quinta-feira, 30 de agosto de 2012

Infância

Banho de tanque às escondidas
Mangueira no jardim
Piscina de plástico
- gomos coloridos que o homem mais forte do mundo enchia com dois ou três soprões -
Minha infância teve sede.
Minha infância foi de água e ar,
terra e sombra confeitadas de sol mole e feliz,
tempestades e bonanças sob arco-íris gelados.
E de avô com coração cheio de balas.
E de avó com cabeça cheia de rezas e quebrantos.
Minha infância sou eu.

quinta-feira, 2 de agosto de 2012

Ilustração do Sinovaldo para "Chi, Chuá e Ploc" - texto do II fascículo do Ler... de 2012







Chi era um pingo de chuva transparente, geladinho. Tinha muitos, muitos irmãos que moravam com ele na Mamãe Nimbus. Ele não contava para ninguém, mas Ploc e Chuá eram os seus favoritos. Também... eles tinham cada idéia!
Ploc sonhava em chover pesadão: queria deixar todos os gatos mais do que pingados. Já Chuá era ainda mais sonhador: queria ser tempestade. Chi queria apenas chover fininho, quem sabe escorrer pelos cabelos de uma menina bonita ou regar algum jardim secreto.
Mas tinha uma coisa que nenhum dos três queria: ser engolidos por uma daquelas coisas. Ouviram falar de muitos pingos lindos como eles que se perderam para sempre nas tripas daqueles monstros sujos, fedorentos. Chi nem olhava para baixo com medo de, na tonturinha, cair em um deles. Eram muitos, de todos os tamanhos e de todo o tipo de feiuras.  
Quando Mamãe Nimbus olhava para baixo e via um monstro horroroso daqueles, serpenteando, ficava nervosa. Segurava-se com toda força para não chover. Pedia para o compadre Vento Norte ajudá-la a salvar seus filhinhos. Ele cumpria seu dever de padrinho e soprava, soprava a comadre e seus afilhados pra longe do monstro engolidor de pingos.
Em outras terras e águas mais bonitas, ela soltava a filharada. Lá se iam os pinguinhos, todos contentes, levar a sua transparência pra matar a sede de planta, bicho e gente. Viviam cada aventura! Conheciam cada lugar esquisito! Engordavam riozinhos faceiros,  onde brincavam de ciranda com peixes, pedras, limo...
Depois, vinha outro compadre, o Sol, estendia seus cabelos quentes e dourados e recolhia toda a pingarada.
Mas, teve um dia....
O Compadre Vento Norte soprou Mamãe Nimbus bem pro alto, para não ter o perigo de ela chover seus filhinhos sobre monstro serpenteador, e foi ajudar outras comadres nuvens que também precisavam dele. Veio a Comadre Brisa e puxou fofoca com a Mamãe Nimbus. Enfileiravam uma história na outra. Todos os pingos rolavam, pulavam de tanto rir. O Compadre Sol, curioso e desconfiado que só ele, espichou seus cabelos quentes e dourados para ouvir melhor a conversa. E se juntaram outras Donas Nuvens, e Senhoritas Brisas, e Ventinhos de todos os lados.
Foi tanta potoca, tanta fofoca que o Senhor Tempo não gostou nada daquilo. Quando as Donas Nuvens se deram conta da cara feia do chefe, levaram um susto tão grande, mas tão grande que até bateram umas nas outras. A confusão foi tanta que até apareceram os Raios e Trovões.
A confusão dos Ventos jogou Mamãe Nimbus para bem perto da Terra. Ploc olhou para baixo e avisou:
–  O Monstro! O Monstro!
Mamãe Nimbus se contorceu toda para segurar seus filhos. Chuá tremelicou. Chi olhou para baixo e cutucou os irmãos:
– Olhem aquela gente na beira do monstro! Por que estão dançando?
– Elas estão olhando pra nós! E acenando! ­ – observou Ploc.
Chuá, que gostava e gostava de uma festa, espiou com um olho só e perguntou:
– Aquilo que é a dança da chuva? Tô nessa! ­– E já se preparou para o salto!
Chi quis segurá-lo: e o perigo? E o monstro? Mas era tarde demais: Chuá choveu. Todos os irmãos saltaram para socorrê-lo. Chuá, então, realizou seu sonho de formar tempestade.
No meio do caminho até a terra, Ploc e Chi o alcançaram. Os três tilintaram na cumbuca segurada pela moça. Ela os levou, junto com outros irmãos, até o pé de uma roseira. Todos eles foram dados de beber. Subiram pelas raízes, pelo caule e foram hidratar um lindo botão, que, dois dias depois, se abriu todo em gomos brancos e perfumados.
Quando o compadre Sol se espreguiçava, aprontando-se para jogar seus cabelos dourados e quentes e recolher os afilhados, a moça, toda cheia de perfumes e de rendas, colheu a rosa. Passou um laço de fita. Deu o braço para o pai, entraram em uma casa alta, cheia de flores e músicas. Mais tarde, a moça jogou a rosa no ar. Outra moça a agarrou. Chi apaixonou-se por aquele narizinho fininho e arrebitado que os cheirou. A moça do nariz bonito enfeitou os cabelos com a flor.
Chi, Ploc e Chuá dançaram que dançaram. Remexeram-se para lá e para cá. A flor escorregava aos poucos dos cabelos da moça bonita. Os irmãos estavam prestes a pular de dentro das pétalas. Outros pingos surgiam sabe-se lá de onde e escorriam pelo pescoço e pela testa perfumados de cravo e canela. Ela chegou perto do Monstro. Era só para se refrescar, mas disso os irmãos pingos não sabiam. E se caíssem lá dentro?
 Foi quando os cabelos do sol encontraram os cabelos da moça. Namoraram um brilho lindo.
Era hora de pingos voltarem para casa. 

