quinta-feira, 3 de dezembro de 2009

Vingança

Agora em primeira pessoa ...

Ele estava parado no local onde eu supunha. Era o dia. Estacionei mais adiante. No banco de trás, meus auxiliares anteviam o sucesso de mais uma empreitada. Os brutamontes que contratei deram uma volta na quadra. Gostei do cuidado. Profissionais. Foram infindáveis dois minutos até a abordagem. Pelo retrovisor, vi quando eles o socaram para dentro do carro. Arrancaram em alta velocidade. Eu segui, discreta, até o local combinado.


Quando entrei na velha cabana abandonada, o desgraçado já estava amordaçado e amarrado em decúbito dorsal sobre uma mesa, nu, do jeito como eu ordenei. Serviço rápido e de primeira. Paguei com gosto os brutamontes, avisei que iria precisar deles mais vezes e mandei-os embora. O resto era comigo e com meus auxiliares.

Peguei a mala que eu deixara no dia anterior. Arrumei tudo sobre uma mesa de apoio: bisturi elétrico, bisturi frio, tesouras retas e curvas, pinças. Ele estava ali, imóvel, o safado. Ele, enfim, veria o que é abusar de um indefeso. Aquelas costas peludas me deram nojo. Depilei-as e esterilizei a área. O animal nada fazia. Sequer um movimento. Assim não teria a menor graça. Ele nem saberia por que estava ali. Provoquei:

- Você quer saber o que lhe vai acontecer? Ah, coitadinho, não pode responder...

A criatura não se moveu. Não estaria me ouvindo? Gritei no ouvido dele:

- Lembra daquela criancinha que você matou? Pois é, a polícia não o pegou.

O monstro deu um grunhido. Ainda ria, o pulha. Ele não fazia idéia de com quem se meteu.

- Mas eu peguei. Eu sou bem pior do que polícia.

O demônio continuava a rir. Se ele queria deboche, era o que teria:

- Deboche, é? Vou lhe dar a chance de redenção. Vai doar vários órgãos para salvar vidas de papais e mamães de várias criancinhas como aquela que você...

O traste debateu-se. Era tudo o que eu queria. Levantei a cabeça do animal pelas crinas e gritei:

- Assim é que eu gosto. Com emoção e sem anestesia!

E ordenei:

- Bisturi, por favor!

Vingança

Ele estava parado no local onde ela imaginara. Ela estacionou mais adiante. Seus comparsas, em outro carro, deram uma volta na quadra para ver se a barra estava limpa. Infindáveis dois minutos até a abordagem. Pelo retrovisor, viu quando dois brutamontes o socaram para dentro do carro. Arrancaram em alta velocidade e ela os seguiu até o local combinado.


Quando ela entrou na velha cabana abandonada, ele já estava amordaçado e amarrado sobre uma mesa, do jeito como ela planejara. Pagou os brutamontes e mandou-os embora. Ficaram apenas dois enfermeiros auxiliares. O resto era com ela.

Pegou a mala que trouxera no dia anterior. Arrumou tudo sobre uma mesa de apoio: bisturi elétrico, bisturi frio, tesouras retas e curvas, pinças. Depilou as costas, passou um líquido alaranjado. Diante da passividade do homem, ela provocou:

- Você quer saber o que lhe vai acontecer? Ah, coitadinho, não pode responder...

O homem nem se moveu. Ela queimou-se:

- Lembra daquela criancinha que você matou? Pois é, a polícia não o pegou.

O homem deu um grunhido. Ela interpretou como uma risada.

- Mas eu peguei. Eu sou bem pior do que polícia.

Ele continuava a grunhir. Ela irritou-se:

- Deboche, é? Vou lhe dar a chance de redenção. Vai doar vários órgãos para salvar vidas de papais e mamães de várias criancinhas como aquela que você...

O homem debateu-se. Era tudo o que ela queria.

- Assim, com emoção e sem anestesia é o que gosto.

E ordenou:

- Bisturi, por favor!

terça-feira, 1 de dezembro de 2009

Encontro

Eles encontraram-se no saguão do aeroporto. Olharam-se. Dirigiram-se para o balcão da mesma companhia aérea. Esbarraram seus carrinhos com as malas. Desculparam-se, sorriram. Ele fez questão que ela passasse a sua frente.

Minutos mais tarde, reencontraram-se na sala de embarque lotada. Ele estava sentado. Ao seu lado, o único lugar vago, sob o qual repousava um jornal. Ele o retirou e fez um movimento com a cabeça, chamando-a. Ela agradeceu meio sem jeito. Ele era um sujeito perigoso de bonito. Agradável demais para ser verdadeiro. Tratou de achar algo para uma fingida leitura na sua bagagem de mão. Ele leu o título do livro: Concerto campestre. Comentou:

- Esse Maestro é um cara de sorte. É raro o amor vencer no final de livros brasileiros.

Ela sorriu com o romantismo anacrônico e com o comentário despropositado. Não se conteve:

- Muito obrigada, Senhor Spoiler.

Riram juntos. Ele insistiu:

- Mas não é verdade? Quem não quer ser feliz?

Ela voltou os olhos para o livro.Ele pegou na mão dela, puxou de leve o livro e insistiu:

- E o que mais pode fazer um homem feliz do que uma mulher apaixonada?

Ela fechou o livro. Não se deixaria levar:

- A conquista da Libertadores da América, por exemplo.

Riram mais. Olhos nos olhos. Falaram amenidades. Não notaram que o voo estava atrasado. Ele passou o braço por trás da cadeira dela. Não viram a multidão que se aglomerava na sala de embarque. Ela mexia no cabelo. O choro de um bebê no colo de uma senhora que estava em pé despertou-os. Ele cedeu seu lugar. Ela deu um jeito de acompanhá-lo:

- A senhora pode colocar sua bagagem de mão aqui, por favor. – Disse, levantando-se e ajudando a mulher a acomodar-se.

Ele tomou a mão dela. Em tom jocoso, parabenizou “a escoteira”. As mãos não se largaram. Olhavam-se. O silêncio foi quebrado pelo anúncio do voo 237 da TAM para Porto Alegre.

- É o meu. – Disse ele, olhando para o chão.

Ela apertou mais ainda a mão dele.

- Também é o meu.

Ela quis perguntar para onde ele iria. Ele abriu a boca para fazer a mesma pergunta a ela. Engoliu o ar. Queriam saber um do outro, não queriam contar sobre si.

Entraram na fila do embarque, os cartões meio escondidos. Não, as poltronas não eram lado a lado. No avião, quando se separariam, a senhora com o bebê no colo fez questão de trocar de lugar com ela “para não separar o casal”. Só então se deram conta de que não separaram mais as mãos.

Sentaram lado a lado. Não mais conversavam. Olhavam-se. Nada mais. Tudo isso. Um quase-beijo. Por duas vezes, ele tentou falar. Ela o impediu com o toque leve de seus dedos sobre os lábios dele. Quando o avião aterrissou, ele não se conteve:

- Me diz pelo menos o teu nome...

