocupação nova. As horas se iam passando ligeiras, esperando o fim do sol. À hora da Ave-Maria, a Dona ensinava nova arte a Domingas. Canastra, escova, o difícil pôquer.
Assim se foram os domingos. Meses. A fama de sorte da Dona corria. Não, não jogava a dinheiro, pecado que era. Só coisa de distrair os velhos. A despeito, vinham gentes famosas à casa. Dia chegou que jogadores da mais alta estirpe marcaram o jogo.
A Dona estava nervosa. Domingas disfarçava. Ganharam uma, duas. Dona ria mais alto do que nunca. As faces, a testa, tudo corava. Domingas fez o combinado sinal de perderem. Dona não aceitou. Ganharam três, quatro. Cinco. Dona ria, alto, muito alto. Tremia. Seis. Na sétima vez, quando Domingas trocava uma carta enquanto servia bolinhos de queijo, um dos jogadores disse muito alto:
- Peraí!
O silêncio se fez pesado. Dona não levantou os olhos. Tremeu. Convulsionou, feias tremuras da parte de morte. As cartas voaram longe. Domingas zonzeou. “Não, eu só queria mais um desses bolinhos.” A Dona tinha as mãos cerradas. O Dono e outros homens fortes a levaram para o quarto. Os olhos cerrados, as mãos fechadas, os dentes rangendo. Domingas correu, trouxe o de cheirar, de espantar desmaio. A dona cheirou, disse algo qualquer, abriu um dos olhos. Se viu só com Domingas, que o marido fora providenciar doutor.
- Estamos sós?
No que Domingas assentiu com a cabeça, a Dona abriu a mão roxa de fehada. Uma carta amassada. Dama de ouro. Piscou um olho. Não no próximo domingo, que dava na vista, mas no outro, tinha mais.
No aturdido do dia-que-vem-que-vai, a boa dona patroa andava de olhos no chão. Nem mais ralhava “Domingas, traz isso”, “Domingas faz aquilo”. O coração de Domingas dava falta dos supetões. Do chamado. Da utilidade. Não era ela quem sempre acudia? Fazia o bolo preferido, dona patroa mal e mal mastigava uns farelinhos. Lavava a casa com água cheirosa, anil pra cortar quebranto, dona nem piava. Domingas, alma enosada, pensou até em quebrar um estimado prato pra ver se a dona ralhava. Do que não se encorajou.
Domingo veio, no devagar-depressa dos tempos. As muitas visitas se chegaram à casa. Gente regular, sem susto nem novidades. Se fizeram os doces, se serviram os pratos, se sesteara. À hora do café da tarde, Domingas acordou a todos com rescendentes bolinhos. Canela e baunilha. Café.
Na mesa de carteado, a dona ganhava cor. Os olhos ressurgiam da neblina. Tonitroava o nome: “Domingas, traga mais café, minha filha”. “Domingas, faz o favor de buscar um refresco pra esse daqui.” “Domingas, minha joia, faz mais uns bolinhos, mas regala mais no açúcar. Filha. Favor. Joia. Não tinha conta a felicidade de Domingas.
No que domingo findou. Restou o cricrilar do fim de tarde, com o frio chiado do radinho de pilhas anunciando o novo campeão brasileiro de futebol. Foguetes espoucavam aqui e ali. O patrão esmurrava paredes. Dona nem botou sentido. Adormeceu num sorriso.
A semana passou com a cara fechada de segunda-feira de céu cinza. Cadê bochechas vermelhas? Cadê olhos verdes brilhantes? Na terça, Domingas experimentou: não varreu a casa. Dona nada disse não. Na quarta, solou o bolo. Dona nem tomou assunto. Domingas não achou ousadia mais. Esperança teve no domingo.
Certo e regular, o dia santo chegou, com suas visitas e comilanças. Veio o jogo, só não vinha a sorte pra Dona. Domingas botou lembrança: um baralho igualzinho na gaveta da cristaleira. De parte de má, de parte de boa, Domingas enfiou as cartas no bolso do avental. Era o errado pelo certo. Se fazia o mal pelo bem, desenganava o diabo. Tudo no seu tempo, tampa e panela. Andava a servir a mesa de carteado. Sabia do jogo, abestada não era. No que ao servir um café pr’aquele, mais um bolinho pr’este, botou na mão da Dona a carta de precisão.
A Dona ganhou uma, ganhou duas, ganharam três partidas. Perderam a quarta, modo de não dar na vista. Jogo acabou – o sol se deitava. Domingo acabou, nem ouviram o cricrilar: eram as risadas da Dona, entre uma cantoria, que se ouvia no banho.
A semana teve ocupação nova. As horas se iam passando ligeiras, esperando o fim do sol. À hora da Ave-Maria, a Dona ensinava nova arte a Domingas. Canastra, escova, o difícil pôquer.
Assim se foram os domingos. Meses. A fama de sorte da Dona corria. Não, não jogava a dinheiro, pecado que era. Só coisa de distrair os velhos. A despeito, vinham gentes famosas à casa. Dia chegou que jogadores da mais alta estirpe marcaram o jogo.
A Dona estava nervosa. Domingas disfarçava. Ganharam uma, duas. Dona ria mais alto do que nunca. As faces, a testa, tudo corava. Domingas fez o combinado sinal de perderem. Dona não aceitou. Ganharam três, quatro. Cinco. Dona ria, alto, muito alto. Tremia. Seis. Na sétima vez, quando Domingas trocava uma carta enquanto servia bolinhos de queijo, um dos jogadores disse muito alto:
- Peraí!
O silêncio se fez pesado. Dona não levantou os olhos. Tremeu. Convulsionou, feias tremuras da parte de morte. As cartas voaram longe. Domingas zonzeou. “Não, eu só queria mais um desses bolinhos.” A Dona tinha as mãos cerradas. O Dono e outros homens fortes a levaram para o quarto. Os olhos cerrados, as mãos fechadas, os dentes rangendo. Domingas correu, trouxe o de cheirar, de espantar desmaio. A dona cheirou, disse algo qualquer, abriu um dos olhos. Se viu só com Domingas, que o marido fora providenciar doutor.
- Estamos sós?
No que Domingas assentiu com a cabeça, a Dona abriu a mão roxa de fehada. Uma carta amassada. Dama de ouro. Piscou um olho. Não no próximo domingo, que dava na vista, mas no outro, tinha mais.
segunda-feira, 13 de setembro de 2010
sexta-feira, 3 de setembro de 2010
segunda-feira, 30 de agosto de 2010
Flores de agosto
Vem chegando Rafaela!!!
O texto abaixo já escrevi há um tempinho para uma linda menina que nascerá amanhã! Sei que é pra lá de clichê dizer que é uma princesinha que vem ao mundo, mas só títulos monárquicos, com toda sua carga simbólica de contos de fadas, para expressar parte da grandeza do momento: é o que vem depois do "E foram felizes para sempre". Filha da Daiana, que é um doce, essa menina será a meiguice em pessoa!
Lá vai:
Quadrinhas só para a Rafaela
A menina está por chegar
A mãe prepara, aninha, gesta...
O coração do pai está em festa:
Prepara-se todo para amar.
Os meses passam, a barriga cresce...
A mãe se ilumina, cada vez mais bela:
Lá dentro, um sentimento aquece
Está chegando Rafaela!
Arrumam-se a casa, as roupas, o quarto...
Fazem-se exames, vê-se o contorno do rosto
A ansiedade, a felicidade, o dia do parto
A princesa, nos corações, assume seu posto.
Chega, enfim, a estreia, o grande dia:
Sala de cirurgia, corredor lotado de parentes
Uma alegria que não cabe em nenhuma fotografia:
Todos os bons augúrios estão presentes!
(Se ela pudesse, falaria:)
Com tanta espera, com tanto amor...
Resolvi chegar para abafar!
Meu nome é Rafaela, ao seu dispor,
Se o assunto for sorrir e brincar!
Lá vai:
Quadrinhas só para a Rafaela
A menina está por chegar
A mãe prepara, aninha, gesta...
O coração do pai está em festa:
Prepara-se todo para amar.
Os meses passam, a barriga cresce...
A mãe se ilumina, cada vez mais bela:
Lá dentro, um sentimento aquece
Está chegando Rafaela!
Arrumam-se a casa, as roupas, o quarto...
Fazem-se exames, vê-se o contorno do rosto
A ansiedade, a felicidade, o dia do parto
A princesa, nos corações, assume seu posto.
Chega, enfim, a estreia, o grande dia:
Sala de cirurgia, corredor lotado de parentes
Uma alegria que não cabe em nenhuma fotografia:
Todos os bons augúrios estão presentes!
(Se ela pudesse, falaria:)
Com tanta espera, com tanto amor...
Resolvi chegar para abafar!
Meu nome é Rafaela, ao seu dispor,
Se o assunto for sorrir e brincar!
quinta-feira, 26 de agosto de 2010
Lançamento do livro da OFICINA 40
Demorou, mais saiu: a antologia dos contos da Oficina 40 tem sua sessão de autógrafos marcada: 11 de setembro (data marcante!), às 17 horas, na livraria Saraiva do Praia de Belas. Sem falsa modéstia: meus colegas e eu caprichamos!
domingo, 25 de julho de 2010
Há quanto tempo não é abril?
- Há quanto tempo não é abril?
- Nem sei que dia é hoje.
- O que está fazendo?
-Parece que é o de sempre.
- Desempreterenanente.
- Isso mesmo. Digita’í...
...
- Por que abril?
- O quê?
- Abril. Por quê?
- Sei lá. Gosto desse nome.
- Cada louco...
- Abril não é frio nem quente.
- Ah, tá. E faz diferença? Sempre no ar-condicionado...
- Mas se eu quiser passear...
- Conta outra... Olha a tela, tá errada a senha.
- Arrumo num instantim. É, mas eu posso querer.
- Juuuura!
- Posso ou não pode?
- Sabe que não. Ninguém tem querer.
- Eu não sou escravo.
- Hoje você está hilário, meu! Para de teclar para ver...
- Quando termina o expediente posso ir para onde eu quiser. Posso passear, portanto.
- E daí pega uma gripe, não vem trabalhar, está na rua.
- Atestado médico...
- Não impede demissão. Lembra da loira do computador 09?
- Mas ela era fraca, não aguentou a tendinite. Eu aguento gripe. E cansaço.
- Ssshiiii! Supervisor tá na área...
...
- Você ainda não respondeu.
- Responder o quê?
- Há quanto tempo não é abril?
- Sei lá... Nem sei que mês é agora. Joga no Google.
- O supervisor me mata se me pegar trocando a tela.
- Viu?
- O quê?
- Escravidão.
- É medo.
- Dá no mesmo.
- Então por que não cai fora?
- Porque sou escravo.
- Tá sonhando.
- Sonhando? Não sou eu que fico perguntando “há quanto tempo não é abril?”, “há quanto tempo não é abril?”, “há quanto tempo não é abril?”...
- Ssshhhh...
- Pois sim... “Há quanto tempo não é abril?”, “há quanto tempo não é abril?”...
Passos fortes. Os dois sentem um peso nas costas. A sombra fala:
- Os dois para minha sala agora.
A sala. Aquela que fica no alto das escadas. Toda envidraçada, de modo a quem está lá dentro ver o que se passa lá embaixo, mas os que estão lá embaixo apenas supõem o que se passa lá em cima. Os dois sobem e sabem por quê. Quem mandou conversar? O aparelho fonador, como de resto todo o corpo e o que houver de habilidades mentais, das 8h às 12h e das 13h às 17h, deve ser de uso único do empregador. Eles sabiam.
Quando a porta se abre, surpresa: há janelas na sala do alto da escada. E plantas nos cantos. E porta-retratos sobre as mesas. Pessoas trabalhando lá, muitas pessoas. E aquelas roupas? Ninguém de uniforme. Uma moça lhes sorri, oferece-lhe lugar para sentar, um café e abre as cortinas. O céu é cinza, mas é o céu. A voz da sombra, já não tão sombria, chama-lhes:
- Quem ainda quer saber há quanto tempo não é abril?
- Ninguém, não, senhor... – respondeu um deles.
- Eu ainda quero. Eu sempre quis. O meu amigo aqui nada tem a ver com isso.
- Já sabia disso. Seu amigo está dispensado.
O amigo some no vão da porta que leva às escadas. A sombra continua:
- Quanto ao senhor, aqui estão os papéis de sua demissão. Fique tranquilo que lhe pagaremos todos os seus direitos e o encaminharemos para uma assistência de recolocação. Assine, por favor, nessa linha pontilhada.
Ele assina. Olha a data logo acima de seu nome. 29 de abril.
Sai correndo na manhã cinza e fria. Não importa o futuro. Tem algo de abril só para ele.
- Nem sei que dia é hoje.
- O que está fazendo?
-Parece que é o de sempre.
- Desempreterenanente.
- Isso mesmo. Digita’í...
...
- Por que abril?
- O quê?
- Abril. Por quê?
- Sei lá. Gosto desse nome.
- Cada louco...
- Abril não é frio nem quente.
- Ah, tá. E faz diferença? Sempre no ar-condicionado...
- Mas se eu quiser passear...
- Conta outra... Olha a tela, tá errada a senha.
- Arrumo num instantim. É, mas eu posso querer.
- Juuuura!
- Posso ou não pode?
- Sabe que não. Ninguém tem querer.
- Eu não sou escravo.
- Hoje você está hilário, meu! Para de teclar para ver...
- Quando termina o expediente posso ir para onde eu quiser. Posso passear, portanto.
- E daí pega uma gripe, não vem trabalhar, está na rua.
- Atestado médico...
- Não impede demissão. Lembra da loira do computador 09?
- Mas ela era fraca, não aguentou a tendinite. Eu aguento gripe. E cansaço.
- Ssshiiii! Supervisor tá na área...
...
- Você ainda não respondeu.
- Responder o quê?
- Há quanto tempo não é abril?
- Sei lá... Nem sei que mês é agora. Joga no Google.
- O supervisor me mata se me pegar trocando a tela.
- Viu?
- O quê?
- Escravidão.
- É medo.
- Dá no mesmo.
- Então por que não cai fora?
- Porque sou escravo.
