O churrasco já estava servido, esfriando.Tio João, o churrasqueiro oficial, estava sério, como sempre. Na tevê, o jogo do Internacional continuava zero a zero. Maria colocou a maionese na mesa, sob o olhar de como-tu-te-atrasas-sempre da cunhada. Precisava quebrar o silêncio, tirar o foco de si e de suas trapalhadas:
- E a Fátima, está casada ainda ou não?
Cobrança de falta contra o Inter. Ana, solidária com a mãe, provocou:
- Ai, mãe, pergunta logo, direto pra tia Dulce. Ela sempre está bem informada...
O juiz marcou lateral a favor do Inter. Dulce não deu a costumeira resposta imediata. Estava com a boca cheia. Ana jurou que vira um sorriso de soslaio no tio João. Dulce mastigou um pouco. A maionese estava deliciosa, mas isso ela nunca diria. Jogou a garfada de maionese para o canto da boca. O zagueiro evitou o gol. Dulce babou:
- Queres saber pela lei de Deus ou pela lei dos homens?
O juiz ladrão apitou pênalti em favor do time adversário. Maria estava contra a parede. Ana se irritou com o sorriso jocoso da tia. Tio João enrubesceu. Deu violentas batidas no sal da costela. Como envenenar o próprio veneno feito mulher? Mulher e velha, que o diabo é perigoso não por ser diabo, mas por ser velho.
Silêncio de bocas carnívoras, disfarçado por um “quem quer picanha?”. O jogador perdeu o pênalti. Ana queria, queria carne. Língua, de preferência. Daria para os cachorros. Os da vizinha, claro, que latem a noite toda. Maria disfarçava o embaraço, arrumando pratos e talheres para a sobremesa. Ana não gostava da submissão da mãe:
- Senta aí e come, mãe. Tua maionese está di-vi-na!
O time fez um gol. Todos gritaram, comemorando. O juiz marcou impedimento.
- E então, Maria – provocou Dulce -, tu não me respondeu...
Ana queria corrigir: é “respondeste”, não “respondeu”, ó, anta quadrada. Não poderia, claro, era perigoso mexer com tia Dulce. Ninguém mexia com ela, ninguém seria louco de cair em desgraça com ela. O pai de Ana exigiu: o irmão que deixasse de ser egoísta, queria o pedaço do churrasqueiro. Nunca Ana gostou tanto de uma brincadeira desgastada. Riso geral, convulsionado e amarelo. Menos do churrasqueiro. Tio João, lá no fundo da sala de churrasco, continuava sério.
- A de Deus ou a dos homens, Maria?
Ouviu-se uma faca ranger no prato. O lateral direito perdeu um gol, cara a cara com o goleiro. Uma defesa es-pe-ta-cu-lar. Maria fez ouvidos moucos. O pai de Ana pediu mais farinha, que a costela estava gorda. Ana queria levantar-se. Queria pegar aquela língua. Aquele pedaço de carne inútil não mais subjugaria sua mãe. Nem sua mãe, nem mais ninguém. O cheiro da carne assando dava-lhe ímpetos de. O juiz ladrão marcou mais um pênalti para os adversários. Gritos de “vai errar, vai errar, Deus não joga mas fiscaliza”. Tio João tomou um gole de vinho, grande e redondo, molhando as palavras:
- Ô, Dulce, a lei dos homens é obrigatória; a de Deus, facultativa.
O Inter fazia um contra-ataque es-pe-ta-cu-lar, amigos da Rede. Ana e o tio olharam-se, satisfeitos e cúmplices. Mais rugas na testa de Dulce apagaram o sorriso malicioso. Ela deixou no ar um “Ahn”. Pênalti, agora em favor do Inter. Ana viu que a mãe tomava ar para falar algo. Não, não poderia. Em um segundo, Ana levantou-se, ergueu a taça de vinho tinto e doce e propôs:
- Um brinde ao tio mais inteligente que alguém pode ter!
Vivas e aplausos. É pique, é pique... Irmãos, sobrinhos, sobrinhas e cunhadas festejaram Tio João. O centroavante perdeu o pênalti. O churrasqueiro pedia “menos, menos”. O sorriso de Dulce era amarelo como as gemas usadas na maionese. As bochechas ardiam vermelhas. Ana olhava, vitoriosa, para a oponente, que alfinetou:
- E para a tia mais querida, nada?
O time adversário armava um contra-ataque rápido.
- Claro, tia Dulce, até vou encher mais o copo – respondeu Ana.
Ana pegou a garrafa, aproximou-se da tia. As bandeiras estão tremulando, tremulando, torcida colorada, avisava o locutor esportivo. Ao mesmo tempo, tio João precipitou-se da churrasqueira, trazendo queijo assado:
- Esse aqui tem que ser ligeiro, antes que caia do espeto.
O ágil churrasqueiro esbarrou em Ana, que caiu sobre Dulce, derramando o vinho tinto sobre a blusa branca imaculada e a medalhinha de Nossa Senhora de Schöenstatt. Ana caiu na gargalhada. O tio desculpou-se:
- Desculpa, Dulce, mas bati sem querer. Essa guria aí, nem pode beber, de fraca que é. Eu chamo um táxi pra ti, não podes ficar molhada assim. De mais a mais, estás muito mais gorda que a Maria, ela nem tem como te emprestar nada.
O narrador esganiçava: gooooooooooooooool do Inter, do Internacional de Porto Alegre. Um primo de Ana, Carlos, propôs novo brinde:
- À prima Ana, a volante, e ao Tio João, centroavante matador, os maiores jogadores da nossa família.
Es-pe-ta-cu-lar foi a narração desse jogo familiar. Cheguei a visualizar a tia Dulce com as bochechas gordas e vermelhinhas e a blusa branca tingida de vinho e o tio João com uma carinha de safado olhando o gol para o qual ele deu o passe final (sem linha de impedimento).
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