Ela titubeou. Pensou. Desviou o olhar e respondeu:

- Clara Vitória.

Ele ficou sem graça. Vingou-se:

- Prazer, Silvestre Pimentel.

Riram sem graça. Ela passou a frente. Ele ficou para trás de propósito.

Enquanto ele esperava por sua mala na esteira, ele viu, pela porta de vidro, a sua Clara Vitória ser recepcionada por uma menininha que correu ao seu encontro. Um homem beijou-a de leve e carregou suas malas. Ele baixou os olhos para mais não ver.

Enquanto ele procurava as chaves do carro na maleta, lembrou do seu apartamento vazio, do gato que deveria pegar no hotelzinho da pet shop. E de um verso de um poema de Camões que diz mais ou menos assim: “para tão grande amor, tão curta vida”.

Flores de novembro





Obrigada, Raquel!!!

Obrigada, 3D!!!

domingo, 29 de novembro de 2009

Uma avó sinistra

É o mesmo enredo que o anterior. Só que, desta vez, rimado. Qual forma fica melhor?

UMA AVÓ SINISTRA

João Pedrinho não queria...
A mãe não deu conversa:
Pegar seu pijama ele deveria.
- Tudo na mochila, depressa!

O guri passaria a noite na casa da avó,
Um casarão com jeitão esquisito.
Parede roxa, cortina preta, tapete cheio de pó:
Alguém achava aquilo bonito?


“Vou ficar bem comportado!”
Logo, logo o guri pensa.
“Com o Natal aproximado,
O Papai Noel me recompensa.”


A avó esperava na porta.
Vestido roxo, cabelo espetado.
Meia laranja, perna torta.
O guri, todo espantado.


“Como cresceu meu netinho!”
Foi ela logo se admirando.
“Entra, venha cá, João Pedrinho!”
O guri, nos abraços, sufocando.

Lá dentro, tudo era muito assustador:
Não falou nada para não parecer mariquinhas.
A avó tinha o Blaire, um cachorro labrador,
E o Salém, um gato preto e branco nas patinhas.

O guri não quis dizer:
Havia uma aranha pendurada
Sua teia estava a tecer
Em um buraco da cortina esfarrapada.

A avó até que se mostrou legal:
Mandou vir pizza, comprou refri.
Contou uma história sensacional.
Faz uma cara assustadora quando ri.

Quando a hora de dormir chegou...
Para a escada a avó logo apontou.
O quarto ficava lá no alto, sozinho
“No sótão preparei teu quartinho.”

Quando no primeiro degrau ele pisou
Rangeu toda a escada.
Com muito medo ele ficou
“Meu Deus, que enrascada!”

A porta do quarto gemeu ao abrir.
Um trovão ele escutou.
A luz deu para sumir
Um lampião a avó providenciou.

“Tenha bom sonhos, meu netinho!”
Desejou a avó amorosa.
Em pesadelos pensou João Pedrinho
Olhando, na parede, a sombra horrorosa.

A avó resolveu para o neto cantar
Lindas canções para menino dormir.
Falavam em bichos que vinham pegar
E em meninos que não tinham aonde fugir.


De medo, os olhos João Pedrinho fechou.
“Está dormindo” – a vovó logo pensou.
A velhinha saiu de mansinho, pé por pé
O menino ouviu terríveis barulhos sem saber o que é.

De repente, um grande estrondo e um clarão:
O menino viu a sombra de um terrível dragão!
Embaixo da cama algo respirava ofegante:
Será Bicho Papão? Será um Ogro Gigante?

Mas quem estará em cima do telhado?
Ouvia barulhos, garras e arranhados.
De repente, sentiu uma lambida no seu rosto:
- Não me coma, seu monstro! Sou ruim de gosto!

Alguém ligou a luz e os monstros afugentou:
Era vovó, que o Blaire enxotou:
“Só vim tirar o cachorro daqui, meu netinho.
Quando chove, ele dorme neste quartinho.”

“Posso dormir com você?” – pediu o guri.
A avó era um amor que sorri.
Dormiram em paz e quentinhos:
Eram, enfim, grandes companheirinhos!

Uma avó sinistra

Este texto já escrevi há um tempão. Como estou também há um tempão sem postar, resolvi fazer uma reciclagem. É para ser para crianças, tá?
Uma avó sinistra

     João Pedrinho não queria, mas não teve jeito. Precisava passar aquela noite na casa da Vovó. Ela morava sozinha em uma casa enorme, antiga, rodeada de árvores. E pediu tanto que ele passasse uma noite lá. Afinal, ele já era um homenzinho de cinco anos!


A mãe arrumou sua mochila: escova de dentes, pijama, roupa para o outro dia e...

- Que é isso, mãe, um urso? Coisa de guria! Não levo, não mesmo...

- Mas foi sua avó que deu, filho... Não custa fazer um agrado...

O menino, contrariado, fez tudo como pediram. Afinal, “o Natal está perto”. “Quem sabe o Papai Noel está vendo como estou comportado...”

Quando chegou à casa da avó, havia nuvens escuras de temporal no céu. Tudo era assustador. Não falou nada para não parecer mariquinhas.

A avó era bem esquisita, com aqueles cabelos brancos e compridos, aquele vestido preto, aquele nariz grande e torto com verruga peluda do lado. Sentou-se no sofá, com o gato Salém no colo e com o cachorro labrador Blaire deitado aos seus pés. Ela foi tão querida com o guri que ele admitiu: até que era uma avó normal. Também foi normal o resto da noite. Mas na hora de dormir...

- João Pedrinho, arrumei um quarto lindo, que vai sempre ser só teu lá no sótão. Não é divertido?

- Só... só... tão? Es...es...tá...tá bem! Glup!

O guri pegou sua mochila e, quando colocou o pé no primeiro degrau da escada que levava até ao sótão, ela gemeu um barulho sinistro. Todos os degraus rangeram. A porta do quarto também rangeu.

- Não é, como vocês dizem hoje em dia, “sinistro” teu quartinho, filhinho? - perguntou a avó, achando que fez grande coisa.

- É beeeem sinistro! – falou, com sinceridade, o menino.

A avó resolveu:

- Já que tu não estás com muito sono, vou cantar umas velhas canções de ninar pra ti.

“Ai, meu Deus, era só o que me faltava! Agora acha que sou bebê.” – pensou o guri.

- Nana, neném, que a Cuca vem pegar – cantava a voz tenebrosa.

“Ai, meu Deus, e se a Cuca vem mesmo?” – pensou João Pedrinho.

- Papai foi na roça, mamãe foi visitar – continuava a voz desafinada.

“Tô mesmo sozinho nessa!” – apavorou-se o guri.

- Que bicho é aquele que está em cima do detalhado, que não deixa meu netinho dormir sossegado? – Concluiu a terrível canção.

O menino ouviu uns estalos esquisitos vindo do detalhado. Fechou os olhos de tanto medo.

A avó, pensando que o neto dormira, saiu bem devagarinho. Deixou o abajur acesso para o caso de ele ficar com medo.