- Tá sonhando.
- Sonhando? Não sou eu que fico perguntando “há quanto tempo não é abril?”, “há quanto tempo não é abril?”, “há quanto tempo não é abril?”...
- Ssshhhh...
- Pois sim... “Há quanto tempo não é abril?”, “há quanto tempo não é abril?”...
Passos fortes. Os dois sentem um peso nas costas. A sombra fala:
- Os dois para minha sala agora.
A sala. Aquela que fica no alto das escadas. Toda envidraçada, de modo a quem está lá dentro ver o que se passa lá embaixo, mas os que estão lá embaixo apenas supõem o que se passa lá em cima. Os dois sobem e sabem por quê. Quem mandou conversar? O aparelho fonador, como de resto todo o corpo e o que houver de habilidades mentais, das 8h às 12h e das 13h às 17h, deve ser de uso único do empregador. Eles sabiam.
Quando a porta se abre, surpresa: há janelas na sala do alto da escada. E plantas nos cantos. E porta-retratos sobre as mesas. Pessoas trabalhando lá, muitas pessoas. E aquelas roupas? Ninguém de uniforme. Uma moça lhes sorri, oferece-lhe lugar para sentar, um café e abre as cortinas. O céu é cinza, mas é o céu. A voz da sombra, já não tão sombria, chama-lhes:
- Quem ainda quer saber há quanto tempo não é abril?
- Ninguém, não, senhor... – respondeu um deles.
- Eu ainda quero. Eu sempre quis. O meu amigo aqui nada tem a ver com isso.
- Já sabia disso. Seu amigo está dispensado.
O amigo some no vão da porta que leva às escadas. A sombra continua:
- Quanto ao senhor, aqui estão os papéis de sua demissão. Fique tranquilo que lhe pagaremos todos os seus direitos e o encaminharemos para uma assistência de recolocação. Assine, por favor, nessa linha pontilhada.
Ele assina. Olha a data logo acima de seu nome. 29 de abril.
Sai correndo na manhã cinza e fria. Não importa o futuro. Tem algo de abril só para ele.
sexta-feira, 23 de julho de 2010
Auf Wiedersehen!
Escrevi este texto no ano passado. Resolvi "requentá-lo". Lá vai...
Ela trocou o plantão na pediatria. Preferia a ala psiquiátrica. Bem mais confortável. Suicidas incompetentes, gente surtada não lhe amoleciam o coração. Tinha prazer em amarrá-los. Queriam sofrer? Uma veia mal procurada, um nó mais apertado do que o necessário, esparadrapo arrancado sem dó. O básico da maldade. A judiaria miúda lava-lhe a alma.
Conheceria ̶ até que enfim! ̶ a criminosa do momento. A sensação das páginas policiais. Baleou o namorado do ex-marido e a criança que eles adotaram. O ex-marido enfartou antes de ser alvejado. Matou os três. Depois cortou os pulsos. Na horizontal, a pulha. A assassina seria sua diversão do sábado à noite. Erraria muitas vezes a veia. Entrou na ala judicial assoviando um tema de desenho animado. O policial roncava na cadeira. Precisou acordá-lo. Mal estendeu o braço, alcançando a chave da porta. Teve dificuldades para desemperrar a porta. Fez força e acabou caindo sobre a cama. A assassina não estava lá. Acionou a campainha, avisando os colegas. As cordas estavam intactas. Desamarrou-se.
Na janela, um vulto. A criminosa equilibrava-se sobre uma pequena sacada desativada. Sétimo andar. Prédio velho. Lascas de cimento caíam sob os pés da pretensa suicida. Se ela não se jogasse, a sacada desabaria. Morte iminente. A infeliz não pagaria pelos crimes.
- Dá a mão. Eu te tiro daí. Vai ficar tudo bem. - disse ela, estendendo o braço.
- Casa comigo. Tu casas comigo? - Propôs, aos gritos, a potencial suicida.
Era o que lhe faltava. Ainda bem que estava escuro e frio. Ninguém no pátio. Nunca gostou tanto da demora dos colegas no socorro. “Pelo menos, fui pedida em casamento no sábado à noite”, pensou.
- Caso, caso, e compro um cachorro. Um não, dois: um York e um Poodle. Me dá a mão e a gente casa agora. - falou, sustentando o braço no ar.
Mais pedaços de cimento caíram. A morte aproximava-se. O vento gelado cortava-lhe a cara. A bandida só de camisola. Nem se mexia.
- Mentira. - Gritou a criminosa, babando-se toda. - O padre não vai querer casar nós duas. Não vai querer, não vai querer... - Repetia.
O policial entrou, cambaleando, no quarto. Estancou com a cena.
- Olha o padre ai para casar a gente. Viu como não minto? Casa a gente, seu padre? - Disse a enfermeira, piscando o olho para o policial.
O policial assustou-se. Gritou um “Não”. Disse que buscaria ajuda. Correu. A suicida flexionou os joelhos. Escorregou o corpo pela parede. Sentou-se na ponta da sacada sem proteção. Ameaçou:
- Vou me jogar!
A enfermeira mal escondia a raiva do policial. Seus olhos ardiam com o vento. O braço estendido doía
- Se tu te matares, eu me caso com outro e daremos belas risadas da tua cara. A trouxa que se matou. Pensa bem! - Provocou a enfermeira.
- Não te quero mais. Mentirosa duma figa. Feiosa, nem te queria. Não gosto de mulher. Muito menos de enfermeira pobretona. - Despejou a potencial suicida.
A enfermeira perdeu as estribeiras. Levar fora até de louca surtada era demais.
- Nem eu gosto de mulher, muito menos de uma assassina de criança. Nem pra te matar serviu, infeliz! Tu não tens coragem. Vamos, pula! Quero ver! - Ordenou, com metade do corpo para fora da janela.
A criminosa, enfurecida, pulou no braço da enfermeira. Enfiou-lhe as unhas. Pedaços de cimento caíram. A sacada desabou. Estava suspensa. A enfermeira urrou de dor. Cuspiu nos olhos da assassina.
- Auf Wiedersehen! - Sentenciou.
“Enfermeira heroína tenta salvar suicida” foi a manchete dos jornais.
Ela trocou o plantão na pediatria. Preferia a ala psiquiátrica. Bem mais confortável. Suicidas incompetentes, gente surtada não lhe amoleciam o coração. Tinha prazer em amarrá-los. Queriam sofrer? Uma veia mal procurada, um nó mais apertado do que o necessário, esparadrapo arrancado sem dó. O básico da maldade. A judiaria miúda lava-lhe a alma.
Conheceria ̶ até que enfim! ̶ a criminosa do momento. A sensação das páginas policiais. Baleou o namorado do ex-marido e a criança que eles adotaram. O ex-marido enfartou antes de ser alvejado. Matou os três. Depois cortou os pulsos. Na horizontal, a pulha. A assassina seria sua diversão do sábado à noite. Erraria muitas vezes a veia. Entrou na ala judicial assoviando um tema de desenho animado. O policial roncava na cadeira. Precisou acordá-lo. Mal estendeu o braço, alcançando a chave da porta. Teve dificuldades para desemperrar a porta. Fez força e acabou caindo sobre a cama. A assassina não estava lá. Acionou a campainha, avisando os colegas. As cordas estavam intactas. Desamarrou-se.
Na janela, um vulto. A criminosa equilibrava-se sobre uma pequena sacada desativada. Sétimo andar. Prédio velho. Lascas de cimento caíam sob os pés da pretensa suicida. Se ela não se jogasse, a sacada desabaria. Morte iminente. A infeliz não pagaria pelos crimes.
- Dá a mão. Eu te tiro daí. Vai ficar tudo bem. - disse ela, estendendo o braço.
- Casa comigo. Tu casas comigo? - Propôs, aos gritos, a potencial suicida.
Era o que lhe faltava. Ainda bem que estava escuro e frio. Ninguém no pátio. Nunca gostou tanto da demora dos colegas no socorro. “Pelo menos, fui pedida em casamento no sábado à noite”, pensou.
- Caso, caso, e compro um cachorro. Um não, dois: um York e um Poodle. Me dá a mão e a gente casa agora. - falou, sustentando o braço no ar.
Mais pedaços de cimento caíram. A morte aproximava-se. O vento gelado cortava-lhe a cara. A bandida só de camisola. Nem se mexia.
- Mentira. - Gritou a criminosa, babando-se toda. - O padre não vai querer casar nós duas. Não vai querer, não vai querer... - Repetia.
O policial entrou, cambaleando, no quarto. Estancou com a cena.
- Olha o padre ai para casar a gente. Viu como não minto? Casa a gente, seu padre? - Disse a enfermeira, piscando o olho para o policial.
O policial assustou-se. Gritou um “Não”. Disse que buscaria ajuda. Correu. A suicida flexionou os joelhos. Escorregou o corpo pela parede. Sentou-se na ponta da sacada sem proteção. Ameaçou:
- Vou me jogar!
A enfermeira mal escondia a raiva do policial. Seus olhos ardiam com o vento. O braço estendido doía
- Se tu te matares, eu me caso com outro e daremos belas risadas da tua cara. A trouxa que se matou. Pensa bem! - Provocou a enfermeira.
- Não te quero mais. Mentirosa duma figa. Feiosa, nem te queria. Não gosto de mulher. Muito menos de enfermeira pobretona. - Despejou a potencial suicida.
A enfermeira perdeu as estribeiras. Levar fora até de louca surtada era demais.
- Nem eu gosto de mulher, muito menos de uma assassina de criança. Nem pra te matar serviu, infeliz! Tu não tens coragem. Vamos, pula! Quero ver! - Ordenou, com metade do corpo para fora da janela.
A criminosa, enfurecida, pulou no braço da enfermeira. Enfiou-lhe as unhas. Pedaços de cimento caíram. A sacada desabou. Estava suspensa. A enfermeira urrou de dor. Cuspiu nos olhos da assassina.
- Auf Wiedersehen! - Sentenciou.
“Enfermeira heroína tenta salvar suicida” foi a manchete dos jornais.
segunda-feira, 12 de julho de 2010
Futebolzinho de domingo
O churrasco já estava servido, esfriando.Tio João, o churrasqueiro oficial, estava sério, como sempre. Na tevê, o jogo do Internacional continuava zero a zero. Maria colocou a maionese na mesa, sob o olhar de como-tu-te-atrasas-sempre da cunhada. Precisava quebrar o silêncio, tirar o foco de si e de suas trapalhadas:
- E a Fátima, está casada ainda ou não?
Cobrança de falta contra o Inter. Ana, solidária com a mãe, provocou:
- Ai, mãe, pergunta logo, direto pra tia Dulce. Ela sempre está bem informada...
O juiz marcou lateral a favor do Inter. Dulce não deu a costumeira resposta imediata. Estava com a boca cheia. Ana jurou que vira um sorriso de soslaio no tio João. Dulce mastigou um pouco. A maionese estava deliciosa, mas isso ela nunca diria. Jogou a garfada de maionese para o canto da boca. O zagueiro evitou o gol. Dulce babou:
- Queres saber pela lei de Deus ou pela lei dos homens?
O juiz ladrão apitou pênalti em favor do time adversário. Maria estava contra a parede. Ana se irritou com o sorriso jocoso da tia. Tio João enrubesceu. Deu violentas batidas no sal da costela. Como envenenar o próprio veneno feito mulher? Mulher e velha, que o diabo é perigoso não por ser diabo, mas por ser velho.
Silêncio de bocas carnívoras, disfarçado por um “quem quer picanha?”. O jogador perdeu o pênalti. Ana queria, queria carne. Língua, de preferência. Daria para os cachorros. Os da vizinha, claro, que latem a noite toda. Maria disfarçava o embaraço, arrumando pratos e talheres para a sobremesa. Ana não gostava da submissão da mãe:
- Senta aí e come, mãe. Tua maionese está di-vi-na!
O time fez um gol. Todos gritaram, comemorando. O juiz marcou impedimento.
- E então, Maria – provocou Dulce -, tu não me respondeu...
Ana queria corrigir: é “respondeste”, não “respondeu”, ó, anta quadrada. Não poderia, claro, era perigoso mexer com tia Dulce. Ninguém mexia com ela, ninguém seria louco de cair em desgraça com ela. O pai de Ana exigiu: o irmão que deixasse de ser egoísta, queria o pedaço do churrasqueiro. Nunca Ana gostou tanto de uma brincadeira desgastada. Riso geral, convulsionado e amarelo. Menos do churrasqueiro. Tio João, lá no fundo da sala de churrasco, continuava sério.
- A de Deus ou a dos homens, Maria?
Ouviu-se uma faca ranger no prato. O lateral direito perdeu um gol, cara a cara com o goleiro. Uma defesa es-pe-ta-cu-lar. Maria fez ouvidos moucos. O pai de Ana pediu mais farinha, que a costela estava gorda. Ana queria levantar-se. Queria pegar aquela língua. Aquele pedaço de carne inútil não mais subjugaria sua mãe. Nem sua mãe, nem mais ninguém. O cheiro da carne assando dava-lhe ímpetos de. O juiz ladrão marcou mais um pênalti para os adversários. Gritos de “vai errar, vai errar, Deus não joga mas fiscaliza”. Tio João tomou um gole de vinho, grande e redondo, molhando as palavras:
- Ô, Dulce, a lei dos homens é obrigatória; a de Deus, facultativa.
O Inter fazia um contra-ataque es-pe-ta-cu-lar, amigos da Rede. Ana e o tio olharam-se, satisfeitos e cúmplices. Mais rugas na testa de Dulce apagaram o sorriso malicioso. Ela deixou no ar um “Ahn”. Pênalti, agora em favor do Inter. Ana viu que a mãe tomava ar para falar algo. Não, não poderia. Em um segundo, Ana levantou-se, ergueu a taça de vinho tinto e doce e propôs:
- Um brinde ao tio mais inteligente que alguém pode ter!
Vivas e aplausos. É pique, é pique... Irmãos, sobrinhos, sobrinhas e cunhadas festejaram Tio João. O centroavante perdeu o pênalti. O churrasqueiro pedia “menos, menos”. O sorriso de Dulce era amarelo como as gemas usadas na maionese. As bochechas ardiam vermelhas. Ana olhava, vitoriosa, para a oponente, que alfinetou:
- E para a tia mais querida, nada?
