quarta-feira, 7 de março de 2012

Asilo

A mãe busca o filho na escola. Primeira série, primeira semana. Beija, abraça, afivela a cadeirinha de segurança. Rápida, joga a mochila do menino no assento do passageiro e a espia. Tem tema na pastinha.


- Oba, amorzinho, tem tema pra gente fazer hoje à noite!

O menino, entre dentes:

- Eu não vou poder. Sou muito ocupado.

- E posso saber o que o Senhor Executivo aí tem pra fazer de tão importante?

- Meus compromissos. Tu precisa entender, né?

A mãe ri pesos e culpas.

- E qual seria esse compromisso? E com quem, rapazinho?

- Com a pessoa mais importante do mundo.

A mãe acha aquilo muito interessante. Sente certo orgulho do vocabulário e do raciocínio do rebento. Prossegue o interrogatório.

- E quem seria?

- Como tu não sabe, mamãe? Tu vive dizendo que eu sou a pessoa mais importante do mundo! O compromisso é comigo mesmo.

A mãe se assusta. Mais culpa. Não sabe do que, mas é culpa. Onde isso iria dar?

- E o que tu vais fazer contigo mesmo?

- Eu prometi a mim mesmo que iria olhar desenho. Não posso descumprir.

- Do jeito que tu vais, acho que quando tu fores grande, tu podes ser roteirista de desenho animado.

- Que nada. Eu vou ser professor igualzinho a ti.

A mãe se exaspera. Quase bate no carro da frente.

- Professor uma pinóia. Tu vais arrumar um emprego bom pra poderes me pagar um asilo decente e bem caro.

- O que é asilo, mãe?

- É uma casa enorme para onde a gente manda os velhinhos que a gente não consegue cuidar ou que incomodam demais. E eu não vou te pagar faculdade pra ser professor, de jeito nenhum, enten...

- Mas tu não me incomoda, mãe.

- Ah, mas quando eu ficar velha posso incomodar. E tira essa asneira...

- Isso tu diz hoje. Quando tu ficar velhinha, velhinha, tu vai dizer que não quer porcaria de asilo nenhum.

- Do jeito que anda, quando eu ficar velha, vou ser lelé da cuca, daí tu me internas, filho.

- Tu já é lelé, mãe. Mas não vai, tá?

O sinal fecha. A mãe se vira para trás e olha com cara feia para o guri.

- Não sou lelé coisa nenhuma. Ainda.

O sinal abre e a mãe arranca fritando pneus.

- Claro que não, é brincadeira. Tu é professora, igual eu vou ser quando crescer. Professoras não são lelés.

Essa maldita insistência, pensa a mãe. O caminho parece-lhe cada vez mais longo.

- Tira essa ideia absurda da cabeça, guri.

- O que, de que as professoras não são lelés?

O caminho estava mais longo ainda. Onde ele aprendeu a provocar assim? Seria genético?

- Muito engraçadinho. Tu entendeste.

- Mas então por que tu é professora, mãe?

- Porque eu gosto. E quando eu comecei,  a situação toda não era tão ruim assim...

- Tu gosta e é ruim? Tem um gravador aí?

A mãe não responde. Dobra finalmente a esquina da avenida onde moram. Depois de alguns minutos, o menino insiste no gravador.

- Pra que gravador, guri?

- Se eu precisar te colocar num asilo, já vou ter provas de que tu é lelé faz tempo.

A mãe para na rotatória e dá o sinal. O orgulho inicial dá lugar à irritação. Não se nasce mais criança hoje em dia? Já tem que partir logo para a perguntoscência? Buzina para o carro vermelho que lhe cortara a frente. Mais alguns metros só. Responde, esperando encerrar a questão.

- Daí não é asilo, é manicômio.

- O que é que é manicônio, mãe?

A mãe arrepende-se, mas explica:

- Não é manicônio, é manicômio. É uma casa grande onde se internam as pessoas com problemas que as famílias não podem ou não conseguem cuidar.

- Mas a vida é sempre assim, mãe?

- Sempre assim, como, amorzinho? – fala a mãe, apertando o controle remoto do portão da casa.

- Sempre assim, se não quer cuidar de alguém bota numa casa grande, como se fosse um freezer, que, quando quiser, ainda está lá inteiro, sem derreter?

- Não é bem assim, filho, as pessoas são ocupadas e... – a mãe por pouco não raspa o carro na entrada da garagem.

- E também botam os filhos o dia todo internados na escola, que é uma casa grande que nem asilo e manicônio?

A mãe, enfim, estaciona o carro na garagem. Suspira. Tira a chave da ignição, desce, suspira. Abre a porta para o filho. Suspira.

- Amorzinho, podes olhar um pouquinho de TV. A gente faz o tema e conversa depois do jantar. Vai lá na sala. Já vou.

E a mãe vai à cozinha. Abre bem o freezer. Precisa asilar pensamentos.

Nenhum comentário:

Postar um comentário