quinta-feira, 14 de junho de 2012

Chi, Chuá e Ploc


Chi era um pingo de chuva transparente, geladinho. Tinha muitos, muitos irmãos que moravam com ele na Mamãe Nimbus. Ele não contava para ninguém, mas Ploc e Chuá eram os seus favoritos. Também... eles tinham cada idéia!
Ploc sonhava em chover pesadão: queria deixar todos os gatos mais do que pingados. Já Chuá era ainda mais sonhador: queria ser tempestade. Chi queria apenas chover fininho, quem sabe escorrer pelos cabelos de uma menina bonita ou regar algum jardim secreto.
Mas tinha uma coisa que nenhum dos três queria: ser engolidos por uma daquelas coisas. Ouviram falar de muitos pingos lindos como eles que se perderam para sempre nas tripas daqueles monstros sujos, fedorentos. Chi nem olhava para baixo com medo de, na tonturinha, cair em um deles. Eram muitos, de todos os tamanhos e de todo o tipo de feiuras.  
Quando Mamãe Nimbus olhava para baixo e via um monstro horroroso daqueles, serpenteando, ficava nervosa. Segurava-se com toda força para não chover. Pedia para o compadre Vento Norte ajudá-la a salvar seus filhinhos. Ele cumpria seu dever de padrinho e soprava, soprava a comadre e seus afilhados pra longe do monstro engolidor de pingos.
Em outras terras e águas mais bonitas, ela soltava a filharada. Lá se iam os pinguinhos, todos contentes, levar a sua transparência pra matar a sede de planta, bicho e gente. Viviam cada aventura! Conheciam cada lugar esquisito! Engordavam riozinhos faceiros,  onde brincavam de ciranda com peixes, pedras, limo...
Depois, vinha outro compadre, o Sol, estendia seus cabelos quentes e dourados e recolhia toda a pingarada.
Mas, teve um dia....
O Compadre Vento Norte soprou Mamãe Nimbus bem pro alto, para não ter o perigo de ela chover seus filhinhos sobre monstro serpenteador, e foi ajudar outras comadres nuvens que também precisavam dele. Veio a Comadre Brisa e puxou fofoca com a Mamãe Nimbus. Enfileiravam uma história na outra. Todos os pingos rolavam, pulavam de tanto rir. O Compadre Sol, curioso e desconfiado que só ele, espichou seus cabelos quentes e dourados para ouvir melhor a conversa. E se juntaram outras Donas Nuvens, e Senhoritas Brisas, e Ventinhos de todos os lados.
Foi tanta potoca, tanta fofoca que o Senhor Tempo não gostou nada daquilo. Quando as Donas Nuvens se deram conta da cara feia do chefe, levaram um susto tão grande, mas tão grande que até bateram umas nas outras. A confusão foi tanta que até apareceram os Raios e Trovões.
A confusão dos Ventos jogou Mamãe Nimbus para bem perto da Terra. Ploc olhou para baixo e avisou:
–  O Monstro! O Monstro!
Mamãe Nimbus se contorceu toda para segurar seus filhos. Chuá tremelicou. Chi olhou para baixo e cutucou os irmãos:
– Olhem aquela gente na beira do monstro! Por que estão dançando?
– Elas estão olhando pra nós! E acenando! ­ – observou Ploc.
Chuá, que gostava e gostava de uma festa, espiou com um olho só e perguntou:
– Aquilo que é a dança da chuva? Tô nessa! ­– E já se preparou para o salto!
Chi quis segurá-lo: e o perigo? E o monstro? Mas era tarde demais: Chuá choveu. Todos os irmãos saltaram para socorrê-lo. Chuá, então, realizou seu sonho de formar tempestade.
No meio do caminho até a terra, Ploc e Chi o alcançaram. Os três tilintaram na cumbuca segurada pela moça. Ela os levou, junto com outros irmãos, até o pé de uma roseira. Todos eles foram dados de beber. Subiram pelas raízes, pelo caule e foram hidratar um lindo botão, que, dois dias depois, se abriu todo em gomos brancos e perfumados.
Quando o compadre Sol se espreguiçava, aprontando-se para jogar seus cabelos dourados e quentes e recolher os afilhados, a moça, toda cheia de perfumes e de rendas, colheu a rosa. Passou um laço de fita. Deu o braço para o pai, entraram em uma casa alta, cheia de flores e músicas. Mais tarde, a moça jogou a rosa no ar. Outra moça a agarrou. Chi apaixonou-se por aquele narizinho fininho e arrebitado que os cheirou. A moça do nariz bonito enfeitou os cabelos com a flor.
Chi, Ploc e Chuá dançaram que dançaram. Remexeram-se para lá e para cá. A flor escorregava aos poucos dos cabelos da moça bonita. Os irmãos estavam prestes a pular de dentro das pétalas. Outros pingos surgiam sabe-se lá de onde e escorriam pelo pescoço e pela testa perfumados de cravo e canela. Ela chegou perto do Monstro. Era só para se refrescar, mas disso os irmãos pingos não sabiam. E se caíssem lá dentro?
 Foi quando os cabelos do sol encontraram os cabelos da moça. Namoraram um brilho lindo.
Era hora de pingos voltarem para casa. 

quarta-feira, 23 de maio de 2012

Aulas para a Gurizada: Trabalhos sobre o texto "Uma avó sinistra" de Luh Raupp

Fiquei muito feliz e emocionada ao ver as fotos do trabalho que a Profe Maguida, minha querida ex-aluna, está realizando com seus alunos. O link é o que segue:

Aulas para a Gurizada: Trabalhos sobre o texto "Uma avó sinistra" de Luh Raupp

Cenas de um final anunciado


Ato 1. Cena 1.

Festa de aniversário infantil.
Crianças brincando, correndo, pulando.
Os pais sentados, bebericando qualquer coisa.
Sem preocupações.


Ato 2. Cena 1.

Shopping center.
O filho ganha um McLanche feliz.
Os pais erguem as enormes canecas de chope e brindam com o copo de coca-cola do filho.
Sem estresse.

Ato 3. Cena 1.

Adolescentes em casa. Os pais patrocinam e compartilham o “aquece”. Afinal, o filhão tem que se soltar na balada. Levam, buscam, limpam eventual vômito.
Preocupaçãozinha à toa: tudo segue normal.