O time adversário armava um contra-ataque rápido.
- Claro, tia Dulce, até vou encher mais o copo – respondeu Ana.
Ana pegou a garrafa, aproximou-se da tia. As bandeiras estão tremulando, tremulando, torcida colorada, avisava o locutor esportivo. Ao mesmo tempo, tio João precipitou-se da churrasqueira, trazendo queijo assado:
- Esse aqui tem que ser ligeiro, antes que caia do espeto.
O ágil churrasqueiro esbarrou em Ana, que caiu sobre Dulce, derramando o vinho tinto sobre a blusa branca imaculada e a medalhinha de Nossa Senhora de Schöenstatt. Ana caiu na gargalhada. O tio desculpou-se:
- Desculpa, Dulce, mas bati sem querer. Essa guria aí, nem pode beber, de fraca que é. Eu chamo um táxi pra ti, não podes ficar molhada assim. De mais a mais, estás muito mais gorda que a Maria, ela nem tem como te emprestar nada.
O narrador esganiçava: gooooooooooooooool do Inter, do Internacional de Porto Alegre. Um primo de Ana, Carlos, propôs novo brinde:
- À prima Ana, a volante, e ao Tio João, centroavante matador, os maiores jogadores da nossa família.
- E a Fátima, está casada ainda ou não?
Cobrança de falta contra o Inter. Ana, solidária com a mãe, provocou:
- Ai, mãe, pergunta logo, direto pra tia Dulce. Ela sempre está bem informada...
O juiz marcou lateral a favor do Inter. Dulce não deu a costumeira resposta imediata. Estava com a boca cheia. Ana jurou que vira um sorriso de soslaio no tio João. Dulce mastigou um pouco. A maionese estava deliciosa, mas isso ela nunca diria. Jogou a garfada de maionese para o canto da boca. O zagueiro evitou o gol. Dulce babou:
- Queres saber pela lei de Deus ou pela lei dos homens?
O juiz ladrão apitou pênalti em favor do time adversário. Maria estava contra a parede. Ana se irritou com o sorriso jocoso da tia. Tio João enrubesceu. Deu violentas batidas no sal da costela. Como envenenar o próprio veneno feito mulher? Mulher e velha, que o diabo é perigoso não por ser diabo, mas por ser velho.
Silêncio de bocas carnívoras, disfarçado por um “quem quer picanha?”. O jogador perdeu o pênalti. Ana queria, queria carne. Língua, de preferência. Daria para os cachorros. Os da vizinha, claro, que latem a noite toda. Maria disfarçava o embaraço, arrumando pratos e talheres para a sobremesa. Ana não gostava da submissão da mãe:
- Senta aí e come, mãe. Tua maionese está di-vi-na!
O time fez um gol. Todos gritaram, comemorando. O juiz marcou impedimento.
- E então, Maria – provocou Dulce -, tu não me respondeu...
Ana queria corrigir: é “respondeste”, não “respondeu”, ó, anta quadrada. Não poderia, claro, era perigoso mexer com tia Dulce. Ninguém mexia com ela, ninguém seria louco de cair em desgraça com ela. O pai de Ana exigiu: o irmão que deixasse de ser egoísta, queria o pedaço do churrasqueiro. Nunca Ana gostou tanto de uma brincadeira desgastada. Riso geral, convulsionado e amarelo. Menos do churrasqueiro. Tio João, lá no fundo da sala de churrasco, continuava sério.
- A de Deus ou a dos homens, Maria?
Ouviu-se uma faca ranger no prato. O lateral direito perdeu um gol, cara a cara com o goleiro. Uma defesa es-pe-ta-cu-lar. Maria fez ouvidos moucos. O pai de Ana pediu mais farinha, que a costela estava gorda. Ana queria levantar-se. Queria pegar aquela língua. Aquele pedaço de carne inútil não mais subjugaria sua mãe. Nem sua mãe, nem mais ninguém. O cheiro da carne assando dava-lhe ímpetos de. O juiz ladrão marcou mais um pênalti para os adversários. Gritos de “vai errar, vai errar, Deus não joga mas fiscaliza”. Tio João tomou um gole de vinho, grande e redondo, molhando as palavras:
- Ô, Dulce, a lei dos homens é obrigatória; a de Deus, facultativa.
O Inter fazia um contra-ataque es-pe-ta-cu-lar, amigos da Rede. Ana e o tio olharam-se, satisfeitos e cúmplices. Mais rugas na testa de Dulce apagaram o sorriso malicioso. Ela deixou no ar um “Ahn”. Pênalti, agora em favor do Inter. Ana viu que a mãe tomava ar para falar algo. Não, não poderia. Em um segundo, Ana levantou-se, ergueu a taça de vinho tinto e doce e propôs:
- Um brinde ao tio mais inteligente que alguém pode ter!
Vivas e aplausos. É pique, é pique... Irmãos, sobrinhos, sobrinhas e cunhadas festejaram Tio João. O centroavante perdeu o pênalti. O churrasqueiro pedia “menos, menos”. O sorriso de Dulce era amarelo como as gemas usadas na maionese. As bochechas ardiam vermelhas. Ana olhava, vitoriosa, para a oponente, que alfinetou:
- E para a tia mais querida, nada?
O time adversário armava um contra-ataque rápido.
- Claro, tia Dulce, até vou encher mais o copo – respondeu Ana.
Ana pegou a garrafa, aproximou-se da tia. As bandeiras estão tremulando, tremulando, torcida colorada, avisava o locutor esportivo. Ao mesmo tempo, tio João precipitou-se da churrasqueira, trazendo queijo assado:
- Esse aqui tem que ser ligeiro, antes que caia do espeto.
O ágil churrasqueiro esbarrou em Ana, que caiu sobre Dulce, derramando o vinho tinto sobre a blusa branca imaculada e a medalhinha de Nossa Senhora de Schöenstatt. Ana caiu na gargalhada. O tio desculpou-se:
- Desculpa, Dulce, mas bati sem querer. Essa guria aí, nem pode beber, de fraca que é. Eu chamo um táxi pra ti, não podes ficar molhada assim. De mais a mais, estás muito mais gorda que a Maria, ela nem tem como te emprestar nada.
O narrador esganiçava: gooooooooooooooool do Inter, do Internacional de Porto Alegre. Um primo de Ana, Carlos, propôs novo brinde:
- À prima Ana, a volante, e ao Tio João, centroavante matador, os maiores jogadores da nossa família.
terça-feira, 29 de junho de 2010
@
“Oi, Aninha, fiquei sabendo do que te aconteceu queria tá aí, mas num vai dá olha, isso acontece,melhor assim minha vó sempre dizia que tem males que vem pro bem... Bjks Dri”
Ana releu a mensagem. Não entendeu nada. Não era só a pontuação que inexistia. Não havia acontecido nada com ela. Nunca acontecia. Quem era essa tal de Dri, com a bendita avó? Viu o remetente: drika.sousa. Vou saber? Melhor deixar quieto. Vírus não era, não tinha anexo.
Seguiu com suas atividades rotineiras. Quando terminava de revisar um texto, deu-se conta de que era seu dia de buscar as trigêmeas na escola. Voou, voltou, todo-mundo-para-o-banho-já, chegada do marido, jantar, novela, sono. Lembrou que precisava enviar o texto revisado. Quando abriu sua caixa de e-mails, estava lá: drika.sousa. Subject: novidades.
Não quis abrir. Ou melhor: queria, mas não era com ela. Em tempos outros, diriam que isso era violação de correspondência. Se o carteiro, por engano, colocasse uma carta para o vizinho na sua caixa, ela abriria? Não, claro que não. Se fosse a tia Dulce, claro que sim. Mas ela não era a tia Dulce, a Fofoqueira, com efe maiúsculo. Era a A-na!
O melhor a fazer seria deletar. Claro que o melhor era apagar, ignorar. O correto, o certo, a única opção a considerar. Mas o assunto... “novidades”. Quem não gosta de novidades? Era mulher, tinha sangue nas veias. Qualquer um a perdoaria. Poderia dizer que abriu sem querer, automático, tanta coisa pra fazer, meu Deus!.Mas ela se perdoaria? De mais a mais, quem saberia? Só ela. Tudo isso. E se mandasse um e-mail para essa tal de drika.sousa, dizendo que se tratava da ana.silva errada? Daí a Drika saberia que ela, A-na, era uma fuxiqueira das boas. Nada disso...
O marido chamou, que já era mais que hora de dormir, que saco! Ana sabia que ele não conseguia dormir enquanto ela não se deitasse. Tinha medo de se sobressaltar quando ela deitasse – claro que ele jamais admitiu isso.
- Te ajudei, viu? Botei a tropa toda na cama. Dentinhos escovados, os pijamas iguais. Tudo bonitinho, do jeito que tu gostas – disse o marido.
Ela murmurou algo parecido com um “obrigada”. Estava tarde para discutir as implicações semânticas em torno do verbo ajudar. O marido a abraçou...
- Hoje não, estou preocupada.
O marido jogou-se, pesado, na cama:
- Pra variar. O que foi, desta vez?
- Não, nada. Esquece.
Seguiu-se o embate habitual: ele insistia, ela negava. Até...
- Eu recebi um e-mail que não sei se era para mim...
O marido estava impaciente...
- Vamos, e daí? Como assim? O que dizia?
- Era de uma tal de Dri, dizendo que sabia do que ocorreu comigo, que há males que vêm para o bem, que gostaria de estar comigo, mas não pode... Essas coisas..
O marido ajeitou-se para dormir. Claro que não era para ela. Essas coisas acontecem.
- Mas, e se for? E se aconteceu alguma coisa de que não estou sabendo ainda?
Isso, para o marido, àquela hora da noite, já era demais.
- Sim, e o coelhinho da Páscoa também te mandou um e-mail perguntando o que tu queres de presente. Tens ideia de quantas Anas Silvas existem? Milhares, milhões...
- Mas, e se for alguém me avisando? Eu conheço várias Drikas...
- Sim, e o teu umbigo é o centro do universo. Dorme aí, que já está tarde. – resmungou o marido.
Ana esperou o marido roncar. Levantou, espiou as meninas. Pareciam quentinhas debaixo dos edredons. Desceu as escadas na ponta dos pés. Ligou o computador, acessou sua conta de e-mail. A mensagem estava lá, pedindo, implorando para ser lida. Resolveu escrever para a drika.souza:
“Hoje recebi duas mensagens suas. Li a primeira e julgo que te enganaste de endereço eletrônico, pois nada ocorreu comigo, tampouco a conheço.”
Queria escrever que não conhecia ninguém tão ignorante que não soubesse usar um único ponto, mas seria muita grosseria. Releu a mensagem. Quem se importa, oras? Deletou o que escreveu. Que raio de amiga era aquela Drika? Quem se sentiria confortada com uma mensagem daquelas? Sentiu o gosto do desamparo de todas as Anas.
Jogou seu nome no Google. Milhões de anas silvas, de todas as partes, de todos os gostos e profissões. Riu-se de sua memória e parafraseou: anas pretas, brancas e amarelas – pra que tantas anas, meu Deus? Qual delas estaria, naquele momento, precisando de consolo? Qual delas, agora, viveria uma pequena tragédia pessoal? Poderia escrever para anasilva, tudo junto, ana_silva, ana-silva, ana.silva1, ana.silva2, ana.silva 3.000.000, mas o que diria? Que sente muito? Ela sente? Mesmo? Por quem?
Ana reparou no esmalte descascado das suas unhas sob o teclado. Nas mãos ásperas. Na boca seca. Nos pés gelados. No estômago roncando, que não se pode comer à noite.
Fez um chá e encheu a banheira de água escaldante. Era hora de endereçar algo a si mesma.
Ana releu a mensagem. Não entendeu nada. Não era só a pontuação que inexistia. Não havia acontecido nada com ela. Nunca acontecia. Quem era essa tal de Dri, com a bendita avó? Viu o remetente: drika.sousa. Vou saber? Melhor deixar quieto. Vírus não era, não tinha anexo.
Seguiu com suas atividades rotineiras. Quando terminava de revisar um texto, deu-se conta de que era seu dia de buscar as trigêmeas na escola. Voou, voltou, todo-mundo-para-o-banho-já, chegada do marido, jantar, novela, sono. Lembrou que precisava enviar o texto revisado. Quando abriu sua caixa de e-mails, estava lá: drika.sousa. Subject: novidades.
Não quis abrir. Ou melhor: queria, mas não era com ela. Em tempos outros, diriam que isso era violação de correspondência. Se o carteiro, por engano, colocasse uma carta para o vizinho na sua caixa, ela abriria? Não, claro que não. Se fosse a tia Dulce, claro que sim. Mas ela não era a tia Dulce, a Fofoqueira, com efe maiúsculo. Era a A-na!
O melhor a fazer seria deletar. Claro que o melhor era apagar, ignorar. O correto, o certo, a única opção a considerar. Mas o assunto... “novidades”. Quem não gosta de novidades? Era mulher, tinha sangue nas veias. Qualquer um a perdoaria. Poderia dizer que abriu sem querer, automático, tanta coisa pra fazer, meu Deus!.Mas ela se perdoaria? De mais a mais, quem saberia? Só ela. Tudo isso. E se mandasse um e-mail para essa tal de drika.sousa, dizendo que se tratava da ana.silva errada? Daí a Drika saberia que ela, A-na, era uma fuxiqueira das boas. Nada disso...
O marido chamou, que já era mais que hora de dormir, que saco! Ana sabia que ele não conseguia dormir enquanto ela não se deitasse. Tinha medo de se sobressaltar quando ela deitasse – claro que ele jamais admitiu isso.
- Te ajudei, viu? Botei a tropa toda na cama. Dentinhos escovados, os pijamas iguais. Tudo bonitinho, do jeito que tu gostas – disse o marido.
Ela murmurou algo parecido com um “obrigada”. Estava tarde para discutir as implicações semânticas em torno do verbo ajudar. O marido a abraçou...
- Hoje não, estou preocupada.
O marido jogou-se, pesado, na cama:
- Pra variar. O que foi, desta vez?
