sexta-feira, 30 de abril de 2010

Roupa de cachorro

Faz frio. João Pedrinho, todo entrouxado, espia pela vidraça do seu quarto os cachorros na rua, espreguiçando sob o sol de outono. A Neide separa as roupas que não servem mais para o menino. Ele não gosta daquilo. Os cachorros brigam lá fora. Por que ele teria que dar suas roupas? "Ora, porque não servem mais", foi  a resposta.  Um cachorro rouba o osso do outro. O menino bota a mãozinha no queixo. Pergunta:
- Neide, por que os cachorros não usam roupas?

A Neide, que tem uma cachorrinha Chiuaua, responde:

- Alguns até têm. A Florzinha tem. Ganhou uma hoje.

O rapazinho arregala os olhos:

-Quero ver. Tu me mostra?

A Neide vai buscar. Traz um vestidinho minúsculo, floreado:

- Olha só como é bem bonita. Foi a tua vovó que deu...

O guri franze a testa:

- Por que deu? Não servia mais para ela?

terça-feira, 20 de abril de 2010

Lenda urbana

Lenda Urbana




Uma vez era em que as crianças podiam brincar na rua. Sério, pode perguntar para sua avó. As casas não tinham grades altas. Muros, só para não ver a cara de vizinho chato, que chatos existem desde que o mundo é mundo. Cerca elétrica, então, era coisa de filme de ficção científica dos bem ruinzinhos, assim como telefones celulares, computadores e Play Station. Televisão, só em preto-e-branco. E só se podia assistir um pouquinho porque sempre tinha uma tia implicante dizendo “sai daí, guria, que faz mal para as vistas”.


Porque se importavam umas com as outras, as pessoas contavam muitas histórias. Tenho a impressão de que algumas eram inventadas com a exclusiva intenção de colocar freios nas nossas imaginações e limites territoriais para as nossas brincadeiras. Mas às vezes não era bem assim.

Uma dessas histórias, creio eu, foi inventada para que não brincássemos tanto na rua. Ora, naquela época, final da década de 1970, não havia nem um décimo do perigo que há hoje em brincar na rua, mas as mães, sempre exageradas, tinham medo do trânsito, o “grande” trânsito do interior. Pois bem. Diziam que, na cidade vizinha, havia uma Kombi conduzida por um homem de chapéu que, ao avistar crianças mal-educadas brincando na rua, parava imediatamente o veículo e, de dentro dele, saía uma imensa senhora de feições germânicas, a qual pegava um dos piás e o jogava para dentro do carro. Horas depois, voltavam e jogavam a vítima de volta, pálida, branquinha, com quase nenhum sangue. Era a temível “Kombi dos tiradores de sangue”. Nem é preciso dizer que fugíamos de Kombi como diabo da cruz. Havia quem jurasse já ter testemunhado o fato. Falavam até que o pai de um dos nossos vizinhos, que todo mundo chamava de subversivo, embora eu nem fizesse idéia do que isso significava, foi raptado um dia de manhã, quando saía para o trabalho, por essa Kombi. Ninguém nunca mais o viu.
A cor da Kombi variava: em algumas versões era branca, noutras bege, azul-claro com branco... Só faltou verde com bolinhas roxas, mas daí daria muito na cara que era invenção. Cada vez que alguém avistava uma Kombi entrando na nossa rua, dava o sinal de alerta: “A Kombi dos tiradores de sangue!”, ou “Vamos dar no pira!”, ou apenas “A Kombi!”. Eu não acreditava em nada daquela baboseira, mas achava muito divertido fugir das Kombis, buscando lugares cada vez mais inusitados para me esconder. No fundo, quando ia brincar na rua, ficava torcendo para passar uma Kombi – ainda mais se o meu time estava perdendo no jogo de caçador.

Um dia – por que sempre tem um dia? – veio uma Kombi bem devagarinho entrando na nossa rua, estalando de novinha! Eu é que vi primeiro. Mas não falei nada. Não demorou nadinha e alguém gritou, a plenos pulmões: “Pé na tábua! A Kombi!”. Puxa, bem na hora que eu iria acertar a bola no penúltimo sobrevivente do time adversário... De chateada que estava, resolvi não correr muito. Só um pouquinho, para cumprir a tradição. Entrei no pátio da casa da minha amiga Ângela e rapidamente decidi pela opção mais fácil: esconder-me subindo no ingazeiro que havia ali. Era uma árvore enorme – quando somos crianças tudo parece gigantesco – com a copa bem fechada. A Kombi veio vindo, veio vindo e ... diminuindo a velocidade! Não é que a Kombi entrou no pátio da casa da Angelinha? Meu Deus! O sinistro veículo parou bem ao ladinho da árvore. Comecei a tremer: “Ai, e se for verdade mesmo? Será que me viram aqui?”. Tentei olhar para o motorista, para ver se ele estava de chapéu, mas as lágrimas de pavor turvaram minha visão. Essa mania de duvidar ainda me mata. Só vi que um vulto masculino desceu. Nenhum sinal da mulher enorme.

- O que tu estás fazendo sozinha aí, guria?

Meu coração disparou: ai, Jesus, ele me viu. Nem olhei para o homem, de tanto medo.

- Queres ajuda para descer?

Ah, pois sim, ajuda! Eu queria era subir mais, e mais, e mais.... Então, ouvi a voz da minha amiga vindo de dentro de casa:

- Mãe, o pai chegou com o carro novo!

Era o Tio Hugo, com a Kombi que ele acabara de comprar. Eu, a valentona, nem reconheci sua voz. Mas que o pai da minha amiga tinha um gosto meio esquisito para carros, ah, isso tinha!
Do que ela gostava mais? Brincar na imaginação.



