A mãe busca o filho na escola. Primeira série, primeira semana. Beija, abraça, afivela a cadeirinha de segurança. Rápida, joga a mochila do menino no assento do passageiro e a espia. Tem tema na pastinha.
- Oba, amorzinho, tem tema pra gente fazer hoje à noite!
O menino, entre dentes:
- Eu não vou poder. Sou muito ocupado.
- E posso saber o que o Senhor Executivo aí tem pra fazer de tão importante?
- Meus compromissos. Tu precisa entender, né?
A mãe ri pesos e culpas.
- E qual seria esse compromisso? E com quem, rapazinho?
- Com a pessoa mais importante do mundo.
A mãe acha aquilo muito interessante. Sente certo orgulho do vocabulário e do raciocínio do rebento. Prossegue o interrogatório.
- E quem seria?
- Como tu não sabe, mamãe? Tu vive dizendo que eu sou a pessoa mais importante do mundo! O compromisso é comigo mesmo.
A mãe se assusta. Mais culpa. Não sabe do que, mas é culpa. Onde isso iria dar?
- E o que tu vais fazer contigo mesmo?
- Eu prometi a mim mesmo que iria olhar desenho. Não posso descumprir.
- Do jeito que tu vais, acho que quando tu fores grande, tu podes ser roteirista de desenho animado.
- Que nada. Eu vou ser professor igualzinho a ti.
A mãe se exaspera. Quase bate no carro da frente.
- Professor uma pinóia. Tu vais arrumar um emprego bom pra poderes me pagar um asilo decente e bem caro.
- O que é asilo, mãe?
- É uma casa enorme para onde a gente manda os velhinhos que a gente não consegue cuidar ou que incomodam demais. E eu não vou te pagar faculdade pra ser professor, de jeito nenhum, enten...
- Mas tu não me incomoda, mãe.
- Ah, mas quando eu ficar velha posso incomodar. E tira essa asneira...
- Isso tu diz hoje. Quando tu ficar velhinha, velhinha, tu vai dizer que não quer porcaria de asilo nenhum.
- Do jeito que anda, quando eu ficar velha, vou ser lelé da cuca, daí tu me internas, filho.
- Tu já é lelé, mãe. Mas não vai, tá?
O sinal fecha. A mãe se vira para trás e olha com cara feia para o guri.
- Não sou lelé coisa nenhuma. Ainda.
O sinal abre e a mãe arranca fritando pneus.
- Claro que não, é brincadeira. Tu é professora, igual eu vou ser quando crescer. Professoras não são lelés.
Essa maldita insistência, pensa a mãe. O caminho parece-lhe cada vez mais longo.
- Tira essa ideia absurda da cabeça, guri.
- O que, de que as professoras não são lelés?
O caminho estava mais longo ainda. Onde ele aprendeu a provocar assim? Seria genético?
- Muito engraçadinho. Tu entendeste.
- Mas então por que tu é professora, mãe?
- Porque eu gosto. E quando eu comecei, a situação toda não era tão ruim assim...
- Tu gosta e é ruim? Tem um gravador aí?
A mãe não responde. Dobra finalmente a esquina da avenida onde moram. Depois de alguns minutos, o menino insiste no gravador.
- Pra que gravador, guri?
- Se eu precisar te colocar num asilo, já vou ter provas de que tu é lelé faz tempo.
A mãe para na rotatória e dá o sinal. O orgulho inicial dá lugar à irritação. Não se nasce mais criança hoje em dia? Já tem que partir logo para a perguntoscência? Buzina para o carro vermelho que lhe cortara a frente. Mais alguns metros só. Responde, esperando encerrar a questão.
- Daí não é asilo, é manicômio.
- O que é que é manicônio, mãe?
A mãe arrepende-se, mas explica:
- Não é manicônio, é manicômio. É uma casa grande onde se internam as pessoas com problemas que as famílias não podem ou não conseguem cuidar.
- Mas a vida é sempre assim, mãe?
- Sempre assim, como, amorzinho? – fala a mãe, apertando o controle remoto do portão da casa.
- Sempre assim, se não quer cuidar de alguém bota numa casa grande, como se fosse um freezer, que, quando quiser, ainda está lá inteiro, sem derreter?
- Não é bem assim, filho, as pessoas são ocupadas e... – a mãe por pouco não raspa o carro na entrada da garagem.
- E também botam os filhos o dia todo internados na escola, que é uma casa grande que nem asilo e manicônio?
A mãe, enfim, estaciona o carro na garagem. Suspira. Tira a chave da ignição, desce, suspira. Abre a porta para o filho. Suspira.
- Amorzinho, podes olhar um pouquinho de TV. A gente faz o tema e conversa depois do jantar. Vai lá na sala. Já vou.
E a mãe vai à cozinha. Abre bem o freezer. Precisa asilar pensamentos.
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