- Não, nada. Esquece.
Seguiu-se o embate habitual: ele insistia, ela negava. Até...
- Eu recebi um e-mail que não sei se era para mim...
O marido estava impaciente...
- Vamos, e daí? Como assim? O que dizia?
- Era de uma tal de Dri, dizendo que sabia do que ocorreu comigo, que há males que vêm para o bem, que gostaria de estar comigo, mas não pode... Essas coisas..
O marido ajeitou-se para dormir. Claro que não era para ela. Essas coisas acontecem.
- Mas, e se for? E se aconteceu alguma coisa de que não estou sabendo ainda?
Isso, para o marido, àquela hora da noite, já era demais.
- Sim, e o coelhinho da Páscoa também te mandou um e-mail perguntando o que tu queres de presente. Tens ideia de quantas Anas Silvas existem? Milhares, milhões...
- Mas, e se for alguém me avisando? Eu conheço várias Drikas...
- Sim, e o teu umbigo é o centro do universo. Dorme aí, que já está tarde. – resmungou o marido.
Ana esperou o marido roncar. Levantou, espiou as meninas. Pareciam quentinhas debaixo dos edredons. Desceu as escadas na ponta dos pés. Ligou o computador, acessou sua conta de e-mail. A mensagem estava lá, pedindo, implorando para ser lida. Resolveu escrever para a drika.souza:
“Hoje recebi duas mensagens suas. Li a primeira e julgo que te enganaste de endereço eletrônico, pois nada ocorreu comigo, tampouco a conheço.”
Queria escrever que não conhecia ninguém tão ignorante que não soubesse usar um único ponto, mas seria muita grosseria. Releu a mensagem. Quem se importa, oras? Deletou o que escreveu. Que raio de amiga era aquela Drika? Quem se sentiria confortada com uma mensagem daquelas? Sentiu o gosto do desamparo de todas as Anas.
Jogou seu nome no Google. Milhões de anas silvas, de todas as partes, de todos os gostos e profissões. Riu-se de sua memória e parafraseou: anas pretas, brancas e amarelas – pra que tantas anas, meu Deus? Qual delas estaria, naquele momento, precisando de consolo? Qual delas, agora, viveria uma pequena tragédia pessoal? Poderia escrever para anasilva, tudo junto, ana_silva, ana-silva, ana.silva1, ana.silva2, ana.silva 3.000.000, mas o que diria? Que sente muito? Ela sente? Mesmo? Por quem?
Ana reparou no esmalte descascado das suas unhas sob o teclado. Nas mãos ásperas. Na boca seca. Nos pés gelados. No estômago roncando, que não se pode comer à noite.
Fez um chá e encheu a banheira de água escaldante. Era hora de endereçar algo a si mesma.
terça-feira, 1 de junho de 2010
Nem aos domingos
Nem aos domingos
Sem querer, Ana bateu a portão de casa. Apressada, não encontrava a chave do carro na bolsa. “Nem em domingo...”, mas não conseguiu completar o pensamento. Do outro lado da rua, vinha um tipo suspeito. Deu dois passos para trás. O moço entrou na outra rua. Alívio. Achou a chave, entrou no carro, arrancou.
Quando chegou à avenida principal, lembrou do mapa. Ficou em casa. Onde era a festa mesmo? Ligou para a mãe do aniversariante. Caixa postal. Estacionou, raspando a roda no cordão da calçada. Pensou nas piadinhas do marido. Consertaria antes que ele percebesse. Telefonou para outra convidada. Ninguém atendeu. Sabia o bairro, meia dúzia de ruas, na certa acharia. Impossível não achar uma casa de festas de criança em um bairro. Prosseguiu. Não havia tempo de voltar.
Viu, mais adiante, alguns carros estacionados. Só poderia ser ali. Os balões são cor-de-rosa, que mal tem? A mãe do aniversariante tem a mente aberta. Rosa é lindo, chique. Não viu o carro da mãe. Pode ter vindo com o pai. Que carro mesmo que ele tem? Só pode ser aqui. O manobrista indicava o estacionamento: um terreno coberto por britas. Colocou o carro no cantinho que sobrara. Não dava para abrir a porta do motorista. Saiu pelo lado do carona. Ao passar de um banco para outro, seu colar engatou em uma alavanca. Mil pérolas tilintaram sobre o console. Não fazia mal. Ela nem gostava tanto assim do colar. Ao descer do carro, os saltos dos sapatos afundaram sob as britas. Por sorte, só um arranhãozinho no salto. Nada que uma boa graxa não resolvesse.
Chegou à festa. Sem óculos, não conseguiu localizar ninguém conhecido. Disse seu nome à recepcionista, que o escreveu sobre o pacote do presente. Crianças corriam embaladas pela estridente música infantil. Achou engraçadinho o pula-pula. Estaqueou. Um fedelho passou correndo e bateu em uma árvore de balões. O totem marrom e verde caiu sob a cabeça de Ana. A recepcionista veio em seu socorro. Sorriram amarelo. Um senhor encarou-a, franzindo a testa. Ela nunca o vira. Deu mais dois passos. O garçom lhe serviu um pratinho de doces. Olhou em volta. Ninguém conhecido. Deu quatro passos para trás. Perguntou à recepcionista:
- Será que tu podes me levar até a Márcia?
A recepcionista abriu seu sorriso de trabalho:
- Desculpe, senhora, mas quem é Márcia?
Um calor subiu ao rosto de Ana:
- A mãe do aniversariante, não sabe?
- Se não me engano, pelo que me disseram, ela se chama Patrícia. E é a aniversariante, olha ali, na placa.
Bem-vindos ao mundo encantado da Princesa Letícia. - dizia o colorido e imenso banner.
- Bem-vinda ao mundo encantado das trapalhadas de Ana. – disse à recepcionista, colocando o pratinho de doces sob o balcão.
Queria ser criança para poder sair correndo. Mal agradeceu ao manobrista e saiu pisando fundo. Será que havia alguém conhecido naquela festa? Meu Deus, por favor, que ninguém conhecido me tenha visto ali. Deu uma volta na quadra e, ao longe, viu uma placa com o nome de uma casa de festas infantis. Claro, era lá. Lembrou do nome. Viu o carro da mãe do aniversariante e os de duas outras amigas estacionados em frente ao local. Nem tudo estava perdido.
Entrou, deu o nome à recepcionista. A mãe do aniversariante a esperava na porta.
- Estávamos só esperando pela Tia Ana e pelo priminho Guilherme para cantar os parabéns. O João está ansioso, faz questão de que o teu filho esteja ao lado para ajudar a apagar as velinhas.
Priminho Guilherme?
Ana esquecera o filho em casa.
Sem querer, Ana bateu a portão de casa. Apressada, não encontrava a chave do carro na bolsa. “Nem em domingo...”, mas não conseguiu completar o pensamento. Do outro lado da rua, vinha um tipo suspeito. Deu dois passos para trás. O moço entrou na outra rua. Alívio. Achou a chave, entrou no carro, arrancou.
Quando chegou à avenida principal, lembrou do mapa. Ficou em casa. Onde era a festa mesmo? Ligou para a mãe do aniversariante. Caixa postal. Estacionou, raspando a roda no cordão da calçada. Pensou nas piadinhas do marido. Consertaria antes que ele percebesse. Telefonou para outra convidada. Ninguém atendeu. Sabia o bairro, meia dúzia de ruas, na certa acharia. Impossível não achar uma casa de festas de criança em um bairro. Prosseguiu. Não havia tempo de voltar.
Viu, mais adiante, alguns carros estacionados. Só poderia ser ali. Os balões são cor-de-rosa, que mal tem? A mãe do aniversariante tem a mente aberta. Rosa é lindo, chique. Não viu o carro da mãe. Pode ter vindo com o pai. Que carro mesmo que ele tem? Só pode ser aqui. O manobrista indicava o estacionamento: um terreno coberto por britas. Colocou o carro no cantinho que sobrara. Não dava para abrir a porta do motorista. Saiu pelo lado do carona. Ao passar de um banco para outro, seu colar engatou em uma alavanca. Mil pérolas tilintaram sobre o console. Não fazia mal. Ela nem gostava tanto assim do colar. Ao descer do carro, os saltos dos sapatos afundaram sob as britas. Por sorte, só um arranhãozinho no salto. Nada que uma boa graxa não resolvesse.
Chegou à festa. Sem óculos, não conseguiu localizar ninguém conhecido. Disse seu nome à recepcionista, que o escreveu sobre o pacote do presente. Crianças corriam embaladas pela estridente música infantil. Achou engraçadinho o pula-pula. Estaqueou. Um fedelho passou correndo e bateu em uma árvore de balões. O totem marrom e verde caiu sob a cabeça de Ana. A recepcionista veio em seu socorro. Sorriram amarelo. Um senhor encarou-a, franzindo a testa. Ela nunca o vira. Deu mais dois passos. O garçom lhe serviu um pratinho de doces. Olhou em volta. Ninguém conhecido. Deu quatro passos para trás. Perguntou à recepcionista:
- Será que tu podes me levar até a Márcia?
A recepcionista abriu seu sorriso de trabalho:
- Desculpe, senhora, mas quem é Márcia?
Um calor subiu ao rosto de Ana:
- A mãe do aniversariante, não sabe?
- Se não me engano, pelo que me disseram, ela se chama Patrícia. E é a aniversariante, olha ali, na placa.
Bem-vindos ao mundo encantado da Princesa Letícia. - dizia o colorido e imenso banner.
- Bem-vinda ao mundo encantado das trapalhadas de Ana. – disse à recepcionista, colocando o pratinho de doces sob o balcão.
Queria ser criança para poder sair correndo. Mal agradeceu ao manobrista e saiu pisando fundo. Será que havia alguém conhecido naquela festa? Meu Deus, por favor, que ninguém conhecido me tenha visto ali. Deu uma volta na quadra e, ao longe, viu uma placa com o nome de uma casa de festas infantis. Claro, era lá. Lembrou do nome. Viu o carro da mãe do aniversariante e os de duas outras amigas estacionados em frente ao local. Nem tudo estava perdido.
Entrou, deu o nome à recepcionista. A mãe do aniversariante a esperava na porta.
- Estávamos só esperando pela Tia Ana e pelo priminho Guilherme para cantar os parabéns. O João está ansioso, faz questão de que o teu filho esteja ao lado para ajudar a apagar as velinhas.
Priminho Guilherme?
Ana esquecera o filho em casa.
sexta-feira, 14 de maio de 2010
De onde vêm os bebês
O irmão dos legumes
George estava na cozinha, rondando a sua mãe. Como um gato, enroscou-se na saia. Ofereceu-se: posso secar a louça? A mãe achou aquilo uma graça. Coisa querida mesmo. Pegou um banquinho para o menino alcançar. Mas que secasse só as colheres: era pequeno e desastrado demais para secar os pratos e as facas.
O menino suspirou, suspirou. E suspirou de novo. Disparou:
- De onde eu vim, mamãe?
A mãe fechou a torneira. Parou.
- Da minha barriga, ora. – disse, aliviada.
- Até aí eu sei. Eu quero é saber como fui parar aí dentro.
A mãe secou as mãos.
- Teu pai plantou uma sementinha na minha barriga. Daí foi crescendo... Tá, agora, deu, vai assistir desenho.
O guri foi. Olhou para a mãe, de longe. Estava pensativo. O Papai gosta mesmo de plantar. Nem essa barriguinha pequenininha da Mamãe escapou. Eu vim da barriga. Isso explica porque sou tão barriguento, porque essa minha barriga sempre tem fome, especialmente de chocolate e de bolo. Papai me plantou como planta alface, rabanete e espinafre lá no quintal. Saiu correndo para o quintal.
- Oi, irmão chuchu! Olá, irmãzinha bergamoteira! Que prazer ter uma família assim tão grande.
Será que Papai vai dar presentes de Natal para todos esses filhinhos dele? O que vai sobrar para mim? Papai precisa parar de plantar, ou meu presente de Natal vai ser muito magrinho.
Quando chegou a hora do jantar, mamãe havia feito panquecas de cenoura e de espinafre. O guri fez cara feia:
- As cenouras são da nossa horta, mamãe? E o espinafre?
A mãe não entendeu:
- Só o espinafre. As cenouras que teu pai plantou não vingaram... Por quê?
- Então, quero só de cenoura.
A mãe resolveu não insistir. Na certa, era alguma invencionice do filho.
É perigoso rimar
No dia seguinte, George ainda estava com aquelas ideias de plantação. Olhou para o João... Tão inteligente, veio da cabeça de sua mãe, só pode ser! E o Pedro? Do jeito que ele corre, foi plantado na perna da mãe dele. Só pode. A Natália, com aquela letra linda, e pequeninha como é, o pai deve ter plantado na mão da mamãe.
- George, venha sentar na rodinha! – chamou a professora.
- Ele nunca obedece, profe. – gritou a Nicole.
A Nicole foi plantada na sola do pé, tão chata que é. Pensou. Percebeu que seu pensamento dava uma música. Ficou tamborilando, na cachola, para cantar na hora do pátio, lá longe, atrás da casinha, onde a Nicole nunca ia porque era um lugar feio.
Quando foram para o pátio, George chamou o João e o Pedro: os amigos precisavam ouvir a musiquinha que ele inventara sobre a puxa-saco da Nicole.
Correram para trás da casinha. George cantou:
Nicole foi plantada no pé
Que era cheio de chulé
Por isso chata ela é...
Nicole espiava. João avisou com um assovio. E o Pedro completou:
Mas é melhor fechar a boca
Se não vai dar banzé.
Nicole saiu correndo. João rolou de rir. Todos cantavam e riam.
Até que...
George ficou branco quando viu a menina arrastando a Profe pela mão:
-Arrá! Aqui estão eles, profe. Eles estavam caçoando de mim. Eu sei que estavam.
O Pedro corou. O João e o George também. Ninguém ali sabia mentir. A profe quis saber que história era aquela. O Pedro quis explicar. Foram parar na temida sala da Irmã Norma, a grande pinguim.
- Tão pequeninos e tão medonhos. Nível 5 e já aqui. Ainda bem que estarei aposentada quando chegarem à sétima série. – Disse a freira, fechando a porta. – Desembuchem. Do que chamaram a menina?
