Escrevi este texto no ano passado. Resolvi "requentá-lo". Lá vai...
Ela trocou o plantão na pediatria. Preferia a ala psiquiátrica. Bem mais confortável. Suicidas incompetentes, gente surtada não lhe amoleciam o coração. Tinha prazer em amarrá-los. Queriam sofrer? Uma veia mal procurada, um nó mais apertado do que o necessário, esparadrapo arrancado sem dó. O básico da maldade. A judiaria miúda lava-lhe a alma.
Conheceria ̶ até que enfim! ̶ a criminosa do momento. A sensação das páginas policiais. Baleou o namorado do ex-marido e a criança que eles adotaram. O ex-marido enfartou antes de ser alvejado. Matou os três. Depois cortou os pulsos. Na horizontal, a pulha. A assassina seria sua diversão do sábado à noite. Erraria muitas vezes a veia. Entrou na ala judicial assoviando um tema de desenho animado. O policial roncava na cadeira. Precisou acordá-lo. Mal estendeu o braço, alcançando a chave da porta. Teve dificuldades para desemperrar a porta. Fez força e acabou caindo sobre a cama. A assassina não estava lá. Acionou a campainha, avisando os colegas. As cordas estavam intactas. Desamarrou-se.
Na janela, um vulto. A criminosa equilibrava-se sobre uma pequena sacada desativada. Sétimo andar. Prédio velho. Lascas de cimento caíam sob os pés da pretensa suicida. Se ela não se jogasse, a sacada desabaria. Morte iminente. A infeliz não pagaria pelos crimes.
- Dá a mão. Eu te tiro daí. Vai ficar tudo bem. - disse ela, estendendo o braço.
- Casa comigo. Tu casas comigo? - Propôs, aos gritos, a potencial suicida.
Era o que lhe faltava. Ainda bem que estava escuro e frio. Ninguém no pátio. Nunca gostou tanto da demora dos colegas no socorro. “Pelo menos, fui pedida em casamento no sábado à noite”, pensou.
- Caso, caso, e compro um cachorro. Um não, dois: um York e um Poodle. Me dá a mão e a gente casa agora. - falou, sustentando o braço no ar.
Mais pedaços de cimento caíram. A morte aproximava-se. O vento gelado cortava-lhe a cara. A bandida só de camisola. Nem se mexia.
- Mentira. - Gritou a criminosa, babando-se toda. - O padre não vai querer casar nós duas. Não vai querer, não vai querer... - Repetia.
O policial entrou, cambaleando, no quarto. Estancou com a cena.
- Olha o padre ai para casar a gente. Viu como não minto? Casa a gente, seu padre? - Disse a enfermeira, piscando o olho para o policial.
O policial assustou-se. Gritou um “Não”. Disse que buscaria ajuda. Correu. A suicida flexionou os joelhos. Escorregou o corpo pela parede. Sentou-se na ponta da sacada sem proteção. Ameaçou:
- Vou me jogar!
A enfermeira mal escondia a raiva do policial. Seus olhos ardiam com o vento. O braço estendido doía
- Se tu te matares, eu me caso com outro e daremos belas risadas da tua cara. A trouxa que se matou. Pensa bem! - Provocou a enfermeira.
- Não te quero mais. Mentirosa duma figa. Feiosa, nem te queria. Não gosto de mulher. Muito menos de enfermeira pobretona. - Despejou a potencial suicida.
A enfermeira perdeu as estribeiras. Levar fora até de louca surtada era demais.
- Nem eu gosto de mulher, muito menos de uma assassina de criança. Nem pra te matar serviu, infeliz! Tu não tens coragem. Vamos, pula! Quero ver! - Ordenou, com metade do corpo para fora da janela.
A criminosa, enfurecida, pulou no braço da enfermeira. Enfiou-lhe as unhas. Pedaços de cimento caíram. A sacada desabou. Estava suspensa. A enfermeira urrou de dor. Cuspiu nos olhos da assassina.
- Auf Wiedersehen! - Sentenciou.
“Enfermeira heroína tenta salvar suicida” foi a manchete dos jornais.
Depois eu que sou ruim, né?
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