Ato 4. Cena única.

O filho tem 18 anos, um carro, uma carteira de habilitação e muitas latas de cerveja no banco da frente e no de trás. 
A mãe reza. O pai dá bronca.
O filho ri: preocupaçãozinha à toa.

terça-feira, 15 de maio de 2012

Programação do Seminário alusivo aos 10 anos do curso de Letras da Faccat

Para ampliar, basta clicar sobre a imagem.
Inscrições para comunicadores até 23/05. 

terça-feira, 8 de maio de 2012

Maio

É maio.  Só ontem significou maio para mim.  Sorriram as duas primeiras camélias do ano. Assim, em par. Como elas, as avós. Todo ano uma surpresa tecida de sol em gomos brancos. Todo ano sou maio outra vez. Preciso ser maio para suportar todos os dezembros e marços. Preciso ser maio para pôr asas na leveza de ser eu mesma, ramos, flores e raízes.











terça-feira, 10 de abril de 2012

Vitória (versão reduzida)

VITÓRIA

Aula de Educação Física era assim: sempre chegava a hora dolorosa. Não, não era a dos abdominais, que isso Vitória até aguentava. A dor era de outro tipo: ser a última escolhida na divisão dos times de vôlei. Eram 19 meninas, juntando as sétimas A e B. Assim, dava três times e sobrava uma pessoa.
            – Olha, Vitória, não leva a mal – um dia disse Diana. ­– Tu és um amor, mas vôlei é vôlei.
            “E Matemática é Matemática, Gramática é Gramática”, pensou Vitória. “Ai de quem me pedir explicações extras ou cola nas provas de novo! Juro que não dou mais!”. Mas Vitória tinha um coração enorme. E continuava a ajudar todo mundo em todas as matérias. Aí se achava importante.
            Um dia, Dona Lakshmi, a professora de Educação Física, demorou para chegar à quadra. As meninas ­– exceto Vitória, claro – esperavam impacientes. Chegou trazendo consigo a bibliotecária, Dona Gênizah. Ambas estampavam sorrisos de quem estava aprontando alguma, vai saber... Alguém entendia as professoras? Dona Lakshimi mandou que todas fizessem o aquecimento, menos Vitória. As professoras olharam para a menina e, em seguida, entreolharam-se, sorrindo cumplicidades. Dona Lakshmi falou:
            – Vitória, querida, preciso da tua ajuda. Como os jogos olímpicos se aproximam, precisamos montar um mural com o histórico desses jogos, curiosidades, enfim... A Dona Gênizah disse que tu és boa nisso e vai te orientar. Neste mês, nas minhas aulas, a tua tarefa é essa, pode ser? Confio em ti.
            Vitória só abanou positivamente a cabeça, riscando o chão com o pé. Por dentro, enxergava-se beijando Dona Lakshmi, abraçando Dona Gênizah, pulando mais alto que as bloqueadoras do vôlei. Poderia ser? Mas claro que poderia ser. A Dona Lakshmi nunca teve tampouco teria de novo um mural tão... tão... Vitória não sabia o adjetivo, só sabia que seria no superlativo absoluto sintético erudito.
            Vitória flutuou até a biblioteca. Quando se acomodava no seu lugar cativo, Dona Gênizah levou Vitória até o fundo da sala. Mexeu um livro grande, pesado que, surpresa, a garota jamais havia visto. Um alçapão se abriu no teto e, de lá de cima, alguém jogou uma escada de cordas. Vitória admirou-se da agilidade de Dona Gênizah em subir a estranha escada. Envergonhada, engoliu o medo de alturas e foi atrás. Qualquer coisa era menos assustadora do que jogo de vôlei.
            Quando os olhos se acostumaram com a forte luminosidade, branca, pálida, viu um imenso salão cujo piso era todo coberto com livros e papéis soltos. Rabiscos e anotações mesclavam-se a páginas impressas. Vestidas de longas túnicas brancas, cinco meninas aproximaram-se. Dona Gênizah fez as apresentações:
            – Meninas, essa é a Vitória, da turma 7B, como eu já havia falado a vocês. Aqui, ela se chamará Athena. Ninguém se chama aqui pelo nome de registro, isso é regra explícita. E também sabemos que tu guardarás sigilo. Do contrário, passarias por maluca. Athena, essas são Minerva, da 6B, Tara, da 8C, Tarini, da 21A, Mahakala, da 22B, e Saravasti, da 23C. 
Todas inclinaram suas cabeças e flexionaram seus joelhos, em uma saudação de boas-vindas. Dona Gênizah bateu no ombro esquerdo de Vitória-Athena, e o uniforme transformou-se em uma diáfana túnica branca. A menina assustou-se:
            – Trocar de roupa para um só período, Dona Gênizah? Já, já vai bater para a outra aula...
            As outras meninas sorriram, doces e delicadas. Mahakala, serena, explicou:
            – Aqui, no Grande Sótão, o tempo passa diferente, Athena..
            Dona Gênizah explicou:
            – A missão inicial de Athena é o nosso décimo primeiro trabalho. Do sucesso dele depende também o cumprimento do décimo segundo. Então, estaremos livres.
            Todas se puseram a vasculhar aqueles papéis antigos. As palavras e as ideias dançavam no ar em um gracioso balé de rara agilidade e força. Era preciso também ter a mente ágil e forte para capturá-las. Em pouco tempo, desenhos, gráficos, histórias e mais histórias estavam à disposição dos olhos e dos ouvidos humanos.
            O mural solicitado por Dona Lakshmi converteu-se em uma grande exposição. Para entrar, o público precisava passar por um grande túnel branco, todo decorado com desenhos alusivos aos jogos antigos. Lá dentro, a leitura dos textos preparados pelas seis meninas provoca um efeito estranho sobre as pessoas. Todos saíam da exposição inebriados e inexplicavelmente em paz. Os que que entrassem, claro. Porque nem todos quiseram entrar “na exposiçãozinha boba que aquelas ‘nerds’ que não sabem nem segurar uma bola inventaram só para matar as aulas de Educação Física”. Era o caso de Klara e Karin, as duas melhores jogadoras de vôlei da escola. Paradas na porta, desafiaram Vitória:
          – E daí, bobinha, sabia que quando toda essa palhaçada terminar tu vai ter que voltar pras aulas de Educação Física? Daí tu tá roubada, porque meus saques po-de-ro-sos podem ir parar nessa tua linda cabecinha tan-tan, tá ligada? – disse Klara.
            Enquanto isso, Karin puxava Klara pela blusa, dizendo “Vamos, vamos”. Klara, disse:
            – Claro que vamos sair desse circo, mas não antes sem fazer isso...
            “Isso” significava arremessar um lindo vaso grego da avó de Vitória que enfeitava a entrada. Ela, vendo que o vaso se espatifaria contra a parede, jogou-se e conseguiu apará-lo. O professor de Educação Física do terceiro ano, que assistia a tudo, exclamou:
            – Que defesa! Que defesa! Tu precisas treinar no nosso time de Handebol! Serias uma goleira e tanto!
            Dona Gênizah e Dona Lakshimi, aparecendo do nada, chamaram todas as meninas do Grande Sótão e declararam:
            ­– Cumpriu-se a décima segunda tarefa! Agora somos livres para estudarmos o que quisermos. 