George, o menos apavorado, gaguejou:
- A gente...ãhn... só queria fazer uma musiquinha, Dona Irmã Pinguim.
A irmã bateu na mesa:
- Dona o quê?
- Dona Irmã Norma, sim.
A freira deixou por isso mesmo. Trovoou:
- Não tem nada de musiquinha, nem de poema, não quero nada disso na minha escola. Exijo que me cantem essa barbaridade agora.
George murmurou:
Nicole foi plantada no coração
Agora é namorada do João.
João quis dizer que não tinha nada a ver com aquilo. Não podia entregar o amigo. Começou a chorar. George, vendo o estrago, completou:
Nicole é uma menina que não tem medo
Por isso vai ser namorada do Pedro.
George, João e Pedro foram os primeiros meninos do Jardim na história do Colégio Santa Teresinha de Lisieux a desenharem os respectivos nomes no livro negro da secretaria, fato de que se orgulhariam mais tarde. Muito mais tarde.
Castigo
Para George, aquela era noite de castigo. Pra pensar na bobagem que fez e nunca mais ofender colega, por mais chata que seja. Menos mal que também era noite de aula da mãe e do pai. O vô José ficaria com ele. Só jantou arroz e feijão, porque isso não tinha na horta. Não comeria irmão algum.
- Por que não come chuchu? Faz bem... – interrogou o avô.
- Ué, vô. O chuchu meu pai plantou, então é meu irmão. Não como meus irmãozinhos.
O avô engasgou-se de tanto rir:
- Se não quer comer, não come. Mas não precisa me matar de rir.
O guri estava sério:
- Mas é verdade, vô...
- Sim, claro. – O avô piscou. Olha, eu sei que tu estás de castigo...
George conhecia aquele tom de voz. O avô estava pronto para propor alguma traquinagem.
- É, né? Mas foi a Nicole que provocou...
- Tudo bem, nem se discute. Mas não precisas ficar sem sobremesa. – o avô pegou um pote que estava sobre o balcão – Olha só o que tua avó mandou...
Bolo de laranja. Com calda de laranja. George adorava!
- Só um pedacinho, tua mãe nem precisa saber. – disse o avô, já servindo um pratinho.
George deliciava-se. Estava úmido e cheiroso. Meio doce, meio azedinho, na medida. Fofinho, desmanchava-se na boca.
- A vó podia fazer esse bolo todo dia, né?
- Agora que é época de laranja, dá para fazer. Teu pai colheu as que foram usadas aí hoje de manhã, no quintal.
George gritou um “Nããããããooooooo” e correu para o banheiro, cuspindo-se todo.
O avô nada entendeu. Queria bem explicadinha essa história de gritar, cuspir e querer vomitar.
- Meu pai me plantou na barriga da minha mãe, certo?
O avô assentiu com a cabeça.
- Meu pai plantou a laranjeira, não foi?
-Ahã.
- Então sou irmão da laranjeira.
Aquela, com certeza, não era incumbência de avô. Mas resolveu, assim mesmo, explicar:
- Não, George, gente é só irmão de gente. Se fosse como tu pensas, então, quem trabalha na roça, que planta seu próprio alimento, não poderia comer nada.
George arregalou os grandes olhos castanhos:
- Então posso comer mais bolo?
Sementes
O avô teve uma conversa com os pais do menino. George não ouviu muito bem, só que “precisam conversar mais com o guri”. Achou legal. Vô José era o melhor avô do mundo. Explicava bem as coisas. George agora nem mais tinha medo de acordar igual ao seu irmão rabanete, todo vermelho por fora. Mas continuava achando que a avó era irmã de um maracujá. No final de semana, o pai estava todo querido. Aquilo estava muito estranho. Convidou George para ajudar na horta.
- Vamos semear salsa! – Anunciou o pai, como quem diz “Vamos andar na montanha-russa!”
Como não estava passando desenho legal na TV, o menino foi. O pai abriu uns sulcos no canteiro e pegou um envelopinho.
- O que é isso, pai?
- Essas são as sementes. Quando crescerem, vão ficar iguais a essa plantinha da foto.
O coração aos pinotes. Então era assim que escolhiam! A foto no pacotinho! Exigiu:
- Quero ver a minha foto de quando eu crescer. Onde está?
O pai não entendeu. Como assim? Que foto?
- Ué, como essa aí do pacote. Quando eu fui plantado na mamãe, não tinha foto?
O pai riu, nervoso. O filho já era um homenzinho, tinha que saber de algumas coisas.
- Não, filho, semente de gente é diferente. Alcança o regador? – Desconversou.
- Por que eu não tenho um irmão?
- Vai ver que é porque a semente não pegou na barriga, filho. Vamos ver se vai pegar no coração.
Irmão se planta no coração
George achou triste aquela história de semente que não pega. Resolveu não insistir, não adiantava mesmo. Na escola, a Nicole nem enchia o saco. O Pedro e o João eram os mesmos amigões do peito de sempre. Mas amigos não vêm para a casa da gente depois da aula. Só de quando em vez. Nem têm o mesmo vô e a mesma vó. Só têm uns primos que a gente nem conhece e vivem roubando a atenção.
Um dia, a mamãe e o papai chegaram com um bebezinho em casa. Um menino. Até que era bonito o danado do rechonchudo. Nem tinha a tal cara de joelho que dizem que os bebês têm.
- Quem é, Mamãe?
O pai pegou o guri no colo. Botou sentado no sofá. Sim, ele queria segurar o nenê.
- Filho, disse a mãe, esse é o teu maninho.
George ficou confuso. Como assim? A mãe não tem que ficar com barriga de quem engoliu melancia? Não tem que ir para o hospital?
- Então a semente pegou na tua barriga?
- Não, filho... - disse o pai, reticente.
- Esse foi plantado no meu coração – completou a mãe.
George olhou para aquele sapequinha. Sentiu uma coisa boa dentro do peito. Parecia que o coração inchava, fazia cocegazinha e dava vontade de suspirar. Aquelas bochechas não enganavam: iriam fazer grandes traquinagens juntos. Estava claro: irmão é aquele que nasce no coração.
George estava na cozinha, rondando a sua mãe. Como um gato, enroscou-se na saia. Ofereceu-se: posso secar a louça? A mãe achou aquilo uma graça. Coisa querida mesmo. Pegou um banquinho para o menino alcançar. Mas que secasse só as colheres: era pequeno e desastrado demais para secar os pratos e as facas.
O menino suspirou, suspirou. E suspirou de novo. Disparou:
- De onde eu vim, mamãe?
A mãe fechou a torneira. Parou.
- Da minha barriga, ora. – disse, aliviada.
- Até aí eu sei. Eu quero é saber como fui parar aí dentro.
A mãe secou as mãos.
- Teu pai plantou uma sementinha na minha barriga. Daí foi crescendo... Tá, agora, deu, vai assistir desenho.
O guri foi. Olhou para a mãe, de longe. Estava pensativo. O Papai gosta mesmo de plantar. Nem essa barriguinha pequenininha da Mamãe escapou. Eu vim da barriga. Isso explica porque sou tão barriguento, porque essa minha barriga sempre tem fome, especialmente de chocolate e de bolo. Papai me plantou como planta alface, rabanete e espinafre lá no quintal. Saiu correndo para o quintal.
- Oi, irmão chuchu! Olá, irmãzinha bergamoteira! Que prazer ter uma família assim tão grande.
Será que Papai vai dar presentes de Natal para todos esses filhinhos dele? O que vai sobrar para mim? Papai precisa parar de plantar, ou meu presente de Natal vai ser muito magrinho.
Quando chegou a hora do jantar, mamãe havia feito panquecas de cenoura e de espinafre. O guri fez cara feia:
- As cenouras são da nossa horta, mamãe? E o espinafre?
A mãe não entendeu:
- Só o espinafre. As cenouras que teu pai plantou não vingaram... Por quê?
- Então, quero só de cenoura.
A mãe resolveu não insistir. Na certa, era alguma invencionice do filho.
É perigoso rimar
No dia seguinte, George ainda estava com aquelas ideias de plantação. Olhou para o João... Tão inteligente, veio da cabeça de sua mãe, só pode ser! E o Pedro? Do jeito que ele corre, foi plantado na perna da mãe dele. Só pode. A Natália, com aquela letra linda, e pequeninha como é, o pai deve ter plantado na mão da mamãe.
- George, venha sentar na rodinha! – chamou a professora.
- Ele nunca obedece, profe. – gritou a Nicole.
A Nicole foi plantada na sola do pé, tão chata que é. Pensou. Percebeu que seu pensamento dava uma música. Ficou tamborilando, na cachola, para cantar na hora do pátio, lá longe, atrás da casinha, onde a Nicole nunca ia porque era um lugar feio.
Quando foram para o pátio, George chamou o João e o Pedro: os amigos precisavam ouvir a musiquinha que ele inventara sobre a puxa-saco da Nicole.
Correram para trás da casinha. George cantou:
Nicole foi plantada no pé
Que era cheio de chulé
Por isso chata ela é...
Nicole espiava. João avisou com um assovio. E o Pedro completou:
Mas é melhor fechar a boca
Se não vai dar banzé.
Nicole saiu correndo. João rolou de rir. Todos cantavam e riam.
Até que...
George ficou branco quando viu a menina arrastando a Profe pela mão:
-Arrá! Aqui estão eles, profe. Eles estavam caçoando de mim. Eu sei que estavam.
O Pedro corou. O João e o George também. Ninguém ali sabia mentir. A profe quis saber que história era aquela. O Pedro quis explicar. Foram parar na temida sala da Irmã Norma, a grande pinguim.
- Tão pequeninos e tão medonhos. Nível 5 e já aqui. Ainda bem que estarei aposentada quando chegarem à sétima série. – Disse a freira, fechando a porta. – Desembuchem. Do que chamaram a menina?
George, o menos apavorado, gaguejou:
- A gente...ãhn... só queria fazer uma musiquinha, Dona Irmã Pinguim.
A irmã bateu na mesa:
- Dona o quê?
- Dona Irmã Norma, sim.
A freira deixou por isso mesmo. Trovoou:
- Não tem nada de musiquinha, nem de poema, não quero nada disso na minha escola. Exijo que me cantem essa barbaridade agora.
George murmurou:
Nicole foi plantada no coração
Agora é namorada do João.
João quis dizer que não tinha nada a ver com aquilo. Não podia entregar o amigo. Começou a chorar. George, vendo o estrago, completou:
Nicole é uma menina que não tem medo
Por isso vai ser namorada do Pedro.
George, João e Pedro foram os primeiros meninos do Jardim na história do Colégio Santa Teresinha de Lisieux a desenharem os respectivos nomes no livro negro da secretaria, fato de que se orgulhariam mais tarde. Muito mais tarde.
Castigo
Para George, aquela era noite de castigo. Pra pensar na bobagem que fez e nunca mais ofender colega, por mais chata que seja. Menos mal que também era noite de aula da mãe e do pai. O vô José ficaria com ele. Só jantou arroz e feijão, porque isso não tinha na horta. Não comeria irmão algum.
- Por que não come chuchu? Faz bem... – interrogou o avô.
- Ué, vô. O chuchu meu pai plantou, então é meu irmão. Não como meus irmãozinhos.
O avô engasgou-se de tanto rir:
- Se não quer comer, não come. Mas não precisa me matar de rir.
O guri estava sério:
- Mas é verdade, vô...
- Sim, claro. – O avô piscou. Olha, eu sei que tu estás de castigo...
George conhecia aquele tom de voz. O avô estava pronto para propor alguma traquinagem.
- É, né? Mas foi a Nicole que provocou...
- Tudo bem, nem se discute. Mas não precisas ficar sem sobremesa. – o avô pegou um pote que estava sobre o balcão – Olha só o que tua avó mandou...
Bolo de laranja. Com calda de laranja. George adorava!
- Só um pedacinho, tua mãe nem precisa saber. – disse o avô, já servindo um pratinho.
George deliciava-se. Estava úmido e cheiroso. Meio doce, meio azedinho, na medida. Fofinho, desmanchava-se na boca.
- A vó podia fazer esse bolo todo dia, né?
- Agora que é época de laranja, dá para fazer. Teu pai colheu as que foram usadas aí hoje de manhã, no quintal.
George gritou um “Nããããããooooooo” e correu para o banheiro, cuspindo-se todo.
O avô nada entendeu. Queria bem explicadinha essa história de gritar, cuspir e querer vomitar.
- Meu pai me plantou na barriga da minha mãe, certo?
O avô assentiu com a cabeça.
- Meu pai plantou a laranjeira, não foi?
-Ahã.
- Então sou irmão da laranjeira.
Aquela, com certeza, não era incumbência de avô. Mas resolveu, assim mesmo, explicar:
- Não, George, gente é só irmão de gente. Se fosse como tu pensas, então, quem trabalha na roça, que planta seu próprio alimento, não poderia comer nada.
George arregalou os grandes olhos castanhos:
- Então posso comer mais bolo?
Sementes
O avô teve uma conversa com os pais do menino. George não ouviu muito bem, só que “precisam conversar mais com o guri”. Achou legal. Vô José era o melhor avô do mundo. Explicava bem as coisas. George agora nem mais tinha medo de acordar igual ao seu irmão rabanete, todo vermelho por fora. Mas continuava achando que a avó era irmã de um maracujá. No final de semana, o pai estava todo querido. Aquilo estava muito estranho. Convidou George para ajudar na horta.
- Vamos semear salsa! – Anunciou o pai, como quem diz “Vamos andar na montanha-russa!”
Como não estava passando desenho legal na TV, o menino foi. O pai abriu uns sulcos no canteiro e pegou um envelopinho.
- O que é isso, pai?
- Essas são as sementes. Quando crescerem, vão ficar iguais a essa plantinha da foto.
O coração aos pinotes. Então era assim que escolhiam! A foto no pacotinho! Exigiu:
- Quero ver a minha foto de quando eu crescer. Onde está?
O pai não entendeu. Como assim? Que foto?
- Ué, como essa aí do pacote. Quando eu fui plantado na mamãe, não tinha foto?