João Pedro ouviu passos. Abriu os olhos. A avó desaparecera. As sombras de um dragão com garras imensas projetavam-se na parede. Fechou os olhos para não ver aquilo. De repente, sentiu um clarão nos olhos. Em seguida, ouviu um estrondo de um trovão e o som de pingos grossos de chuva. O barulho no telhado aumentara, como se grandes garras roçassem, quem sabe tirando as telhas.

Ouviu uma respiração ofegante debaixo de sua cama. Seria o Bicho-Papão? Mas e quem estava no telhado? O velho do saco? Nem adiantaria gritar pela avó, que ela era surda... Ou seria uma bruxa amiga da Cuca, da mula-sem-cabeça e do monstro do armário?

Se pusesse o pé no chão para correr, o Bicho-Papão o pegaria pelo tornozelo... “Por que a mamãe me trouxe aqui? Valha-me, Nossa Senhora dos Medrosos!” - pensou ele

De repente, ouviu a velha escada ranger. “Vixe, agora é a Cuca. Sei que é ela. Ai, ai, ai...” – pensou o menino, paralisado de medo. Nem abria os olhos. Nem se mexia. Só ouvia. E os passos vieram, vieram.. E pararam. Segundos de medo. De repente, sentiu que algo saiu de debaixo de sua cama. Uma mão peluda estava sob seu rosto. Ele pulou e gritou:

- Não me devorem, seus monstros, que eu ainda sou pequenininho...

Abriu os olhos e viu sua avó com o ursinho na mão e o labrador ao seu lado.

- Eu só trouxe o teu urso e queria tirar o Blaire daí de baixo. – disse a avó, com pena do guri.

João Pedro terminou a noite dormindo com a vovó. Abraçado no Blaire, por via das dúvidas.

quarta-feira, 11 de novembro de 2009

Imitando Lobato

Na última aula da oficina, o professor pediu que escrevêssemos um texto imitando nosso autor predileto, tanto na forma quanto na temática. Era tudo que eu sempre quis: imitar o Lobato e ainda com autorização!
Deu nisso:

GENTE GRANDE SÓ ATRAPALHA?

Gente grande

Narizinho estranhou a atitude de Emília. A bonequinha irriquieta e perguntadeira sentou-se amuada em um cantinho da biblioteca. Fez um bico e amarrou o burro. Penalizada, a bondosa menina perguntou:
- O que foi, Emília? Nunca te vi assim, tão quieta...
- O que foi, o que foi... – falou com um tom irritado – Nunca fui tão humilhada nessa minha longa existência bonecal! Quem a Dona Benta pensa que é para me mandar fechar a torneirinha de asneiras? Logo eu, Marquesa de Rabicó! Ex- Condessa de Três Estrelinhas!
Narizinho riu-se da irritação da outra:
- Ora, Emília, e com razão! Nem a Vovó, nem ninguém aguentava mais aquela sua teoria sobre as coisas que não combinam com seus nomes!
Emília levantou-se e, antes de bater a porta, gritou:
- Parece que você está virando gente grande! Gente grande só atrapalha!

No Reino das Águas Claras

Emília mostrou-se furiosíssima. Sua nobre cabecinha de pano concluiu que todos estavam contra ela, até mesmo Narizinho, sempre tão boa, tão carinhosa. Isso não podia ser normal. Um mal terrível rondava o pessoal do Sítio. Era isso: estavam todos gravemente doentes. Não tinha outra explicação tamanha casmurrice. Precisava de ajuda. Pegou sua canastrinha e tocou para o Reino das Águas Claras.
Lá chegando, procurou o Dr. Caramujo:
- Senhor Doutor Cara de Coruja, o assunto é grave, gravíssimo. Pedrinho, Narizinho, Dona Benta, Tia Nastácia e até o embolorado do Visconde estão gravemente doentes!
O Dr. engasgou-se todo:
- Ora, pí-pí-lulas, o que houve com eles? É con-con-tagioso?
Emília irritou-se com o nervosismo do Dr.
- É, é sim. Só não pego porque sou feita de macela. Trata-se de adulticíssimus agudicimus!
Dr. Caramujo ergueu as antenas:
- Nunca se viu esse vírus nos arredores do Sítio do Picapau Amarelo! É mesmo grave, gravíssimo!
Batendo o pé e já dando as costas, Emília ordenou:
- Pois é! Então passa pra cá as pílulas que estou com muita pressa!
- Dona Emília, receio não poder ajudar... – disse, reticente.
- O quê? Que porcaria de doutor é você? Seu... Seu Cara de Coruja seca!
Doutor Caramujo tentou explicar que as pílulas contra esse vírus estavam esgotadas, que foram todas usadas, sem sucesso, na cidade grande. A extração da matéria-prima, pó de chifre de unicórnio dourado, estava proibida. Mas havia uma saída...
- Só se você fosse ... Ah, deixa pra lá!
Emília agarrou o braço do Dr e exigiu:
- Desembucha! Se eu fosse onde? Está pensando que eu não consigo?
- ... falar com Peter Pan...

Pirlimpimpim

O Dr. nem teve tempo de ver Emília retirar da canastrinha o pó de pirlimpim. Só ouviu a Boneca ordenar: “Terra do Nunca” e já estavam lá, na frente de Peter Pan. Emília piscou seus grandes olhos de retrós. Fez a cara mais simpática que se poderia ver em uma cara de pano:
- Nobilíssimo Meniníssimo Peter Pan! Eu e esse Cara de Coruja seca aí viemos em uma missão especial! Só você pode nos ajudar!
Peter Pan reconheceu a boneca:
- Ora, se não é a Dona Emília, do Sítio do Picapau Amarelo! Como vai o Pedrinho, meu amigão?
Emília ensaiou um ar grave e reticente:
- Seu amigo corre um grave risco, Meniníssimo! Aliás, todo o pessoal do Sítio...
- Trata-se de um violento surto de Adulticissimus Agudissimus! – Atalhou o Doutor Caramujo.
Peter Pan empalideceu. Não, ele não poderia nem chegar perto do Sítio. Essa doença era altamente contagiosa. Emília foi logo dizendo que ela não estava infectada, já que era recheada de uma erva medicinal. Precisavam da ajuda de Peter. Só ele sabia onde ficava a fonte da eterna juventude. Imediatamente, o menino tirou do gorro uma garrafinha minúscula cheinha da água da tal fonte. Mas estava dando só porque era para salvar um amigo, ai de Emília se espalhasse onde conseguira a garrafinha. Dr. Caramujo avisou a Emília que ela deveria administrar apenas uma gotinha para cada doente, pois, do contrário, poderiam até virar bebês.
Na volta para casa, Dr. Caramujo pediu umas gotinhas para Emília, para o caso de haver mais pacientes acometidos. A bonequinha fez ouvidos moucos. Não gastara seu pó de pirlimpimpim para dividir a água que ela conseguira com suas próprias idéias maravilhosas.