segunda-feira, 2 de abril de 2012

Para pré-adolescentes: "Vitória"

VITÓRIA
Aula de Educação Física era assim: sempre chegava a hora dolorosa. Não, não era a dos abdominais, que isso Vitória até aguentava. A dor era de outro tipo: ser a última escolhida na divisão dos times de vôlei. Eram 19 meninas, juntando as sétimas A e B. Assim, dava três times e sobrava uma pessoa, já que qualquer um sabe que 19 dividido por seis dá três e resta um. Do resto, cada time tinha direito a 0,3333333. Mas se ninguém queria Vitória nem inteira, muito menos dividida.

– Olha, Vitória, não leva a mal – um dia disse Diana. – Tu és um amor, mas vôlei é vôlei.

“E Matemática é Matemática, Gramática é Gramática”, pensou Vitória. “Ai de quem me pedir explicações extras ou cola nas provas de novo! Juro que não dou mais!”. Mas Vitória tinha um coração enorme. E continuava a ajudar todo mundo em todas as matérias. Aí se achava importante. Algumas colegas, solidárias, tentaram ajudá-la com o vôlei. Foram à quadra nos horários de folga, treinaram fundamentos, semanas após semanas. E nada de Vitória acertar um saque. Nem um sa-que-zi-nho só. “A bola tem vida própria, só pode ter!”, chegou Vitória a constatar, antes de cair no choro no meio da quadra. O pior, mesmo, era quando alguém faltava, torcia o pé ou coisa parecida. Daí Vitória era obrigada a jogar. Nenhuma menina das sétimas A e B daquela escola matava aula de Educação Física por puro medo de Vitória precisar jogar. Só em caso extremo, com atestado médico e tudo. Ela notava o olhar piedoso da professora. Dona Lakshmi segurava seus dois braços, olhava bem nos olhos e dizia alguma variação do seguinte:

– Faz o que tu podes! Presta atenção e te esforça. Mas, pelo amor de Deus, vê se não vai te machucar ou desmaiar de novo!

Um dia, Dona Lakshmi demorou para chegar à quadra. As meninas – exceto Vitória, claro – esperavam impacientes. Chegou trazendo consigo a bibliotecária, Dona Gênizah. Ambas estampavam sorrisos de quem estava aprontando alguma, vai saber? Alguém entendia as professoras? Dona Lakshimi mandou que todas fizessem o aquecimento, menos Vitória. As professoras olharam para a menina e, em seguida, entreolharam-se, sorrindo cumplicidades:

– Temo a tarefa certa para ela, não é, Gênizah?

– Certíssima, Lakshmi.

Vitória não sabia para onde olhar. Dona Gênizah explicou:

– Vitória, querida, preciso de tua ajuda. Como os jogos olímpicos se aproximam, precisamos montar um mural com o histórico desses jogos, curiosidades, enfim... A Dona Gênizah disse que tu és boa nisso e vai te orientar. Neste mês, nas minhas aulas, a tua tarefa é essa, pode ser? Confio em ti.

Vitória só abanou positivamente a cabeça, riscando o chão com o pé. Por dentro, enxergava-se beijando Dona Lakshmi, abraçando Dona Gênizah, pulando mais alto que as bloqueadoras do vôlei. Poderia ser? Mas claro que poderia ser, não havia dúvidas de que aquela era a notícia do ano. Do ano não, da sua vida. Queria chegar logo em casa para contar à sua mãe. A Dona Lakshmi nunca teve tampouco teria de novo um mural tão... tão... Vitória não sabia o adjetivo, só sabia que seria no superlativo absoluto sintético erudito.

Vitória flutuou até a biblioteca. Quando Vitória se acomodava no seu lugar cativo, Dona Gênizah pegou a sua mão e disse:

- Não, de hoje em diante seu lugar não é aqui...

A bibliotecária levou Vitória até o fundo da sala. Mexeu um livro grande, pesado que, surpresa, a garota jamais havia visto. Um alçapão se abriu no teto e, de lá de cima, alguém jogou uma escada de cordas. Vitória admirou-se da agilidade de Dona Gênizah em subir a estranha escada. Envergonhada, engoliu o medo de alturas e foi atrás. Qualquer coisa era menos assustadora do que jogo de vôlei.

Quando os olhos se acostumaram com a forte luminosidade, branca, pálida, viu um imenso salão cujo piso era todo coberto com livros e papéis soltos. Rabiscos e anotações mesclavam-se a páginas impressas. Vestidas de longas túnicas brancas, cinco meninas aproximaram-se. Dona Gênizah fez as apresentações:

– Meninas, essa é a Vitória, da turma 7B, como eu já havia falado a vocês. Aqui, ela se chamará Athena. Ninguém se chama aqui pelo nome de registro, isso é regra explícita. E também sabemos que tu guardarás sigilo. Do contrário, passarias por maluca. Athena, essas são Minerva, da 6B, Tara, da 8C, Tarini, da 21A, Mahakala, da 22B, e Saravasti, da 23C.