O pai riu, nervoso. O filho já era um homenzinho, tinha que saber de algumas coisas.
- Não, filho, semente de gente é diferente. Alcança o regador? – Desconversou.
- Por que eu não tenho um irmão?
- Vai ver que é porque a semente não pegou na barriga, filho. Vamos ver se vai pegar no coração.
Irmão se planta no coração
George achou triste aquela história de semente que não pega. Resolveu não insistir, não adiantava mesmo. Na escola, a Nicole nem enchia o saco. O Pedro e o João eram os mesmos amigões do peito de sempre. Mas amigos não vêm para a casa da gente depois da aula. Só de quando em vez. Nem têm o mesmo vô e a mesma vó. Só têm uns primos que a gente nem conhece e vivem roubando a atenção.
Um dia, a mamãe e o papai chegaram com um bebezinho em casa. Um menino. Até que era bonito o danado do rechonchudo. Nem tinha a tal cara de joelho que dizem que os bebês têm.
- Quem é, Mamãe?
O pai pegou o guri no colo. Botou sentado no sofá. Sim, ele queria segurar o nenê.
- Filho, disse a mãe, esse é o teu maninho.
George ficou confuso. Como assim? A mãe não tem que ficar com barriga de quem engoliu melancia? Não tem que ir para o hospital?
- Então a semente pegou na tua barriga?
- Não, filho... - disse o pai, reticente.
- Esse foi plantado no meu coração – completou a mãe.
George olhou para aquele sapequinha. Sentiu uma coisa boa dentro do peito. Parecia que o coração inchava, fazia cocegazinha e dava vontade de suspirar. Aquelas bochechas não enganavam: iriam fazer grandes traquinagens juntos. Estava claro: irmão é aquele que nasce no coração.
terça-feira, 11 de maio de 2010
Dez coisas engraçadas
A coisa mais engraçada que havia
Era jacaré comendo melancia
Outra coisa engraçada
Era urubu contando piada.
Um fato engraçado que ocorreu
Foi o bolo que o cachorro lambeu.
A coisa mais engraçada que vi
Foi elefante fazendo pipi.
O som mais engraçado que escutei
Foi o soluço do peixe-rei.
A notícia mais engraçada do jornal:
Sapo perdido no pantanal
No álbum, a foto mais engraçada:
Um rinoceronte de unha pintada.
A brincadeira mais engraçada da escola:
O gato que virou boneco de mola.
A sobremesa mais engraçada da minha vida:
Bala jujuba com gelatina colorida!
Houve um tempo em que foi engraçado
Chamar todo mundo com nome trocado.
Mas o mais engraçado que pode ter existido
Era um leitor procurando o sentido!
Era jacaré comendo melancia
Outra coisa engraçada
Era urubu contando piada.
Um fato engraçado que ocorreu
Foi o bolo que o cachorro lambeu.
A coisa mais engraçada que vi
Foi elefante fazendo pipi.
O som mais engraçado que escutei
Foi o soluço do peixe-rei.
A notícia mais engraçada do jornal:
Sapo perdido no pantanal
No álbum, a foto mais engraçada:
Um rinoceronte de unha pintada.
A brincadeira mais engraçada da escola:
O gato que virou boneco de mola.
A sobremesa mais engraçada da minha vida:
Bala jujuba com gelatina colorida!
Houve um tempo em que foi engraçado
Chamar todo mundo com nome trocado.
Mas o mais engraçado que pode ter existido
Era um leitor procurando o sentido!
sexta-feira, 30 de abril de 2010
Roupa de cachorro
Faz frio. João Pedrinho, todo entrouxado, espia pela vidraça do seu quarto os cachorros na rua, espreguiçando sob o sol de outono. A Neide separa as roupas que não servem mais para o menino. Ele não gosta daquilo. Os cachorros brigam lá fora. Por que ele teria que dar suas roupas? "Ora, porque não servem mais", foi a resposta. Um cachorro rouba o osso do outro. O menino bota a mãozinha no queixo. Pergunta:
- Neide, por que os cachorros não usam roupas?
A Neide, que tem uma cachorrinha Chiuaua, responde:
- Alguns até têm. A Florzinha tem. Ganhou uma hoje.
O rapazinho arregala os olhos:
-Quero ver. Tu me mostra?
A Neide vai buscar. Traz um vestidinho minúsculo, floreado:
- Olha só como é bem bonita. Foi a tua vovó que deu...
O guri franze a testa:
- Por que deu? Não servia mais para ela?
- Neide, por que os cachorros não usam roupas?
A Neide, que tem uma cachorrinha Chiuaua, responde:
- Alguns até têm. A Florzinha tem. Ganhou uma hoje.
O rapazinho arregala os olhos:
-Quero ver. Tu me mostra?
A Neide vai buscar. Traz um vestidinho minúsculo, floreado:
- Olha só como é bem bonita. Foi a tua vovó que deu...
O guri franze a testa:
- Por que deu? Não servia mais para ela?
terça-feira, 20 de abril de 2010
Lenda urbana
Lenda Urbana
Uma vez era em que as crianças podiam brincar na rua. Sério, pode perguntar para sua avó. As casas não tinham grades altas. Muros, só para não ver a cara de vizinho chato, que chatos existem desde que o mundo é mundo. Cerca elétrica, então, era coisa de filme de ficção científica dos bem ruinzinhos, assim como telefones celulares, computadores e Play Station. Televisão, só em preto-e-branco. E só se podia assistir um pouquinho porque sempre tinha uma tia implicante dizendo “sai daí, guria, que faz mal para as vistas”.
Porque se importavam umas com as outras, as pessoas contavam muitas histórias. Tenho a impressão de que algumas eram inventadas com a exclusiva intenção de colocar freios nas nossas imaginações e limites territoriais para as nossas brincadeiras. Mas às vezes não era bem assim.
Uma dessas histórias, creio eu, foi inventada para que não brincássemos tanto na rua. Ora, naquela época, final da década de 1970, não havia nem um décimo do perigo que há hoje em brincar na rua, mas as mães, sempre exageradas, tinham medo do trânsito, o “grande” trânsito do interior. Pois bem. Diziam que, na cidade vizinha, havia uma Kombi conduzida por um homem de chapéu que, ao avistar crianças mal-educadas brincando na rua, parava imediatamente o veículo e, de dentro dele, saía uma imensa senhora de feições germânicas, a qual pegava um dos piás e o jogava para dentro do carro. Horas depois, voltavam e jogavam a vítima de volta, pálida, branquinha, com quase nenhum sangue. Era a temível “Kombi dos tiradores de sangue”. Nem é preciso dizer que fugíamos de Kombi como diabo da cruz. Havia quem jurasse já ter testemunhado o fato. Falavam até que o pai de um dos nossos vizinhos, que todo mundo chamava de subversivo, embora eu nem fizesse idéia do que isso significava, foi raptado um dia de manhã, quando saía para o trabalho, por essa Kombi. Ninguém nunca mais o viu.
A cor da Kombi variava: em algumas versões era branca, noutras bege, azul-claro com branco... Só faltou verde com bolinhas roxas, mas daí daria muito na cara que era invenção. Cada vez que alguém avistava uma Kombi entrando na nossa rua, dava o sinal de alerta: “A Kombi dos tiradores de sangue!”, ou “Vamos dar no pira!”, ou apenas “A Kombi!”. Eu não acreditava em nada daquela baboseira, mas achava muito divertido fugir das Kombis, buscando lugares cada vez mais inusitados para me esconder. No fundo, quando ia brincar na rua, ficava torcendo para passar uma Kombi – ainda mais se o meu time estava perdendo no jogo de caçador.
Um dia – por que sempre tem um dia? – veio uma Kombi bem devagarinho entrando na nossa rua, estalando de novinha! Eu é que vi primeiro. Mas não falei nada. Não demorou nadinha e alguém gritou, a plenos pulmões: “Pé na tábua! A Kombi!”. Puxa, bem na hora que eu iria acertar a bola no penúltimo sobrevivente do time adversário... De chateada que estava, resolvi não correr muito. Só um pouquinho, para cumprir a tradição. Entrei no pátio da casa da minha amiga Ângela e rapidamente decidi pela opção mais fácil: esconder-me subindo no ingazeiro que havia ali. Era uma árvore enorme – quando somos crianças tudo parece gigantesco – com a copa bem fechada. A Kombi veio vindo, veio vindo e ... diminuindo a velocidade! Não é que a Kombi entrou no pátio da casa da Angelinha? Meu Deus! O sinistro veículo parou bem ao ladinho da árvore. Comecei a tremer: “Ai, e se for verdade mesmo? Será que me viram aqui?”. Tentei olhar para o motorista, para ver se ele estava de chapéu, mas as lágrimas de pavor turvaram minha visão. Essa mania de duvidar ainda me mata. Só vi que um vulto masculino desceu. Nenhum sinal da mulher enorme.
- O que tu estás fazendo sozinha aí, guria?
Meu coração disparou: ai, Jesus, ele me viu. Nem olhei para o homem, de tanto medo.
- Queres ajuda para descer?
Ah, pois sim, ajuda! Eu queria era subir mais, e mais, e mais.... Então, ouvi a voz da minha amiga vindo de dentro de casa:
- Mãe, o pai chegou com o carro novo!
Era o Tio Hugo, com a Kombi que ele acabara de comprar. Eu, a valentona, nem reconheci sua voz. Mas que o pai da minha amiga tinha um gosto meio esquisito para carros, ah, isso tinha!
Uma vez era em que as crianças podiam brincar na rua. Sério, pode perguntar para sua avó. As casas não tinham grades altas. Muros, só para não ver a cara de vizinho chato, que chatos existem desde que o mundo é mundo. Cerca elétrica, então, era coisa de filme de ficção científica dos bem ruinzinhos, assim como telefones celulares, computadores e Play Station. Televisão, só em preto-e-branco. E só se podia assistir um pouquinho porque sempre tinha uma tia implicante dizendo “sai daí, guria, que faz mal para as vistas”.
Porque se importavam umas com as outras, as pessoas contavam muitas histórias. Tenho a impressão de que algumas eram inventadas com a exclusiva intenção de colocar freios nas nossas imaginações e limites territoriais para as nossas brincadeiras. Mas às vezes não era bem assim.
Uma dessas histórias, creio eu, foi inventada para que não brincássemos tanto na rua. Ora, naquela época, final da década de 1970, não havia nem um décimo do perigo que há hoje em brincar na rua, mas as mães, sempre exageradas, tinham medo do trânsito, o “grande” trânsito do interior. Pois bem. Diziam que, na cidade vizinha, havia uma Kombi conduzida por um homem de chapéu que, ao avistar crianças mal-educadas brincando na rua, parava imediatamente o veículo e, de dentro dele, saía uma imensa senhora de feições germânicas, a qual pegava um dos piás e o jogava para dentro do carro. Horas depois, voltavam e jogavam a vítima de volta, pálida, branquinha, com quase nenhum sangue. Era a temível “Kombi dos tiradores de sangue”. Nem é preciso dizer que fugíamos de Kombi como diabo da cruz. Havia quem jurasse já ter testemunhado o fato. Falavam até que o pai de um dos nossos vizinhos, que todo mundo chamava de subversivo, embora eu nem fizesse idéia do que isso significava, foi raptado um dia de manhã, quando saía para o trabalho, por essa Kombi. Ninguém nunca mais o viu.
A cor da Kombi variava: em algumas versões era branca, noutras bege, azul-claro com branco... Só faltou verde com bolinhas roxas, mas daí daria muito na cara que era invenção. Cada vez que alguém avistava uma Kombi entrando na nossa rua, dava o sinal de alerta: “A Kombi dos tiradores de sangue!”, ou “Vamos dar no pira!”, ou apenas “A Kombi!”. Eu não acreditava em nada daquela baboseira, mas achava muito divertido fugir das Kombis, buscando lugares cada vez mais inusitados para me esconder. No fundo, quando ia brincar na rua, ficava torcendo para passar uma Kombi – ainda mais se o meu time estava perdendo no jogo de caçador.
Um dia – por que sempre tem um dia? – veio uma Kombi bem devagarinho entrando na nossa rua, estalando de novinha! Eu é que vi primeiro. Mas não falei nada. Não demorou nadinha e alguém gritou, a plenos pulmões: “Pé na tábua! A Kombi!”. Puxa, bem na hora que eu iria acertar a bola no penúltimo sobrevivente do time adversário... De chateada que estava, resolvi não correr muito. Só um pouquinho, para cumprir a tradição. Entrei no pátio da casa da minha amiga Ângela e rapidamente decidi pela opção mais fácil: esconder-me subindo no ingazeiro que havia ali. Era uma árvore enorme – quando somos crianças tudo parece gigantesco – com a copa bem fechada. A Kombi veio vindo, veio vindo e ... diminuindo a velocidade! Não é que a Kombi entrou no pátio da casa da Angelinha? Meu Deus! O sinistro veículo parou bem ao ladinho da árvore. Comecei a tremer: “Ai, e se for verdade mesmo? Será que me viram aqui?”. Tentei olhar para o motorista, para ver se ele estava de chapéu, mas as lágrimas de pavor turvaram minha visão. Essa mania de duvidar ainda me mata. Só vi que um vulto masculino desceu. Nenhum sinal da mulher enorme.
- O que tu estás fazendo sozinha aí, guria?
Meu coração disparou: ai, Jesus, ele me viu. Nem olhei para o homem, de tanto medo.
- Queres ajuda para descer?
Ah, pois sim, ajuda! Eu queria era subir mais, e mais, e mais.... Então, ouvi a voz da minha amiga vindo de dentro de casa:
- Mãe, o pai chegou com o carro novo!
Era o Tio Hugo, com a Kombi que ele acabara de comprar. Eu, a valentona, nem reconheci sua voz. Mas que o pai da minha amiga tinha um gosto meio esquisito para carros, ah, isso tinha!
terça-feira, 6 de abril de 2010
Caça ao ninho - 3B
As fotos da "caça ao ninho", da 3B, estão no site da IENH, na página da Fundação Evangélica.
O Fusca
Um dia após o Natal, a notícia arranca o menino do mundo dos carrinhos e do Hering Hast. Ele solta uma exclamação:
- Não, eu não quero ser tio!