Suco do Maracujá Amarelo

Já era noite quando Emília chegou ao Sítio. Todos estavam ouvindo Tia Nastácia contar uma história na sala. A cozinha estava vazia: era sua oportunidade. Encheu cinco copos com suco de maracujá e colocou duas gotinhas de água da fonte da juventude em cada um deles – o Cara de Coruja não entende disso. Foi até a sala cantando:
- Suco do maracujá amarelo...
Todos estranharam tamanha gentileza. O quê? Emília servindo outras pessoas? Emília pedindo desculpas pela rabujice? Emília voltando atrás? Como a noite estava muito quente, um suco de maracujá não faria mal ... e tomaram. Emília não se continha de tanta alegria. Batia palminhas.Ficou esperando o resultado. Perguntadeira que ela, teve que morder os lábios para não inquirir seus pacientes. O que estariam sentindo? Será que sairiam no meio da noite a caçar a mula-sem-cabeça? No que se decepcionou. Um a um, pediram licença e retiraram-se aos seus quartos, que aquele suco de maracujá deu um soninho...

Banho de Ribeirão

Na manhã seguinte, Emília não sentiu o cheiro de café quando acordou. Narizinho não dormia ao seu lado. Na sala, não achou Dona Benta sentada como de costume. Tia Nastácia também não estava na cozinha. No quintal, os pintos ciscavam livres. A vaca Mocha mugia, com os úberes cheios de leite: ninguém a havia ordenhado. A boneca nada entendia. Onde estavam todos? Os besouros espiões chegaram apressados:
- Por que já está todo mundo tomando banho no ribeirão a essa hora?
- No ribeirão? Pois sim!
Emília, num zás, chegou ao Ribeirão. Ficou boquiaberta com o que viu. Dona Benta e Tia Nastácia nadavam como Iaras. Na margem, Pedrinho, Narizinho e Visconde fartavam-se em um piquenique de guloseimas. Aqueles ingratos nem esperaram por ela! Mas iriam ver: ninguém despreza impunemente a Marquesa.
As crianças correram para a água. Emília aproveitou a oportunidade para aproximar-se da cesta de doces. As senhoras-Iara avistaram-na e correram ao seu encontro. Tia Nastácia pegou a marquesa pelos braços; Dona Benta, pelos pés. Balançaram-na, fizeram um-dois-três e atiraram a pobre boneca de pano na água. Todos riram muito – exceto Emília, claro.

O arrependimento de Emília

Toda encharcada, teve que se pendurar no varal. E sozinha, que ninguém fez nada para a ajudar. Quem as velhotas pensavam que eram? Elas só estavam assim, lépidas e faceiras, porque ela, elazinha própria, tivera a ideia de buscar a água da fonte da eterna juventude. Via, agora, que gastara seu pó de pirlimpimpim à toa. Ela queria mais animação no Sítio, mas não precisava tanto.
A boneca, do varal, viu o pessoal voltando do Ribeirão. De almoço, viu Tia Nastácia servindo sobremesas e mais sobremesas. Nada de arroz, feijão ou legumes. Também ninguém escovou os dentes. Foram todos sestear sem sequer trocar a roupa molhada. Emília saiu do varal para adverti-los: ficariam doentes daquele jeito - teriam dor de barriga, cárie, resfriado... Como resposta, recebeu uma sonora vaia. Ela que deixasse de ser chata. Estava parecendo adulta!
Assim se seguiram três dias: banho de ribeirão, doces, doces, banho de ribeirão. Ninguém tomava banho de verdade, tampouco cozinhava ou limpava. A casa era uma bagunça total. Brinquedos estavam em toda parte. A pia transbordava de louças para lavar.
Com pena da vaca Mocha, Emília ordenhou-a e alimentou-a. Deu de comer também aos porcos e às galinhas. Pensou em fazer uma comida de verdade para seus amigos, mas ela lá sabia cozinhar? Suas mãos de marquesa não foram feitas para o trabalho duro. Precisava dar um basta nisso.

Desfazer o plano

Emília fez o mais difícil: admitiu o fracasso de seu plano. Precisava de ajuda. Chamou o Saci. Contou-lhe o caso. E agora?
- Olha, boneca, só a Cuca deve ter uma poção para desfazer isso. Mas por que ela ajudaria?
- Eu tenho algo que ela gostaria muito de ter. – Disse sem pestanejar. – Ela me dá a poção e eu dou a ela um vidrinho com oito gotas de água da Fonte da Eterna Juventude.
- E se ela quiser mais?
- Dez gotas e encerra-se o assunto. É pegar ou largar.
O Saci voltou, meia hora depois, com um vidrinho com um líquido amarelo. Era o envelhecedor que a Madrasta da Branca de Neve usara para enganá-la na casa dos sete anões. Mas Emília deveria colocar apenas duas gotinhas no suco de cada um deles, caso contrário poderiam ficar velhos para sempre ou até morrer.
A bonequinha arrumou cinco copos com suco artificial e colocou uma gotinha do envelhecedor em cada um deles – a Cuca poderia estar enganando. Todo cuidado com aquela matreira era pouco. O Saci ficou esperando a recompensa da Cuca. Emília respondeu:
- Pode deixar que depois, se fizer efeito, eu me acerto com a jacaroa.
Já era noite alta quando os cinco voltaram para o Sítio. Serviu os sucos. Ninguém agradeceu. Dormiram pesados e fedorentos.
Na manhã seguinte, Emília acordou com o cheiro de café fresquinho e de pão quentinho. A paz voltara ao Sítio.


terça-feira, 27 de outubro de 2009

A BRUXA TETEIA

Hoje estava contando uma história para o João Pedro. Inventei uma bruxa Teteia. As rimas do início do texto a seguir fizemos juntos. O guri é bom nisso!!! Ele acha muito engraçado rimar.
Vai lá:


A bruxa Teteia


A bruxa Teteia
Come jiló com geleia

É filha da Doroteia

Tem alergia a azaleia!

Ela mora lá na montanha.
Todo dia se assanha
Quando vê a criançada chegar
Para na escola brincar!

Não ir para escola não é justo!
Nem sou tão feia- ninguém vai levar susto!
Todo dia ela protesta!
Ela quer é fazer festa!

Com sua capa de invisibilidade
Da escola se aproxima!
Fica sabendo da grande novidade:
Vai ter festa a fantasia!

Teteia vibra de emoção:
Põe para funcionar a imaginação!

Vem a grande idéia
Da bruxa Teteia:

Se a festa a fantasia vai ser...

Se até Batman e Homem Aranha vai ter...

A bruxa pode aparecer!!!!


Teteia voa até a Lua, dança e comemora!
Arruma-se toda e não nota a demora

A festa ... Tá na hora!!!
Estou toda atrasada!
Como vou sair dessa enrascada?

Teteia monta na vassoura Balala
Entra voando na sala!

A professora dá um grito!
Os amigos curtem o agito!

- Quero carona! – Pede João.
Teteia logo mostra seu grande coração!

A nova colega é radical!
Todos a acham muito legal!

Se ela é bruxa, o que é que tem?
Ela é amiga, ela é do bem!