Todas inclinaram suas cabeças e flexionaram seus joelhos, em uma saudação de boas-vindas. Dona Gênizah bateu no ombro esquerdo de Vitória-Athena, e o uniforme preto, branco e amarelo transformou-se em uma diáfana túnica branca. A menina assustou-se:

– Trocar de roupa para um só período, Dona Gênizah? Já, já vai bater para a outra aula...

As outras meninas sorriram, doces e delicadas. Mahakala, serena, explicou:

– Aqui, no Grande Sótão, o tempo passa diferente, Athena.. Não perderás aula alguma. Confie, apenas.

Dona Gênizah explicou:

– A missão inicial de Athena é o nosso décimo primeiro trabalho. Do sucesso dele depende também o cumprimento do décimo segundo. Então, estaremos livres para estudarmos o que quisermos.

Todas se puseram a vasculhar aqueles papéis antigos. As palavras e as ideias dançavam no ar em um gracioso balé de rara agilidade e força. Era preciso também ter a mente ágil e forte para capturá-las. Em pouco tempo, desenhos, gráficos, histórias e mais histórias estavam à disposição dos olhos e dos ouvidos humanos. Mas era preciso selecioná-los: Dona Gênizah sabia que nem todos os olhos humanos estavam prontos para o grande espetáculo do conhecimento profundo e elevado.

O mural solicitado por Dona Lakshmi converteu-se em uma grande exposição. No solene dia da inauguração, todos viam, lado a lado, não Athena, Minerva, Tara, Tarini, Mahakala e Saravasti, mas apenas Vitória, Alessandra, Júlia, Letícia, Andréia e Cláudia, as “nerds” de sempre. As meninas, no entanto, sabiam-se poderosas, e precisavam concentrar-se para não chamarem umas às outras pelos seus nomes do Grande Sótão.

Para entrar na exposição, o público precisava passar por um grande túnel branco, todo decorado com desenhos alusivos aos jogos antigos. Lá dentro, a leitura dos textos preparados pelas seis meninas provoca um efeito estranho sobre as pessoas. Era como se, de repente, todos se descobrissem fazendo parte de um todo, de um congraçamento maior. Era como se fossem guerreiros exaustos das batalhas e ali fizessem uma pausa. Todos saíam da exposição inebriados e inexplicavelmente em paz. Todos que entrassem, claro. Porque nem todos quiseram entrar “na exposiçãozinha boba que aquelas ‘nerds’ que não sabem nem segurar uma bola inventaram só para matar as aulas de Educação Física”. Era o caso de Klara e Karin – ou seria Juno e Hera? – as duas melhores jogadoras de vôlei da escola. Paradas na porta, desafiaram Vitória:

– E daí, bobinha, sabia que quando toda essa palhaçada terminar tu vai ter que voltar pras aulas de Educação Física? Daí tu tá roubada, minha filha, porque meus saques po-de-ro-sos podem ir parar nessa tua linda cabecinha tan-tan, tá ligada? – disse Klara.

Enquanto isso, Karin puxava Klara pela blusa, dizendo “Vamos, vamos”. Klara, disse:

– Claro que vamos sair desse circo, mas não antes sem fazer isso...

“Isso” significava arremessar um lindo vaso grego da avó de Vitória. Vitória, vendo que o vaso se espatifaria contra a parede, jogou-se e conseguiu apará-lo. O professor de Educação Física do terceiro ano, que assistia a tudo, exclamou:

– Que defesa! Que defesa! Tu precisas treinar no nosso time de Handebol! Serias uma goleira e tanto!

Dona Gênizah e Dona Lakshimi, aparecendo do nada, chamaram todas as meninas do Grande Sótão e declararam:

– Cumpriu-se a décima segunda tarefa! Agora somos livres para estudarmos o que quisermos.

terça-feira, 27 de março de 2012

Texto de L. A. Fischer na ZH de hoje, 27/03/12 : subscrevo sem pestanejar

Excelente o texto do Fischer na Zero Hora de hoje! A leitura literária e o ensino formal de Literatura precisa (re)tomar seu devido, legitimado e reconhecido lugar nas escolas - e não só na conversa fiada de que é "tudo integrado" - que é para inglês ver. Assim, boa parte dos professores faz de conta que trabalha com Literatura. Há que se exigir também tal espaço inclusive na grade curricular das escolas, da qual vem sendo paulatinamente excluída.E, claro, devem ser formados - e selecionados - professores com conhecimentos sólidos para tanto. Não é possível concordar com partes dos textos dos PCNs ou dos RCs do RS que rebaixam o texto literário ao mesmo nível de uma receita de bolo ou de uma bula de remédio. 

segunda-feira, 19 de março de 2012

Topo de bolo do Ben 10

O que as mães não fazem pelos filhos? Pois então... meu filho está às vésperas de completar 6 anos. A tarde de ontem, domingo, foi de uma divertida produção: bonequinhos de biscuit para colocar no bolo. Embora o tema tenha sido escolhido sob os meus protestos, a festa não é minha, né? Ben 10 não tem nada de dez... Malcriado, mentiroso, esnobe, exibido... e o único "herói" que usa os poderes - que nem são seus, na verdade, são do Omnitrix - em benefício próprio... Mas o que me deixou mais aliviada foi descobrir que meu filho nem é tão fã assim, pois não sabe o nome de vários dos Aliens... Procuramos na web a imagem de vários deles - à procura de um que poderia ser mais facilmente adaptado em biscuit - e tive essa feliz descoberta.
Com a ajuda dele, o que saiu está registrado abaixo. Não ficou 100 por cento, mas foi feito com carinho. O que conta mesmo, para nós, foi passarmos esta tarde de pesquisa, de criação, de muitas risadas juntos, fazendo algo que saiu com as nossas marcas. Além disso, a mamãe aqui deu uma boa "desestressada"... Ainda vamos fazer mais um, mas precisava de massa vermelha, que não tinha em casa. Aliás, ele se empolgou e queríamos que fizéssemos todos... mas... :)






sexta-feira, 16 de março de 2012

Olim...piadas dos insetos

Nas olimpíadas dos insetos,

Todos os resultados pareciam certos.