Viajava léguas e léguas – um livro na mão.


Se lhe dessem, coisa pouca, papel e caneta?


Ah, num segundo, criava todo um planeta.

terça-feira, 6 de abril de 2010

Caça ao ninho - 3B

As fotos da "caça ao ninho", da 3B, estão no site da IENH, na página da Fundação Evangélica.

O Fusca

Um dia após o Natal, a notícia arranca o menino do mundo dos carrinhos e do Hering Hast. Ele solta uma exclamação:


- Não, eu não quero ser tio!

O guri chora que se derrete. Não, não vai ao hospital ver sobrinho nenhum. Nem Chico nem Francisco. Mas por quê? Só o pai entende a resposta soluçada:

- Só tenho seis anos. Não quero ser velho.

O pai abana a cabeça, orgulhoso da engenhosidade do futuro engenheiro. Aninha o rapazinho no seu peito. Não, ele não ficaria velho. Nem morreria logo. Ninguém morreria: nem o guri, nem o pai. Era promessa selada com surpresa.

O pai leva-o até a frente da casa. De olhos tapados com as mãos enormes e calejadas do pai. O menino ouve o ranger do portão, o pai destapa os olhos do filho e anuncia:

- É nosso!

Um fusca. Azul, mas não do tom do Grêmio, que o pai não é nem bobo. Um fusca! Estalando de novinho. O vizinho grita um cumprimento, no que o pai responde:

- Anota, aí, Seu Mendes! 1974 foi meu ano: fico avô e compro com Fusca estalando de novinho! Tudo de uma vez só! Feliz ano novo pro Senhor também.

O rapazinho esquece a velhice súbita. Embarca no carro. Vai atrás. Que importa se o destino é o hospital? Era um Fusca, dum azul bonito. A mãe senta ao lado do pai. Ela puxa o espelho retrovisor e retoca o batom, que podem fazê-la avó, mas velha, acabada, nunca.

O sobrinho até que é bonitinho. O pai agora é avô. Fica mais doce. Aposenta-se. Deixa o filho às vezes dormir no carro. Pega o guri no meio da noite, ajeita-o na cama quentinha. O Fusca anda, todo dia. Missa, casa de amiga da mãe, chácara da vizinha, missa, casa, aniversário do neto, batizado das netas, casamento da filha, formatura do primeiro grau do rapazinho.

Os filhos resolvem trabalhar longe. O rapazinho resolve estudar longe. O Fusca muda de garagem, de estado. Todos mudam de casa. O Fusca leva as malas. Leva os netos para escola. Busca a filha na maternidade. Passeia. Todas as tardes. Cuida dos netos à noite. O Fusca precisa de chapeação. O rapazinho trabalha, o rapaz paga. Compra uns acessórios bacanas. O Fusca, orgulhoso, fica moderninho: rodados pintados de preto. Os netos, meia dúzia, bagunçam no carro. O avô, feliz, leva e traz. A avó senta ao lado do seu motorista.

O rapaz compra um carro. Não um Fusca: nada de rivais. Um Gol, novidade sem graça, bobagem por necessidade. O rapaz casa. Esconde as malas da viagem de lua-de-mel no porta-malas, longe da criatividade mordaz dos amigos. O Fusca é fiel escudeiro. O rapaz se faz engenheiro. O Fusca, contrariado, fica na garagem, que o pai está muito emocionado para dirigir naquela noite. O Fusca teve ímpetos de ir sozinho, mas essa já é outra história.

Certo dia, o Fusca se nega a sair da garagem. Rabugice tão aguda quanto a dor que o avô sente na cabeça. O avô cai de cama. O pai vira filho, criança de fralda. O Fusca não tem mais motorista, os netos, a mulher. Os netos não podem, não têm tempo. O rapaz decide pela venda, o doloroso pelo certo. O Fusca se vende para o vizinho da outra quadra. Lá de longe, os faróis redondos veem ambulâncias, carros de médicos, nutricionistas, fisioterapeutas. O carro do filho mais velho desaparece. A lataria precisa de reparos. O Fusca se vende para um vizinho do outro lado da rua. Está mais próximo, mas não vê os carros dos netos. Ninguém arruma o Fusca.

O Fusca se vende para o vizinho ao lado. Precisa ver o que está acontecendo. Os faróis alcançam seu dono. Piscam de raiva ao ver sua rival de duas rodas. O pai não está feliz com seu Fusca de duas rodas paralelas. O Fusca fumaça. Não pode levar a esposa, nem as amigas da esposa, nem as amigas das amigas. Ninguém daquela casa senta mais nos bancos. O estofamento precisa de reparos. O Fusca se vende para o vizinho dos fundos.

O Fusca espia o carro do rapaz. Vê uma cadeirinha de bebê. O novo dono pede para deixar o Fusca na garagem antiga. O motor estremece. Não, não pode. A mulher não tem como limpar suas manchas de óleo. O novo dono resolve vender o Fusca para o ferro velho.

O Fusca tem medo do guincho. Colocam-no sobre um caminhão. Não, ele não merece o desmanche. Colocam-no no chão. Quando pensa em queimar seus faróis, uma grande porta se abre e ele espia, temeroso, uma imensa garagem clara e limpa. Nenhum cheiro de óleo. Uns equipamentos esquisitos. Aquilo não era um desmanche. Vê umas peças reluzentes. Não, não seria desmachado, destroçado, dilacerado. Seria o céu dos Fuscas? Reconhece uma silhueta. Um certo conforto o invade. Sim, reconhece o calor daquela mão sobre sua lataria. Ouve uma voz que testemunhou engrossar:

- Quero tudo original. E azul bem escuro. Nada de azul Grêmio. Nem se façam de bobos.