Teteia agora vai à escola todo o dia
Tem amigos, tem companhia
Só uma coisa ela não esperava:
Que teria tanto tema de casa!

segunda-feira, 26 de outubro de 2009

O capítulo das maçãs

Juntei a proposta da Oficina (terminar com a frase do Camões: "Para tão longo amor, tão curta vida.” ) com a história que meu aluno Elemar, de TL II, contou em aula - algo parecido realmente ocorreu. Deu no seguinte:

O capítulo das maçãs

Era no tempo em que frutas davam em árvores do seu próprio quintal, ou – muito melhor – do quintal do vizinho. Em São José do Cedro, fruta que dava era caqui, laranja, goiaba. E bergamota – coisa de se comer na hora em que se tira do pé, sob o sol tímido de julho no Sul. Bom pra cortar a gripe, diziam as avós.

O tempo assim se ia, no devagar-depressa da troca das safras. Bom mesmo era achar um pé temporão de qualquer coisa. Sabor de saudade.

Para os meninos, tinha escola. Pouca, que o serviço na roça era muito. Vencia-se a cartilha ou talvez um pouco mais, mas só para aqueles que tinham tutano. Era caso do Lúcio. O piá tinha mania de perguntador, de engasgar os tios e corar as tias. Aprendera a juntar as letras na folhinha da venda do Seu Beckenkamp e no Almanaque Sadol.

Na escola, essa tal de cartilha encucou o menino. Havia umas coisas que ele não entendia. Dizia que o Ivo viu a uva. Seu tio era o Ivo, e na casa dele não havia uva. Onde vira então? Na primeira oportunidade, não se sofreu:

- Tio, o senhor já viu uva?
- Olha, aqui no Cedro não. Que história é essa?
- O livro da escola diz que “Ivo viu a uva”. É mentira, né?

O tio engasgou. Ele não tivera escola, mas se está no livro é certo. É outro Ivo. Com certeza é de outro Ivo que estão falando. Quem haveria de conhecê-lo? Ele, um colono.

Lúcio deixou por isso mesmo. A desconfiança no livro aumentava. Havia também uma tal de maçã. A professora ordenou à classe um desenho. Era lição de casa. Ele nunca vira maçã. Escutara na missa que era fruta de Adão e Eva. Imaginou-a vermelha. Uma bergamota vermelha foi o que desenhou. A professora reclamou que aquela maçã estava muito esquisita. Falta de capricho! Sem recreio por uma semana.

O menino cismou com aquela tal de maçã. Precisava ver uma. Pegá-la, cheirá-la, mordê-la. Escreveu seu desejo em uma plaquinha de madeira. Depositou-a ao pé do cedro. Não custava: se o povo dizia que dava certo...

O castigo passou, o ano findou, o tempo de escola esgotava-se. Não esquecia do pedido. A plaquinha ao pé da árvore já fora soterrada por outras tantas. “O povo é pouco; os desejos são muitos.” – pensava ele. Como poderiam querer tantas coisas? Ele só queria a maçã.

Em um domingo de veranico de maio, Lúcio foi às escondidas tomar banho de rio. A correnteza estava forte demais. Não teve coragem de entrar. Sentou-se em uma pedra. Se tivesse a força daquele rio para ir-se embora dali... Não queria mais ficar à margem de seu desejo. Procurava uma motivação forte. Precisava de algo que o inundasse de coragem. Foi quando se deu a coisa mais curiosa jamais vista: um saco vermelho boiando. E mais outro. E outro. E vários.

Lúcio jogou-se na correnteza. Pegou um dos sacos. Nadava com um braço só. Engoliu muita água. Debateu-se. Perdeu o pacote. Recuperou-o. Voltou à margem vitorioso e exausto.

Examinou o pacote. Era feito de linha, como saco de batatas. Linha vermelha. Dentro, concluiu que eram frutas. Vermelhas, lustrosas. Seriam maçãs? Puxou o fio vermelho que fechava o saco. Pegou um dos frutos. Só poderiam ser maçãs. Seria possível, meu Deus? Sentou-se no saco e contemplou a fruta. Maçã, finalmente. O cheiro doce. Era vermelha, com uns pontinhos esbranquiçados. Aqui e ali uma listra mais alaranjada. A cor mais linda que ele já vira. Cheirava e cheirava. Seria assim o cheiro da paixão? Queria mordê-la, mas sofreava o instinto. Precisava vê-la, ter certeza da posse. A casca lisa contrastava com a solidez. Não sabia se seus dentes seriam capazes. Parecia muito dura. Criou coragem. Mordeu-a. A resistência. O gosto meio doce, meio ácido. Tudo tão indefinido quanto sua própria vida. Deu mais uma mordida. Um suco doce acompanhou o pedaço da fruta dura. Se quisesse o doce, precisaria vencer a resistência. A cada mordida, o doce superava o ácido. Assim seria o doce do beijo? Assim seria amar? Doce e ácido? Finalmente, Lúcio tinha a sua maçã. A fruta que expulsa do paraíso. A maçã era seu amor.

Quando chegava à semente, seu pai aproximava-se a cavalo. De cima do animal, já gritou que eram pobres, mas dignos. O menino haveria de devolver o saco ao motorista do caminhão que tombou lá em cima, na curva do rio. Era um lageano, mas boa gente. O pobre homem estava desesperado pela perda da carga.

Lúcio não reagiu. O pai levou o saco. O sonho. Ele ficou ali, olhando para a semente. Foi o que lhe restou de tão grande paixão. “Para tão longo amor, tão curta vida.”

domingo, 11 de outubro de 2009

A outra

Ela não voltaria atrás. Um absurdo. Eles mereciam seu desprezo. Não, melhor: sua indiferença. Ensaiou na frente do espelho o movimento que faria com os ombros quando alguém lhe perguntasse por ele. Ou pela outra, a ex-amiga. Recolheu o choro. Despachou as coisas dele com o porteiro.

Ninguém tocava no assunto. No meio do expediente, fugia para o banheiro. Revisava seu movimento de ombros: nem tão para cima – canastrice -, nem tão para baixo – falta de ênfase. A faxineira, certa vez, flagrou-a no exercício. “É bom para as costas. Esse computador ainda me mata”.

Não foi convidada para a festa de batizado da filha do colega. Normal, mulheres avulsas são um perigo. Ainda mais ela, linda que era. Gostou de ser perigosíssima. No horário da festa, foi ao shopping e comprou um sapato salto 15 com estampa de tigre. Saiu da loja com ele. Uma felina.

Também não a convidaram para o casamento da filha do chefe da filial. Natural. Só iriam casais. A linda mulher avulsa comprometeria a harmonia, foi o que ela pensou. Comprou uma sandália de prata, amarrada no tornozelo. Vestido branco esvoaçante. Era uma deusa grega.

Sucederam-se aniversários, formaturas, noivados, bodas de prata. Espiava as fotos nos sites dos fotógrafos badalados. Ele e ela estavam lá. Sempre. Seu guarda-roupa acrescentava-se: botas, joias, decotes vertiginosos. Virou loira. Botou unhas de porcelana. Mega hair. Botox. Silicone. Lipoaspiração. Revista Cláudia. O velho segurança barrou-a na entrada da empresa:

- A moça me desculpe – gaguejou, olhos fixos no decote - aqui só entra funcionário autorizado.
- Troca os óculos, Seu Alfredo. Não me reconhece mais? –disse, deixando-o para trás, envolto em seu Paloma Picasso.