No salto a distância, O Senhor Grilo já se via campeão.

Fez pose para fotos, jogou beijos, acenou a mão.

Disse, bem ligeiro e bem alto:

- Atenção para o meu grande salto!

O que ele não contava, o que ele não esperava

Era pela Dona Lesma que passeava

Toda linda, toda cheia de bagagens

Bem na linha de aterrissagens!



No levantamento de peso, a Dona Formiga

Não via adversários para entrar na briga!

Pela Dona Abelha foi vencida:

50 contra 300 foi a partida.

A Sra. Pulga nem precisou competir:

Sua força todos sabem admitir.


A competição mais esperada era a de velocidade!

A plateia zunia de felicidade!

Sra. Barata e Srta. Libélula eram as favoritas.

Nos seus postos, muito aflitas.

A Dona Joaninha queimou a largada:

Todos os insetos saíram em revoada

Numa só nuvem, esbarraram as asas, uma confusão!

Perderam o equilíbrio, embolaram-se, foram ao chão.



O Rei Besouro disse aos súditos uma verdade:

- Vamos botar regras nessa entomológica atividade!

Ninguém entendeu o desejo da Majestade...

Deixaram a ordem para bem mais tarde!



Por isso, não te enganes não:

Nas olim..piadas dos insetos,

Para te dizer os resultados bem corretos,

Só deu foi confusão!

quarta-feira, 7 de março de 2012

Asilo

A mãe busca o filho na escola. Primeira série, primeira semana. Beija, abraça, afivela a cadeirinha de segurança. Rápida, joga a mochila do menino no assento do passageiro e a espia. Tem tema na pastinha.


- Oba, amorzinho, tem tema pra gente fazer hoje à noite!

O menino, entre dentes:

- Eu não vou poder. Sou muito ocupado.

- E posso saber o que o Senhor Executivo aí tem pra fazer de tão importante?

- Meus compromissos. Tu precisa entender, né?

A mãe ri pesos e culpas.

- E qual seria esse compromisso? E com quem, rapazinho?

- Com a pessoa mais importante do mundo.

A mãe acha aquilo muito interessante. Sente certo orgulho do vocabulário e do raciocínio do rebento. Prossegue o interrogatório.

- E quem seria?

- Como tu não sabe, mamãe? Tu vive dizendo que eu sou a pessoa mais importante do mundo! O compromisso é comigo mesmo.

A mãe se assusta. Mais culpa. Não sabe do que, mas é culpa. Onde isso iria dar?

- E o que tu vais fazer contigo mesmo?

- Eu prometi a mim mesmo que iria olhar desenho. Não posso descumprir.

- Do jeito que tu vais, acho que quando tu fores grande, tu podes ser roteirista de desenho animado.

- Que nada. Eu vou ser professor igualzinho a ti.

A mãe se exaspera. Quase bate no carro da frente.

- Professor uma pinóia. Tu vais arrumar um emprego bom pra poderes me pagar um asilo decente e bem caro.

- O que é asilo, mãe?

- É uma casa enorme para onde a gente manda os velhinhos que a gente não consegue cuidar ou que incomodam demais. E eu não vou te pagar faculdade pra ser professor, de jeito nenhum, enten...

- Mas tu não me incomoda, mãe.

- Ah, mas quando eu ficar velha posso incomodar. E tira essa asneira...

- Isso tu diz hoje. Quando tu ficar velhinha, velhinha, tu vai dizer que não quer porcaria de asilo nenhum.

- Do jeito que anda, quando eu ficar velha, vou ser lelé da cuca, daí tu me internas, filho.

- Tu já é lelé, mãe. Mas não vai, tá?

O sinal fecha. A mãe se vira para trás e olha com cara feia para o guri.

- Não sou lelé coisa nenhuma. Ainda.

O sinal abre e a mãe arranca fritando pneus.

- Claro que não, é brincadeira. Tu é professora, igual eu vou ser quando crescer. Professoras não são lelés.

Essa maldita insistência, pensa a mãe. O caminho parece-lhe cada vez mais longo.

- Tira essa ideia absurda da cabeça, guri.

- O que, de que as professoras não são lelés?

O caminho estava mais longo ainda. Onde ele aprendeu a provocar assim? Seria genético?

- Muito engraçadinho. Tu entendeste.

- Mas então por que tu é professora, mãe?

- Porque eu gosto. E quando eu comecei,  a situação toda não era tão ruim assim...

- Tu gosta e é ruim? Tem um gravador aí?

A mãe não responde. Dobra finalmente a esquina da avenida onde moram. Depois de alguns minutos, o menino insiste no gravador.

- Pra que gravador, guri?

- Se eu precisar te colocar num asilo, já vou ter provas de que tu é lelé faz tempo.

A mãe para na rotatória e dá o sinal. O orgulho inicial dá lugar à irritação. Não se nasce mais criança hoje em dia? Já tem que partir logo para a perguntoscência? Buzina para o carro vermelho que lhe cortara a frente. Mais alguns metros só. Responde, esperando encerrar a questão.

- Daí não é asilo, é manicômio.

- O que é que é manicônio, mãe?

A mãe arrepende-se, mas explica:

- Não é manicônio, é manicômio. É uma casa grande onde se internam as pessoas com problemas que as famílias não podem ou não conseguem cuidar.

- Mas a vida é sempre assim, mãe?

- Sempre assim, como, amorzinho? – fala a mãe, apertando o controle remoto do portão da casa.

- Sempre assim, se não quer cuidar de alguém bota numa casa grande, como se fosse um freezer, que, quando quiser, ainda está lá inteiro, sem derreter?

- Não é bem assim, filho, as pessoas são ocupadas e... – a mãe por pouco não raspa o carro na entrada da garagem.