O guri chora que se derrete. Não, não vai ao hospital ver sobrinho nenhum. Nem Chico nem Francisco. Mas por quê? Só o pai entende a resposta soluçada:
- Só tenho seis anos. Não quero ser velho.
O pai abana a cabeça, orgulhoso da engenhosidade do futuro engenheiro. Aninha o rapazinho no seu peito. Não, ele não ficaria velho. Nem morreria logo. Ninguém morreria: nem o guri, nem o pai. Era promessa selada com surpresa.
O pai leva-o até a frente da casa. De olhos tapados com as mãos enormes e calejadas do pai. O menino ouve o ranger do portão, o pai destapa os olhos do filho e anuncia:
- É nosso!
Um fusca. Azul, mas não do tom do Grêmio, que o pai não é nem bobo. Um fusca! Estalando de novinho. O vizinho grita um cumprimento, no que o pai responde:
- Anota, aí, Seu Mendes! 1974 foi meu ano: fico avô e compro com Fusca estalando de novinho! Tudo de uma vez só! Feliz ano novo pro Senhor também.
O rapazinho esquece a velhice súbita. Embarca no carro. Vai atrás. Que importa se o destino é o hospital? Era um Fusca, dum azul bonito. A mãe senta ao lado do pai. Ela puxa o espelho retrovisor e retoca o batom, que podem fazê-la avó, mas velha, acabada, nunca.
O sobrinho até que é bonitinho. O pai agora é avô. Fica mais doce. Aposenta-se. Deixa o filho às vezes dormir no carro. Pega o guri no meio da noite, ajeita-o na cama quentinha. O Fusca anda, todo dia. Missa, casa de amiga da mãe, chácara da vizinha, missa, casa, aniversário do neto, batizado das netas, casamento da filha, formatura do primeiro grau do rapazinho.
Os filhos resolvem trabalhar longe. O rapazinho resolve estudar longe. O Fusca muda de garagem, de estado. Todos mudam de casa. O Fusca leva as malas. Leva os netos para escola. Busca a filha na maternidade. Passeia. Todas as tardes. Cuida dos netos à noite. O Fusca precisa de chapeação. O rapazinho trabalha, o rapaz paga. Compra uns acessórios bacanas. O Fusca, orgulhoso, fica moderninho: rodados pintados de preto. Os netos, meia dúzia, bagunçam no carro. O avô, feliz, leva e traz. A avó senta ao lado do seu motorista.
O rapaz compra um carro. Não um Fusca: nada de rivais. Um Gol, novidade sem graça, bobagem por necessidade. O rapaz casa. Esconde as malas da viagem de lua-de-mel no porta-malas, longe da criatividade mordaz dos amigos. O Fusca é fiel escudeiro. O rapaz se faz engenheiro. O Fusca, contrariado, fica na garagem, que o pai está muito emocionado para dirigir naquela noite. O Fusca teve ímpetos de ir sozinho, mas essa já é outra história.
Certo dia, o Fusca se nega a sair da garagem. Rabugice tão aguda quanto a dor que o avô sente na cabeça. O avô cai de cama. O pai vira filho, criança de fralda. O Fusca não tem mais motorista, os netos, a mulher. Os netos não podem, não têm tempo. O rapaz decide pela venda, o doloroso pelo certo. O Fusca se vende para o vizinho da outra quadra. Lá de longe, os faróis redondos veem ambulâncias, carros de médicos, nutricionistas, fisioterapeutas. O carro do filho mais velho desaparece. A lataria precisa de reparos. O Fusca se vende para um vizinho do outro lado da rua. Está mais próximo, mas não vê os carros dos netos. Ninguém arruma o Fusca.
O Fusca se vende para o vizinho ao lado. Precisa ver o que está acontecendo. Os faróis alcançam seu dono. Piscam de raiva ao ver sua rival de duas rodas. O pai não está feliz com seu Fusca de duas rodas paralelas. O Fusca fumaça. Não pode levar a esposa, nem as amigas da esposa, nem as amigas das amigas. Ninguém daquela casa senta mais nos bancos. O estofamento precisa de reparos. O Fusca se vende para o vizinho dos fundos.
O Fusca espia o carro do rapaz. Vê uma cadeirinha de bebê. O novo dono pede para deixar o Fusca na garagem antiga. O motor estremece. Não, não pode. A mulher não tem como limpar suas manchas de óleo. O novo dono resolve vender o Fusca para o ferro velho.
O Fusca tem medo do guincho. Colocam-no sobre um caminhão. Não, ele não merece o desmanche. Colocam-no no chão. Quando pensa em queimar seus faróis, uma grande porta se abre e ele espia, temeroso, uma imensa garagem clara e limpa. Nenhum cheiro de óleo. Uns equipamentos esquisitos. Aquilo não era um desmanche. Vê umas peças reluzentes. Não, não seria desmachado, destroçado, dilacerado. Seria o céu dos Fuscas? Reconhece uma silhueta. Um certo conforto o invade. Sim, reconhece o calor daquela mão sobre sua lataria. Ouve uma voz que testemunhou engrossar:
- Quero tudo original. E azul bem escuro. Nada de azul Grêmio. Nem se façam de bobos.
- Não, eu não quero ser tio!
O guri chora que se derrete. Não, não vai ao hospital ver sobrinho nenhum. Nem Chico nem Francisco. Mas por quê? Só o pai entende a resposta soluçada:
- Só tenho seis anos. Não quero ser velho.
O pai abana a cabeça, orgulhoso da engenhosidade do futuro engenheiro. Aninha o rapazinho no seu peito. Não, ele não ficaria velho. Nem morreria logo. Ninguém morreria: nem o guri, nem o pai. Era promessa selada com surpresa.
O pai leva-o até a frente da casa. De olhos tapados com as mãos enormes e calejadas do pai. O menino ouve o ranger do portão, o pai destapa os olhos do filho e anuncia:
- É nosso!
Um fusca. Azul, mas não do tom do Grêmio, que o pai não é nem bobo. Um fusca! Estalando de novinho. O vizinho grita um cumprimento, no que o pai responde:
- Anota, aí, Seu Mendes! 1974 foi meu ano: fico avô e compro com Fusca estalando de novinho! Tudo de uma vez só! Feliz ano novo pro Senhor também.
O rapazinho esquece a velhice súbita. Embarca no carro. Vai atrás. Que importa se o destino é o hospital? Era um Fusca, dum azul bonito. A mãe senta ao lado do pai. Ela puxa o espelho retrovisor e retoca o batom, que podem fazê-la avó, mas velha, acabada, nunca.
O sobrinho até que é bonitinho. O pai agora é avô. Fica mais doce. Aposenta-se. Deixa o filho às vezes dormir no carro. Pega o guri no meio da noite, ajeita-o na cama quentinha. O Fusca anda, todo dia. Missa, casa de amiga da mãe, chácara da vizinha, missa, casa, aniversário do neto, batizado das netas, casamento da filha, formatura do primeiro grau do rapazinho.
Os filhos resolvem trabalhar longe. O rapazinho resolve estudar longe. O Fusca muda de garagem, de estado. Todos mudam de casa. O Fusca leva as malas. Leva os netos para escola. Busca a filha na maternidade. Passeia. Todas as tardes. Cuida dos netos à noite. O Fusca precisa de chapeação. O rapazinho trabalha, o rapaz paga. Compra uns acessórios bacanas. O Fusca, orgulhoso, fica moderninho: rodados pintados de preto. Os netos, meia dúzia, bagunçam no carro. O avô, feliz, leva e traz. A avó senta ao lado do seu motorista.
O rapaz compra um carro. Não um Fusca: nada de rivais. Um Gol, novidade sem graça, bobagem por necessidade. O rapaz casa. Esconde as malas da viagem de lua-de-mel no porta-malas, longe da criatividade mordaz dos amigos. O Fusca é fiel escudeiro. O rapaz se faz engenheiro. O Fusca, contrariado, fica na garagem, que o pai está muito emocionado para dirigir naquela noite. O Fusca teve ímpetos de ir sozinho, mas essa já é outra história.
Certo dia, o Fusca se nega a sair da garagem. Rabugice tão aguda quanto a dor que o avô sente na cabeça. O avô cai de cama. O pai vira filho, criança de fralda. O Fusca não tem mais motorista, os netos, a mulher. Os netos não podem, não têm tempo. O rapaz decide pela venda, o doloroso pelo certo. O Fusca se vende para o vizinho da outra quadra. Lá de longe, os faróis redondos veem ambulâncias, carros de médicos, nutricionistas, fisioterapeutas. O carro do filho mais velho desaparece. A lataria precisa de reparos. O Fusca se vende para um vizinho do outro lado da rua. Está mais próximo, mas não vê os carros dos netos. Ninguém arruma o Fusca.
O Fusca se vende para o vizinho ao lado. Precisa ver o que está acontecendo. Os faróis alcançam seu dono. Piscam de raiva ao ver sua rival de duas rodas. O pai não está feliz com seu Fusca de duas rodas paralelas. O Fusca fumaça. Não pode levar a esposa, nem as amigas da esposa, nem as amigas das amigas. Ninguém daquela casa senta mais nos bancos. O estofamento precisa de reparos. O Fusca se vende para o vizinho dos fundos.
O Fusca espia o carro do rapaz. Vê uma cadeirinha de bebê. O novo dono pede para deixar o Fusca na garagem antiga. O motor estremece. Não, não pode. A mulher não tem como limpar suas manchas de óleo. O novo dono resolve vender o Fusca para o ferro velho.
O Fusca tem medo do guincho. Colocam-no sobre um caminhão. Não, ele não merece o desmanche. Colocam-no no chão. Quando pensa em queimar seus faróis, uma grande porta se abre e ele espia, temeroso, uma imensa garagem clara e limpa. Nenhum cheiro de óleo. Uns equipamentos esquisitos. Aquilo não era um desmanche. Vê umas peças reluzentes. Não, não seria desmachado, destroçado, dilacerado. Seria o céu dos Fuscas? Reconhece uma silhueta. Um certo conforto o invade. Sim, reconhece o calor daquela mão sobre sua lataria. Ouve uma voz que testemunhou engrossar:
- Quero tudo original. E azul bem escuro. Nada de azul Grêmio. Nem se façam de bobos.
terça-feira, 30 de março de 2010
Desconfiança
Como todos os dias, Ana saiu apressada do trabalho. Precisava comprar pão e frutas. Não conseguiu vaga para estacionar o carro em frente ao mercado. Chovia. A sombrinha ficou no banco do carona. Pegou tudo voando. Teve um momento de silenciosa irritação no caixa. Precisava chegar em casa em 10 minutos. Não queria atrasar a babá de seu filho mais uma vez: ela também tinha seus compromissos. Juntou as sacolas e saiu apressada. Mal olhou para atravessar a rua e pegar o carro.
Quando iria abrir o carro, ouviu passos fortes e rápidos. Assustou-se com um homem mal vestido. Vinha em sua direção. Ela jogou a chave de volta na bolsa, foi para a calçada, entrou em uma loja de 1,99. A atendente sorriu:
- Pra senhora?
- Olha lá aquele cara! – disse, apontando para a rua. – Ali, na frente da relojoaria. Eu acho que ele iria me assaltar, eu ia pegar o carro e...
- Olha o tipo do vagabundo! – cortou a atendente. – Vou ligar para a relojoaria. Eles têm telessegurança.
O homem continuava na rua. A chuva engrossara. Ele olhava uma vitrine e outra. Outros sete clientes da loja vieram à porta. Ana sorria amarelo para os elogios à sua perspicácia. Como tivera coragem? Claro que era bandido. Só podia ser bandido. E dos perigosos. Olha lá, na chuva. Jaqueta encardida e Nike Shox. Só podia ser roubado. Vai ver que até matou por esse par de tênis. Quantos rapazes trabalhadores, de família, morrem por causa desses tênis? Ana estava tonta com as conjecturas. Mal conseguia fazer as suas. E se ela tivesse enganada? Com a pressa, poderia ter julgado mal. Não teve coragem de abrir a boca. O tribunal já o condenara: já pensou se ele a levasse junto? E se o seu filho estivesse na cadeirinha? Lembra do caso daquele menino lá no Rio, que foi arrastado por quilômetros? Sim, ela lembrava, não precisava repetir. O carro da telessegurança passou. O homem parou debaixo de uma marquise, em frente à tabacaria. Tentava acender um cigarro. A dona da loja, cuia de chimarrão na mão, resolveu:
- Eu vou é chamar a Brigada. Já está na hora de fechar. Como é que alguém vai sair aqui de dentro?
Ana teve uma tontura. A polícia. Telessegurança tudo bem, não fazem nada mesmo. E se não fosse nada? Se ele fosse apenas feio mesmo? Poderia até ser trabalhador, ter se ralado para comprar o tal tênis. O tênis talvez fosse falsificado, de longe não dá para ver.
- Já estão vindo! – anunciou a lojista.
O tribunal vibrou. Era isso o correto a fazer, pra vagabundo saber que não pode mexer assim, na maior, com gente de bem. Ana olhava para ele. Parecia bem distraído. Talvez esperasse alguém. Ana fez menção de ir embora: a babá, o filho... Uma senhora gorda deteve-a:
- Nem pensar. E se ele for atrás de ti? E quem vai contar para a polícia o que aconteceu?
Como ele iria atrás dela? A pé? Correndo atrás de seu carro 2.0? Não teve coragem de argumentar. Sentiu cheiro de pipoca doce. Nada da polícia. O homem lá, debaixo da marquise. Olhando bem, parecia jovem. A lojista renovou o mate e trouxe umas cadeiras de praia. A atendente trouxe as pipocas. A tabacaria fechou. A relojoaria e o mercado também. Chuva e vento, e raios, e trovões. Quando a bacia de pipocas estava pela metade, a polícia chegou. O homem nem se mexeu. Jogaram-no na viatura, foram embora. Ana foi liberada.