Pisava firme seu salto. Chegava cedo o suficiente para treinar, no espelho do banheiro, o movimento dos ombros.Todo dia. Ninguém perguntava. Ela ansiava por isso. Acrescentou um olhar blasé à pantomima. Igual ao dela na foto mais recente. Uma jogada de cabelo. Agora ela podia.

A pergunta não vinha.. O expediente terminava cedo demais. As idas aos shoppings se sucediam. Naquele dia, cartão de crédito no limite, olhava as vitrines. Alguém chamou o nome da outra, da sua ex-melhor amiga. Tremeu. Ela estava por perto. Grudou os olhos na vitrine. A voz insistia. Reconheceu a voz. Falta de ar na roupa apertada. As pernas mal se sustinham. Tontura. A voz, de novo, chamava “Amor”. Ela olhava para a vitrine. No reflexo do vidro, enxergou a outra diante de si. Os cabelos, a silhueta, o figurino. Tudo aquilo era a outra. Respirou fundo. Aquele não era o seu cheiro. Era o cheiro dela. Aquele trejeito também não era seu. O vazio no estômago, a maquiagem entupindo os poros. Tampouco isso não era seu. Ele aproximava-se. Viu, no reflexo, o momento em que ele levaria a mão ao seu ombro. Sentiu sua respiração na nuca. Esquivou-se. Ele pegou-a pela cintura. Ela teve uma vertigem. Ficaram frente a frente, abraçados. Ele avermelhou:

- Desculpa, pensei que fosse minha mulher, juro! Assim, de costas...

Ela empurrou-o. Disparou. Virou o pé. Ele gritou:

- Moça, desculpa,viu?

Ela estaqueou. Virou para trás. Certificou-se que ele a seguia. Lançou-lhe o olhar blasé. Deu-lhe as costas, atirando a cabeleira. Jogou os ombros para cima e para baixo. Seguiu. Jogou sua sandália de prata na primeira lixeira.

domingo, 4 de outubro de 2009

Poemeto só para a Vera

Nas nossas andanças do Ler é saber, depois de ler um texto lindo da Vera, fiz um poeminha despretensioso para ela. Para minha amiga Vera Winter, que de inverno não tem nada...

Poemeto só para a Vera

Lá vem minha amiga Vera
Seu sorriso primaveril
Vestido floreado, perfume de alfazema
Flor nas palavras, sapato azul anil
Só não gosto é daquele seu namorado
Meu primo, todo emproado,
Diz que ainda casa com ela
Vera vira minha prima:
Prima Vera.

domingo, 20 de setembro de 2009

Fugiu com o Mendola

Já eram três da manhã quando terminou o trabalho. Um artigo de 20 páginas. Para um colega de trabalho. Coitado, tão atarefado, como ela não o ajudaria? Sentiu uma dor no pescoço, um formigamento que se estendia para os ombros e para o braço. Tendinite. Precisa maneirar no computador. Colocou uma bolsa de água quente nas costas. Verificou o rádio. Ajustado para as cinco e quarenta. Dormiu ao som da TV.

O colega nem agradeceu. “Deixa aí que depois eu olho.” Era sempre assim. Acostumou-se. Deixou café na mesa de todos e sentou-se para ler seus e-mails. O chefe avisou que precisaria que ela ficasse até mais tarde. Nem esperou para ouvir o “sem problemas, o senhor é quem manda”. Era quinta-feira. Ela perderia seu seriado preferido, mas não tinha nada, não. Seria útil no escritório. Havia até comprado comida especial para o gato. Assistiriam juntos, aninhados no edredom novo. Sem problemas.
A irmã mais velha ligou:

- A mãe quer um forno novo. Anda tão deprimida que pensei se...

- Sem problemas. – Interrompeu. – Quanto vai custar?

- Olha, o modelo que ela quer custa 500. – A irmã fez uma pausa. - Dá para parcelar.

- Vou fazer o depósito na tua conta. Olha, no fim de semana...

- Tá bom, vê se não demora. – Cortou a irmã.

Ela sonhava com uma viagem. Para qualquer lugar, bem baratinho. Nunca tirara férias de verdade. Estava guardando dinheiro para isso. A mãe precisava. Não negaria. Fez a transferência pela internet. A tendinite. Tomou um relaxante muscular. Estava cansada. Queria sumir. Na sua terra, quando alguém sumia, diziam que fugira com o Mendola. Nunca diriam isso dela.

Espiou o colega lendo o artigo que ela escrevera. Ele deu um rodopio e um beijo na folha. Ela sorriu. Não teve tempo para degustar a pequena alegria. A irmã do meio, ao telefone, cobrava:

- Olha, tu tens que levar a mãe este final de semana para a casa da tia Margô. A mãe precisa sair. Tu és a única que não tem família para cuidar.

Ela sempre levava. A irmã continuava a gritar:

- Outra coisa: como tu podes depositar a quantia justa para o forno da mãe? Não sabe que banco cobra taxas? Que gasolina é cara para estar por aí?

- Podes deixar que eu mesma levo a mãe para comprar.- Disse, engasgada. -Pede para a mana...

A irmã desligou. Era assim mesmo, apressada. O remédio fez efeito. Deu uma moleza. Foi almoçar, como fazia todas as quintas, na casa da mãe. A empregada pediu-lhe adiantamento. A mãe tinha visita. Uma amiga dos tempos de Rotary. Não, não era sua filha mais velha. Era a mais nova, a raspa do tacho, o restinho. A mãe e a visitante comeram em silêncio. Ela fez de conta. Carne de porco. Era alérgica desde criancinha. Quando a amiga foi ao banheiro, a mãe explodiu:

- Tu não estás pensando em pedir de volta o dinheiro que depositaste na conta da tua irmã, né? Ela me ligou chorando. Assim tu me matas de vergonha.

Não, ela não pediria. Quem precisa viajar? Isso não bastaria. A volta da amiga apaziguou os ânimos da mãe. No caminho para o trabalho, num sinal fechado, espiou para dentro de uma pet shop. Eles tinham siameses. Na gaiola, coitadinhos.

O chefe atolou a todos de trabalho. Estava irritado. Como alguém pode prender aquelas coisas fofas em uma gaiola? Concentrou-se. A dor nas costas voltou. Só faltava mais um restinho. Um resto como ela. Que gente sem coração, pobrezinhos dos siameses. E se eles ficassem sobrando, restando? Será que os sacrificariam? Terminou tudo. Uma colega, atrasadíssima depois de um café demorado, pediu que a ajudasse.

- Não!

O escritório parou. Ouviu-se o bebedouro pingar. Todos olharam para ela. O silêncio fez o chefe sair de sua sala. Ela pegou seu casaco e sua bolsa. O chefe deteve-a:

- E a hora extra?

- Não!

A colega atrasada:

- Ainda temos o que fazer.