- E também botam os filhos o dia todo internados na escola, que é uma casa grande que nem asilo e manicônio?

A mãe, enfim, estaciona o carro na garagem. Suspira. Tira a chave da ignição, desce, suspira. Abre a porta para o filho. Suspira.

- Amorzinho, podes olhar um pouquinho de TV. A gente faz o tema e conversa depois do jantar. Vai lá na sala. Já vou.

E a mãe vai à cozinha. Abre bem o freezer. Precisa asilar pensamentos.

quinta-feira, 23 de fevereiro de 2012

Caixa 13

CAIXA 13




O supermercado estava lotado. Ana detestava aquele costume de empilharem produtos em promoção no meio do corredor. O sistema de ar condicionado não estava dando conta do fevereiro no paralelo 30. Mas era preciso. Leite de soja, grão de bico, quinua, amaranto. Pegou linhaça dourada, já que não encontrou a chia. Não queria se estressar: sabia que naquele supermercado funcionava sempre assim. Mas era o mais próximo de casa.

Precisava pegar o leite de soja. Sempre fazia a volta com o carrinho para não enfrentar aquele corredor da tortura. O movimento, no entanto, não permitia tal manobra, a não ser que pedisse muitos com-licenças e dissesse outra dezena de muito-obrigadas. Teria até que sorrir, quem sabe. Preferiu enfrentar, era forte. Manteria o foco à sua direita.

O cheiro doce do corredor agrediu a sua disposição. Sabia que à sua esquerda estava toda a sorte de coisas que emporcalham as artérias, o fígado, o coração. Trinta segundos na boca e toda a eternidade nas coxas e na barriga. O cheiro de baunilha misturava-se ao do chocolate. Mas o aroma artificial de morango despertou-a. Não cairia naquele engodo novamente. As imagens retidas na memória daquele dia em que acordou entubada e perdida no hospital eram a cera que vedava todos os seus sentidos para o canto doce do ser mitológico meio sereia, meio medusa que habitava a gôndola da esquerda. Não podia olhar. Quando, afinal, avistou o leite de soja, sua boca estava inundada de um perigoso mar de saliva, que precisava ser engolido junto com os seus muitos diversos desejos.

Vencido o percurso das tentações e dos riscos iminentes a sua saúde, o que lhe sobrava era o gosto amargo do que foi sem nunca ter sido. Era preciso, era preciso. Era preciso distrair-se com as cores dos hortifrutigranjeiros, mas o amarelo dos pimentões era um sorriso sem graça. Cumpriu, sem esbarrar em ninguém, a sua sina de colocar no carrinho a esquisitice do kiwi, a casmurrice da moranga cabutiá, a antipatia da vagem e a hipocrisia do brócolis, amargura que tenta se travestir em flor. Era preciso engolir isso tudo. E ainda ficar feliz como um morango fora de época.

Dirigiu-se para a fila do caixa. Quilométrica, como previsto. Olhava para os carrinhos alheios, repletos de tranqueiras. Os pais não tinham vergonha de comprar tantas besteiras para os filhos? Ela morreria se alguma conhecida a pilhasse comprando guloseimas para os netos. Quando o marido podia, ele era quem o fazia. Nem valia a pena fazer isso: muito provável que as porcarias passassem do prazo de validade. Daí, seria duplo desperdício.

Chegou sua vez no caixa. O anúncio luminoso mandou-a ao caixa de número 13. Ela fez um pouco de esforço para não desgostar. Já olhou mais adiante: faltavam empacotadores. No mesmo caixa 13, Uma mulher bem jovem, de cabelos curtos e multicoloridos, vestindo uniforme de banco e um senhor de óculos grandes e vidros daqueles que deformam a aparência dos olhos ainda juntavam suas compras o mais rápido que podiam. No caixa ao lado e na outra e na outra a situação não era diferente. Todo mundo falava ao mesmo tempo. O barulho das reclamações, misturado ao de sinais sonoros dos caixas, foi a irritando. Sentiu uma tontura. A pressão se alterava, ela sabia. Respirou fundo, mas o cheiro que veio de brinde era nauseante: sabão em pó, pão quente, alvejante e peixe. A tontura era tanta que errou duas vezes a senha do cartão de crédito. Queria ser Moisés para abrir aquele mar de carrinhos à sua frente – só assim não esbarraria com muitos ninguéns. Nem teve tempo de traçar um plano de defesa – ou seria de contra-ataque? Outra moça de cabelos curtos e multicoloridos trombou com ela, que bateu no senhor de óculos esquisitos, que quase atropelou um jovem executivo. Na confusão, os carrinhos das duas mulheres foram parar longe. Ana foi, rápida, atrás do que lhe pertencia: só assim não precisa olhar para trás tampouco dizer qualquer coisa como “sinto muito”.

Coração saltando pela boca, Ana não entendia de onde veio aquela agilidade repentina. Jogou as compras no porta-malas do carro. Queria se tirar dali o mais rápido possível. Fugir da vergonha de ter fugido sem dizer palavra. Era grosseira, reconhecia, mas não conseguia fazer diferente. Queria flanar, educada, por todas as situações, mas trombava violenta.

Passou por dois sinais amarelos, quase raspou o carro no portão de casa. Abriu o porta-malas e chamou a empregada para que guardasse as compras, que ela não estava bem. Jogou-se no sofá e ligou a televisão. Qualquer coisa que a livrasse daqueles pensamentos. Os pontos pretos que enxergava eram uma ciranda de rodas descompassadas de carrinhos de supermercado. Queria apagar o incidente e a vergonha de sua postura, mulher mais que adulta que era. Foi quando a empregada a chamou. O que significava aquilo, Dona Ana?