Quando chegou em casa, o filho dormia. Quentinho, agasalhado e perfumado. A casa estava na mais absoluta ordem. A babá nem reclamou do atraso. Ela nunca reclamava. Despediu-se da patroa. Um sorriso tímido ressaltou as rugas:
- Nem me importa a chuva. Só queria que meu guri mais velho ainda me esperasse. A gente combinou de se encontrar na frente da tabacaria. Hoje ele começa no primeiro emprego de carteira assinada. Garçom de pizzaria. Quero dar a bênção antes de começar. Ontem até fiz um crediário e comprei um tênis novo pra ele fazer bonito lá...
Quando iria abrir o carro, ouviu passos fortes e rápidos. Assustou-se com um homem mal vestido. Vinha em sua direção. Ela jogou a chave de volta na bolsa, foi para a calçada, entrou em uma loja de 1,99. A atendente sorriu:
- Pra senhora?
- Olha lá aquele cara! – disse, apontando para a rua. – Ali, na frente da relojoaria. Eu acho que ele iria me assaltar, eu ia pegar o carro e...
- Olha o tipo do vagabundo! – cortou a atendente. – Vou ligar para a relojoaria. Eles têm telessegurança.
O homem continuava na rua. A chuva engrossara. Ele olhava uma vitrine e outra. Outros sete clientes da loja vieram à porta. Ana sorria amarelo para os elogios à sua perspicácia. Como tivera coragem? Claro que era bandido. Só podia ser bandido. E dos perigosos. Olha lá, na chuva. Jaqueta encardida e Nike Shox. Só podia ser roubado. Vai ver que até matou por esse par de tênis. Quantos rapazes trabalhadores, de família, morrem por causa desses tênis? Ana estava tonta com as conjecturas. Mal conseguia fazer as suas. E se ela tivesse enganada? Com a pressa, poderia ter julgado mal. Não teve coragem de abrir a boca. O tribunal já o condenara: já pensou se ele a levasse junto? E se o seu filho estivesse na cadeirinha? Lembra do caso daquele menino lá no Rio, que foi arrastado por quilômetros? Sim, ela lembrava, não precisava repetir. O carro da telessegurança passou. O homem parou debaixo de uma marquise, em frente à tabacaria. Tentava acender um cigarro. A dona da loja, cuia de chimarrão na mão, resolveu:
- Eu vou é chamar a Brigada. Já está na hora de fechar. Como é que alguém vai sair aqui de dentro?
Ana teve uma tontura. A polícia. Telessegurança tudo bem, não fazem nada mesmo. E se não fosse nada? Se ele fosse apenas feio mesmo? Poderia até ser trabalhador, ter se ralado para comprar o tal tênis. O tênis talvez fosse falsificado, de longe não dá para ver.
- Já estão vindo! – anunciou a lojista.
O tribunal vibrou. Era isso o correto a fazer, pra vagabundo saber que não pode mexer assim, na maior, com gente de bem. Ana olhava para ele. Parecia bem distraído. Talvez esperasse alguém. Ana fez menção de ir embora: a babá, o filho... Uma senhora gorda deteve-a:
- Nem pensar. E se ele for atrás de ti? E quem vai contar para a polícia o que aconteceu?
Como ele iria atrás dela? A pé? Correndo atrás de seu carro 2.0? Não teve coragem de argumentar. Sentiu cheiro de pipoca doce. Nada da polícia. O homem lá, debaixo da marquise. Olhando bem, parecia jovem. A lojista renovou o mate e trouxe umas cadeiras de praia. A atendente trouxe as pipocas. A tabacaria fechou. A relojoaria e o mercado também. Chuva e vento, e raios, e trovões. Quando a bacia de pipocas estava pela metade, a polícia chegou. O homem nem se mexeu. Jogaram-no na viatura, foram embora. Ana foi liberada.
Quando chegou em casa, o filho dormia. Quentinho, agasalhado e perfumado. A casa estava na mais absoluta ordem. A babá nem reclamou do atraso. Ela nunca reclamava. Despediu-se da patroa. Um sorriso tímido ressaltou as rugas:
- Nem me importa a chuva. Só queria que meu guri mais velho ainda me esperasse. A gente combinou de se encontrar na frente da tabacaria. Hoje ele começa no primeiro emprego de carteira assinada. Garçom de pizzaria. Quero dar a bênção antes de começar. Ontem até fiz um crediário e comprei um tênis novo pra ele fazer bonito lá...
terça-feira, 16 de março de 2010
A tartaruga e a feiticeira - adaptação de uma lenda africana
Contam que isso foi no tempo do era uma vez.
Nkulunkulu não mandava chuva, nem nuvem, nem trovão.
Estava bravo com os homens que ele mesmo fez.
Os animais, coitados, também sofriam com aquela desolação.
Os animais caminhavam em grandes bandos.
Nada de água, frutas ou pasto – os filhotes aos prantos.
Caminhavam léguas e léguas, matas e savanas.
Era um grande sofrimento naquelas terras africanas.
Até que, lá longe, uma grande árvore avistaram:
Carregada de saborosos frutos – logo constataram.
Chegando perto, uma dúvida logo os assaltou:
- Alguém sabe como Nkulunkulu essa fruta nomeou?
Ninguém sabia, ninguém nunca tinha ouvido:
- E se for um fruto proibido?
Se não soubessem o nome
Não poderiam matar a sua fome.
O Grou Azul, esticando as grandes asas, logo se ofereceu:
- Eu perguntarei a Nkulunkulu o nome que ele deu.
Voou até o céu, explicou o sofrimento dos animais.
Nkulunkulu foi logo dando o nome, sem mais:
Mussá, mussá, mussá
Mussangambirá, mussaé.
No caminho de volta, encontrou uma velha feiticeira raivosa
Que, de inveja, começou a cantar em verso e prosa:
Muga, selenga ingambela
Vina, quivina, vinimim.
Com a canção, o grande Grou se atrapalhou:
O nome da fruta na sua mente não vingou.
Muitos outros animais em vão tentaram.
A todos eles os versos da bruxa atrapalharam.
Até que a velha tartaruga se prontificou.
Nenhum bicho no seu sucesso acreditou.
Nkulunkulu também à tartaruga o segredo concedeu.
Quando passou pela bruxa, no seu casco se encolheu.
Não adiantou a bruxa cantar,
Não adiantou no casco tamborilar.
A tartaruga, encolhida, se concentrou
E a fome de todos os bichos aplacou.
Nkulunkulu não mandava chuva, nem nuvem, nem trovão.
Estava bravo com os homens que ele mesmo fez.
Os animais, coitados, também sofriam com aquela desolação.
Os animais caminhavam em grandes bandos.
Nada de água, frutas ou pasto – os filhotes aos prantos.
Caminhavam léguas e léguas, matas e savanas.
Era um grande sofrimento naquelas terras africanas.
Até que, lá longe, uma grande árvore avistaram:
Carregada de saborosos frutos – logo constataram.
Chegando perto, uma dúvida logo os assaltou:
- Alguém sabe como Nkulunkulu essa fruta nomeou?
Ninguém sabia, ninguém nunca tinha ouvido:
- E se for um fruto proibido?
Se não soubessem o nome
Não poderiam matar a sua fome.
O Grou Azul, esticando as grandes asas, logo se ofereceu:
- Eu perguntarei a Nkulunkulu o nome que ele deu.
Voou até o céu, explicou o sofrimento dos animais.
Nkulunkulu foi logo dando o nome, sem mais:
Mussá, mussá, mussá
Mussangambirá, mussaé.
No caminho de volta, encontrou uma velha feiticeira raivosa
Que, de inveja, começou a cantar em verso e prosa:
Muga, selenga ingambela
Vina, quivina, vinimim.
Com a canção, o grande Grou se atrapalhou:
O nome da fruta na sua mente não vingou.
Muitos outros animais em vão tentaram.
A todos eles os versos da bruxa atrapalharam.
Até que a velha tartaruga se prontificou.
Nenhum bicho no seu sucesso acreditou.
Nkulunkulu também à tartaruga o segredo concedeu.
Quando passou pela bruxa, no seu casco se encolheu.
Não adiantou a bruxa cantar,
Não adiantou no casco tamborilar.
A tartaruga, encolhida, se concentrou
E a fome de todos os bichos aplacou.
UBUNTU
Meus lábios só fazem sentido na tua face;
minha mão só encontra abrigo na tua mão;
meus braços só são braços porque se abrem num caudaloso abraço.
Alegrar-se com a alheia alegria;
entristecer-se com a triste melodia: empatia.
Nossos sonhos são sonhados, suados sob o mesmo sol,
forjados no mesmo ferro, fundidos no mesmo fogo.
O choro ecoado no coro afugenta as lágrimas
- o sal do espírito entretecido com outros espíritos;
o Deus que habita em mim faz morada em ti:
Namastê, Shalom:
Ubuntu!
domingo, 14 de março de 2010
Uma história para pré-adolescentes
Essa é a minha primeira tentativa escrever para pré-adolescentes. O texto que segue já está há bastante tempo no meu computer. Dei uma revisada e lá vai...
Ele...
Eu sei que não deveria invadir a casa de ninguém, ainda mais sob as condições em que me encontrava. Mas achava que ele era meu amigo - ou até mais do que isso... E precisava de mim.
Eu o conheci em uma noite de chuva fina. Eu saía da escola, sempre com o medo das dez e meia da noite. Ele estava encolhido em um canto, escondendo a cabeça sob uma pesada e velha capa. Achei, pela estatura, que era um colega meu. Aproximei-me, oferecendo-lhe carona na minha sombrinha:
- Rafael, vem comigo. Não fica aí te molhando.
Quando terminei de falar, ele revelou aquele rosto branco. Branco demais. Estanquei com o susto. Rapidamente olhei em volta. Ninguém na rua.
- Não sou Rafael, sou Renato, Ana Paula... Ei, não precisa ter medo. Só estou molhado! – disse-me ele, de um jeito simpático e cativante.
Quis disfarçar meu medo: apesar de branquela, ele era bem bonitinho...
- Afinal, você não deve ser medrosa, voltando sozinha da escola a uma hora dessas, nessa escuridão e nessa chuva.
Claro que eu não era medrosa. Claro que eu não era tímida. Mas o que também era claro que não conseguia articular algo inteligente o bastante para dizer a ele. Ofereceu-se para me acompanhar até em casa – que remédio? No caminho, falamos pouco, quero dizer, eu só falei algumas asneiras monossilábicas.
- Então te deixo aqui. Vê se não fica dando confiança assim para estranhos como eu, tá? - disse-me ele, sorrindo do seu jeito, com os lábios unidos.
Balbuciei qualquer besteira e entrei correndo em casa. De onde veio aquele Renato que nunca vi mais branco e sedutor? Só podia ser novo na cidade. Ali todos nos conhecíamos...Depois, antes de dormir, fiquei repassando o acontecido e dei-me conta de que ele já sabia o meu nome. Será que alguém ... deixa assim.
Dormi mal, acordei com muita sede, como se tivesse tomado um porre. Logo eu... Estava distraída, não conseguia me concentrar no trabalho, muito menos nas bobagens das aulas de gramática. Na saída da aula, esperei meus colegas tomarem certa distância. Minha intuição se confirmou: ele estava no mesmo lugar.
Noite após noite, encontrávamo-nos na saída da aula. Sabia tão pouco sobre ele. Apenas onde morava, os pais eram muito ocupados, pesquisadores, morou em vários lugares do mundo. Conversávamos sobre música, filosofia, poesia ... ou ficávamos calados, contemplando a Lua. Queria beijá-lo, ou melhor, queria, desejava que ele me beijasse – mas isso não acontecia. Só me olhava no fundo dos olhos e era como se eu saísse do ar por breves instantes e voltasse com muita, mas muita sede de sei-lá-o-quê, como naquele primeiro dia.
Uma noite dessas, ele não apareceu. Ventava, ventava muito. Eu andava a esmo, tentando entender o porquê de sua falta. Meus passos me guiaram até a velha casa onde ele morava. Muita fumaça saía lá de dentro. E se ele estivesse desmaiado? Juntei meus caquinhos de coragem e derrubei, com muita facilidade, a velha porta carcomida por cupins. Na sala, um único móvel: uma poltrona enorme e antiga, na qual ele estava sentado. Ao fundo, o fogo já estava adiantado. Apavorada, gritei:
- Vamos, Renato, saia daí! O fogo!
- Tarde demais. – Respondeu sem pressa.
- Tarde por quê? Ainda dá tempo. E os seus pais? Camos ajudá-los!
Ele, calmo, aproximou-se de mim. Estava com uma capa, mas, desta vez, novinha em folha. Abraçou-me e envolveu-me com a capa. Por cima de seu ombro, eu via, apavorada, o fogo se aproximando.
- Não há pais. Não há Renato. Só o renascido. Lestat, lembra? É tarde demais, porque, também nesta existência, apaixonei-me pela minha presa. Pela sétima vez, te amei. Agora posso me libertar da minha maldição de vampiro. Serei devorado pelas chamas e renascerei, livre. Venha comigo! – Disse, sorrindo com a boca aberta pela primeira vez, exibindo os caninos brancos.
Era como se cenas de um filme antigo rodassem em minha memória. Vagas lembranças em preto-e-branco de lugares distantes assombraram-me. Nós já nos conhecíamos. Ele lia meus pensamentos. Quando me olhava no fundo dos olhos... O tempo fora do ar. A sede. O fato de já saber meu nome. Tudo explicado.
Quis desvencilhar-me de seus braços, quis desviar o olhar. Mas ele segurou-me firme, com uma das mãos segurando meu rosto em sua direção.
Acordei-me horas depois, na sala de emergência do hospital. Os médicos murmuravam qualquer coisa como “não é possível”, “mas ela estava toda queimada”. Uma enfermeira olhou-me com tamanha compaixão que criei coragem de perguntar por Lestat, ou Renato.
- Não havia mais ninguém naquela casa. Ela está abandonada há anos. O que uma mocinha como você estava fazendo lá?
Fingi que estava sonolenta. Não podia responder. Mais e mais médicos em minha volta. Parecia que estavam muito admirados. Um deles ordenou à enfermeira que me preparasse para os exames. Quando viraram as costas, fugi pela janela.
Hoje, continuo com uma sede tremenda. Mas já sei o que a sacia. O meu nome, depende. Hoje é Natasha. Amanhã, não sei. Quem sabe nós nos encontraremos na próxima esquina?
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