- Não!

Parou na pet shop. Só havia mais um gato. Ficou feliz pelos outros. Comprou o raspa do tacho, o restinho. A vendedora perguntou qual seria o nome.

- Mendola. - Fez uma pausa enquanto pagava - Diga a todos que eu fugi com o Mendola.

domingo, 13 de setembro de 2009

Cacos

Saiu da missa resolvida. Não passaria mais um domingo à tarde sozinha. Tivera filhos, marido. Tinha suas qualidades. Admitia: faltava-lhe entusiasmo. Iniciativa. Deixara as coisas chegarem naquele pé. Cada um para seu lado, cuidando das suas coisas. Dos seus interesses. Sem elos.

Entrou no supermercado com uma pressa antiga. O carrinho voava pelos corredores. Na fila do caixa, ligou para a filha mais velha. Fora de área. Para a filha do meio. Desligado. Para a mais nova. Nada. Ainda era cedo para os jovens.

O marido assistia à corrida de Fórmula 1 na sala. De pijamas. Ela levou-lhe o almoço comprado pronto. Na bandeja. Ele estranhou. Esboçou um sorriso. Meio-dia. Tentou mais uma vez falar com as filhas. Deixou recados nas caixas postais.

Bolo. Bateu claras em neve. A delicadeza da textura lembrou-lhe o seu vestido de noiva. As gemas. Com açúcar. Recordou-se das gemadas que fazia para a filha mais velha. Prematura, sempre foi fraquinha. Penerou a farinha. O pó fininho caindo na bacia. Areia branca. Férias em Garopaba. As crianças felizes. O marido, a amante, o flagra, o escândalo. Chocolate em pó. Carinhas lambuzadas, orelhinhas de coelho. Parentes incomodando nas datas festivas. A sogra, a cobra. Leite morno. Peitos fartos, mamadeiras. Noites sem dormir. Fermento. Calças curtas. A roupa da mais velha na mais nova. Orçamento apertado. Trabalho, trabalho, filhas largadas. A fôrma. De coração. Aperto no peito, expediente até mais tarde, filha doente. O forno quente. Abraços no dia das mães. E se o bolo solasse? E se elas não viessem?

O cheiro do bolo animou-a. Preparou brigadeiros. Festas de aniversário. Crianças barulhentas. Balões estourados. Ligou novamente. A mais nova atendeu. Sim, mais tarde ela iria, sem problema. Bolinhas de polvilho. Lanches das tardes chuvosas. Lições de casa bem feitas. Ela arrumou a mesa. Estreias: a porcelana herdada, a toalha que ela mesma bordara, flores colhidas no impecável jardim. A jarra com suco. O adoçante para a mais velha. O pão integral para a filha do meio. Iogurte para os bebês. Queijo branco para a mais nova. Uma xícara de café solúvel, três de açúcar, uma de Nescau, um quarto de água fria batidos no processador. Só esperaria as filhas chegarem. Duas colheres em cada xícara. Um beijo em cada uma antes de irem para escola. Leite quente vertido por cima. Cobrir as filhas no meio da noite. Será que elas ainda gostavam disso?

Tudo pronto. Ouviu os roncos vindos da sala. Na TV, bailarinas mal vestidas dançavam ao som de uma música popular. Hora de desligar, hora de acordar. As crianças estavam chegando. E se não chegassem?

A campainha tocou. As filhas chegaram com as netas. Ao mesmo tempo. Não juntas. Estranharam-se. As rugas. As cores dos cabelos. As meninas crescidas. Onde estavam aqueles bebês? O abraço desajeitado. Cheiro do passado. O beijo no ar. Os olhares desencontrados. Velhos chavões. As crianças brincavam. A mãe convidou-as para o café.

Ela tremia. Silêncio das coisas não ditas. E se elas não gostassem? Derramou um pouco de leite. A mais velha foi ajudar. As mãos se encontraram. Os olhos. Reconheceram-se. Abraçaram-se A leiteira de porcelana escorregou da mão. As outras duas correram em socorro. Juntaram-se ao calor do abraço. O barulho trouxe o pai à sala de jantar. Era hora de juntarem todos os cacos.

terça-feira, 8 de setembro de 2009

Vestido de noiva

Vestido de noiva

Ela tomou um banho rápido. De banheira para não molhar a cabeça com os rolos. Valeria o incômodo. Valeria? Por que não sentia que aquele era seu grande dia, como descrevem as revistas femininas? Por que não estava com os nervos em frangalhos? Por que restavam tantos porquês? A campainha denunciava a chegada do cabeleireiro. Começaria o ritual.
O cabeleireiro e seu séquito esperavam-na no quarto. Abraçaram-na. Fizeram-lhe festa, frases feitas. Ela sentiu-se nauseada. Não, não estava grávida. A maquiadora trouxe um copo d’água. A manicure contemplava o vestido de noiva estendido sobre a cama. Digno de uma rainha. Cristais svarowski em profusão. Detalhes aqui e ali eram enaltecidos. Ela queria dizer que aquele não era o vestido com que sonhara. Aliás, nunca sonhara com vestido de noiva algum. O branco não lhe caía bem.Nada lhe caía bem. A festa em seu quarto estava ruidosa demais. Preferiu calar-se.
A mãe entrou no quarto. Duvidou que os cachos dos cabelos durariam até a igreja. Com um tempo daqueles! Só faltava chover mais ainda na hora de descer do carro. E esse vestido de cauda? Vai sujar. Ela bem que avisara a filha para pegar outro modelo. Mãe nunca é ouvida, sabe como são essas jovens de hoje. Só faltava o vestido não fechar. Se essa desgraça acontecesse, não seria por falta de aviso: sempre fora uma mãe zelosa.
A maquiagem ficou pronta. A mãe achou muito fraca. A filha, muito forte. O cabeleireiro e a manicure intervieram: estava linda. A noiva decidiu que ficaria assim mesmo. Não faria diferença. Lembrou de suas leituras atrasadas para as aulas do mestrado. Uma tontura. As palavras eram um zumzum sem sentido.
Chegou uma prima, arrastando suas duas filhas, as damas de honra. Trouxeram também o buquê de lírios. O cheiro nauseante das flores. O excesso de fixador de cabelos. O gosto enjoado do batom. A algazarra das meninas. A conversa inútil do séquito. Ela teve vontade de correr. Uma trovoada mais forte assustou-a. O coração disparou. Viu pontinhos pretos. Era hora de vestir-se.
As mangas entraram apertadas. A mãe sorriu. O vestido fechou. Ela viu uma sombra de decepção no olhar da mãe. O cabeleireiro declarou a noiva pronta. A mãe fez menção de dar uma voltinha em torno da filha:
- Hoje não! – disse a filha segurando a mãe pelo braço. – Hoje tu não vais me diminuir.
Fez silêncio. As unhas da filha marcaram o braço da mãe. A prima interveio: coisas de noiva, é natural o nervosismo. Mãe e filha se olharam, desafiadoras. Elas sabiam. Não era nervosismo. A mãe desviou o olhar e disse:
- Cuida, filha, para não tropeçar. Vê se não gagueja. Tu sabes que eu me preocupo tanto, minha única filha.
O pai entrou no quarto. Tomou o braço da filha. Era bom irem logo, o padre não queria mais do que dez minutos de atraso. Conduziu-a à limusine alugada. Ela viu a euforia das daminhas. Estavam felizes em seus vestidos rodados. Lembrou-se de quando fora daminha, no casamento de uma tia. Vestido branco com uma faixa rosa à cintura. Tiara de brilhantes parecida com a da noiva. Levava uma almofada de cetim com as alianças. Sentiu-se importante. Foi à frente do cortejo, toda feliz. O corredor da igreja era sua passarela. Quando ia abanar para a mãe, ouviu-a dizer à senhora que estava ao seu lado: “A gordinha, a mais feinha das três daminhas, é minha filha. De criação, não temos gordos na família.” Soube, naquele momento, o que sempre intuíra.
A alegria das meninas a trouxe de volta. Queria a mesma sensação delas. Sentiu-se mal com a inveja. Como conseguiam? Lembrou da monografia pela metade e de uma referência teórica. Fez uma associação mental para não esquecer. A mãe interrompeu sua concentração:
- Tens certeza do que estás fazendo? Ainda está em tempo de desistir...
- Cala a boca, mulher. – Ordenou o pai. – Vais deixar a guria nervosa até hoje, urubu? Te emenda!
Ela não ouviu mais a discussão. Olhava, embevecida, para as daminhas. Queria aquela alegria. Desejava o riso solto. Invejava os sorrisos e os gritinhos de frenesi. Chegaram à igreja. Não chovia. O vestido não sujou. Tremeu. Braço dado ao pai, pensou em desistir. Ave Maria. Olhou para as meninas. Cheias de graça. Espalhavam pétalas de rosas no chão. Benditas eram. Queria-as para si. Queria ser uma delas. Não sairia correndo. Não poderia. Não as decepcionaria. Não macularia aquela felicidade.
Ela não tropeçou, não gaguejou. Tampouco desmaiou. Desafiou o olhar desaprovador da mãe. Contemplava as crianças plenas de graça. O noivo. Ela queria duas meninas. Ele lhe as daria.