Sobre a imensa bancada de granito, jaziam, desembrulhados, produtos estranhos àquela cozinha. A empregada perguntava se a Dona Ana estava bem, ela chamaria o filho mais velho. As imagens assomavam-se aos seus olhos, mas não encontravam eco de significado. A empregada insistia na pergunta, trazendo-lhe ao chão da realidade. Leite integral, farinha láctea, vidros e vidros de papinhas prontas, um bico cor-de-rosa, fraldas tamanho G, manteiga, queijo amarelo, caixa de bolo Sol, chocolates, balas. Não, aquelas não eram suas compras. Algum sátiro aliou-se àquele ser do mal habitante do corredor das coisas intocáveis. Foi ele quem colocara aquilo tudo ali. Uma enorme lata de biscoitos amanteigados despertou-lhe lembranças dos filhos pequenos, alegres migalhas enchendo de vida a casa agora inerte. A empregada falava ao telefone, pedindo auxílio ao filho de Ana. Ana abraçou a enorme lata colorida. Outras tantas cores passeavam na sua memória. Escorou-se na parede, deixou-se escorregar, para o desespero da empregada, que gritava coisas que Ana não ouvia. Ana não rompeu o lacre da lata: ela abriu a anticaixa de Pandora. Estava tudo em ordem no céu de sua boca: o gosto de domingos ensolarados debaixo de árvores mosqueadas de sol. De roupas de todos os tamanhos secando ao sol. De cobertores estendidos no chão da sala aos sábados cinzentos. A força da empregada tentando lhe erguer do chão, entretanto, roubou-lhe do doce enlevo. A vida prática a chamava. Sim, o filho já ligou para o supermercado. A dona das compras foi identificada. Chegaria dentro de poucos minutos para desfazer a troca. A empregada se encarregava de empacotar tudo de novo.

A moça de cabelos curtos e coloridos tocou a campainha. Os filhos pequenos, um menino e uma menina, espiavam do carro. A empregada atendeu, mas a moça fez questão de falar com Ana. Os biscoitos. Ana não sabia como dizer, preferiu fazer de conta que nada ocorreu. Mas a moça insistia e esperava na sala, a empregada avisou. Não havia jeito: Ana enfrentaria o julgamento. Mas a moça adiantou-se. Meio sem jeito, confessou:

– Está tudo aí, menos duas bananas – disse, reticente. – Sabe como são essas crianças, quando encasquetam que querem uma coisa, já viu, né?

Ana engasgou-se. Por baixo daquela maluquice de cabelo, havia algo. Algo que queria para si, a vida inteira. A empregada a olhava, inquisitora. O quadro com a foto do marido e das crianças a olhava. A apresentadora do programa que passava na televisão da sala a olhava. O elefante da mesinha de centro a olhava. Pediu um instante. Foi à cozinha e apresentou a lata. Pensou em culpar a empregada, mas a encontrou aos sorrisos com a moça na sala.

– Pois é, aqui também faltam alguns biscoitos – confessou, engasgada.

A moça esboçou um sorriso. Toda a graça de um sorriso de um ninguém estranho. Toda a saudade de um sorriso singelo. Num fio de voz, Ana, munida de toda a coragem, completou:

– Sabe como são essas senhoras diabéticas. Não podem ver um doce que se descontrolam...

quinta-feira, 26 de janeiro de 2012

Adélia Prado me (des)entendendo

Só a Adélia Prado p/ me salvar do (des)entendimento...

Tempo



A mim que desde a infância venho vindo

como se o meu destino

fosse o exato destino de uma estrela

apelam incríveis coisas:

pintar as unhas, descobrir a nuca,

piscar os olhos, beber.

Tomo o nome de Deus num vão.

Descobri que a seu tempo

vão me chorar e esquecer.

Vinte anos mais vinte é o que tenho,

mulher ocidental que se fosse homem

amaria chamar-se Eliud Jonathan.

Neste exato momento do dia vinte de julho

de mil novecentos e setenta e seis,

o céu é bruma, está frio, estou feia,

acabo de receber um beijo pelo correio.

Quarenta anos: não quero faca nem queijo. Quero a fome.

 
Ex-voto
 
Na tarde clara de um domingo quente, surpreendi-me


Intestinos urgentes, ânsia de vômito, choro

Desejo de raspar a cabeça e me por nua no centro da minha vida

E uivar até me secarem os ossos

Que queres que eu faça Deus?





Quando parei de chorar, o homem que me aguardava disse-me:

Voce é muito sensível, por isso tem falta de ar!

Chorei de novo porque era verdade e era também mentira, sendo só meio consolo





Respira fundo, insistiu !

Joga água fria no rosto, vamos dar uma volta, é psicológico





Que ex-voto levo à Aparecida se nao tenho doença e só lhe peço a cura?

Minha amiga devota se tornou budista. Torço para que se desiluda e volte a rezar comigo as orações católicas.





Eu nunca ia ser budista!

Por medo de não sofrer, por medo de ficar zen

Existe santo alegre ou são os biógrafos que os põem assim felizes como bobos?





Minas tem coisas terríveis.

A serra da piedade me transtorna.

Em meio a tanta rocha de tão imediata beleza, edificações geridas pelo inferno, pelo descriador do mundo.





O menino não consegue mais, vai morrer, sem força para sugar a corda de carne preta do que seria um seio, agora às moscas.





Meu coração é bom mas não aceita que o seja.

O homem me presenteia.

Porque tanto recebo quando seria justo mandarem-me à solitária?





Palavras não, eu disse. Eu só aceito chorar!

Porque então limpei os olhos quando avistei roseiras e mais o que não queria, de jeito nenhum queria aquela hora, o poema, meu ex-voto.

Não a forma do que é doente, mas do que é são em mim.

E rejeito e rejeito premida pela mesma força do que trabalha contra a beleza das rochas.





Me imploram amor Deus e o mundo.

Sou pois mais rica que os dois.

Só eu posso dizer a pedra: És bela até a aflição!

O mesmo que dizer a ele: Sois belo, belo, sois belo.





Quase entendo a razão da minha falta de ar

Ao escolher palavras com que narrar minha angústia, eu já respiro melhor.





A uns, Deus os quer doentes, a outros quer escrevendo.
 
 
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E eu continuo a escrever... Nada que se possa postar aqui - minha tese, preparando-me para a banca de qualificação.