domingo, 6 de setembro de 2009

Feliz aniversário

Dois soldados conduziram-na até um cubículo. Pediram que aguardasse. Como não o faria? Trancaram-na. Nenhuma janela. Uma lâmpada fraca pendia por um fio. As paredes sem pintura vertiam água. Frio úmido no calor de dezembro.
Havia três cadeiras e uma mesa minúscula. Em um canto, fios, meia dúzia de pregos, uma bacia e uma marreta. No outro, um camundongo morto. Baratas aqui e ali. A umidade do chão chegou aos seus pés, desprotegidos nas sandálias de couro. Estava com o estômago embrulhado: o cheiro de mofo, do camundongo putrefato. O balanço da Veraneio que a trouxera até ali. O medo. Tinha consciência da sua grande boca. Justo naquele dia. Sexta-feira, 13 ̶ seu aniversário. Estava conformada no seu plantão quando apareceram os soldados.
Sentou. Suava frio. Levou a mão aos olhos. A maquiagem borrou. Custou caro aquele delineador da Max Factor. Meia hora na frente do espelho, copiando a maquiagem da garota da capa da revista O Cruzeiro para quê? Para ser levada em um camburão cheio de milicos? Para ser uma encarceirada mais bonita? Não haveria de ser nada grave. Nunca se envolvera em movimento algum. Mantivera distância de passeatas, greves, reivindicações. Achava tudo isso uma bobagem improdutiva. Antipatizava com os ditos “subversivos”. Não queria saber dos problemas alheios. Os outros também nada sabiam sobre sua vida. Não era de seu feitio bancar a simpática. Muito menos a heroína. Se quisessem nomes, falaria qualquer um. Talvez daquele vizinho chato, se soubesse. Ou do colega insuportável.
Sua espera não tinha fim. Chaveada. Silêncio. Sem noção de tempo. Sentia falta de ar. A lâmpada piscou duas vezes. Bateu na porta, gritou. Ninguém. A lâmpada apagou. As baratas! Como se defenderia delas no escuro? Esmurrou, chutou a porta. Tateando, subiu na mesa. Não conseguiu ficar de pé. Tremia. A porta abriu-se.
̶ Ainda tens medo de escuro, senhorita? ̶ Perguntou o oficial, adentrando o cubículo.
Ela desceu da mesa. Ajeitou as roupas e o cabelo. O oficial pegou-a pelo braço, fazendo sentar. Outro oficial chegou. Era mais velho e cheio de condecorações. Trazia um envelope grande e uma pasta. Colocou papéis sobre a mesa e uma caneta. Ordenou, ríspido:
̶ Assine!
Eram prontuários preenchidos. Certidões de óbito. No carimbo, seu nome verdadeiro, antecedido de “Dra”. Corou. Suas mãos tremiam. Engasgada, disse:
̶ Há um engano aqui. Sou enfermeira. Não posso assinar.
O oficial mais velho entregou-lhe o envelope, dizendo, jocoso:
̶ Agora é. Basta colaborar para a ordem e para o progresso da nação. Ou preferes ver os cadáveres para verificar se o laudo está correto, doutora? Ou que todos saibam de onde vens?
Os oficiais riram. Ela abriu o envelope. Um diploma de Medicina com seu nome de batismo.
̶ A nação tem muitos colaboradores. ̶ Comentou o condecorado.
̶ Assine! ̶ Ordenou o mais jovem.
Obedeceu sem erguer os olhos. Sua letra saiu tremida. Os oficiais conferiram as assinaturas. Com ar de deboche, o condecorado disse:
̶ Até amanhã!
O mais novo, rindo, falou:
̶ A propósito, feliz aniversário, dou-to-ra.

sexta-feira, 4 de setembro de 2009

Na casa do espanto

Este texto saiu no primeiro fascículo de 2009 do Ler é Saber, cujo tema era "Histórias extraordinárias". Pediram-me um texto para os alunos menores, de primeira a terceira série, que fosse rimado. Deu no seguinte:

Na casa do espanto

Na casa do espanto,
Um fantasma em cada canto.
Na cortina esfarrapada,
Uma aranha pendurada!

Enfeitando o quarto de dormir,
Há um esqueleto a sorrir.
Na cama toda empoeirada,
Uma múmia está deitada.


No banheiro, há uma pia rachada
Toda cheia de sapos – que coaxada!
Dentro da banheira centenária,
Banha-se uma serpente sanguinária.


Reúnem-se na sala de jantar
Vampiros terríveis a confabular:
De quem será o próximo pescoço mordido?
O meu não! Levo alho bem fedido!


Na cozinha, uma bruxa malvada
Prepara uma maçã bem envenenada.
É só o que ela sabe fazer:
Feias e belas a adormecer.


Frankstein lê na sala de visitas.
Esse escuro todo faz mal para as vistas!
Eta monstro descuidado para valer!
Mas eu não vou com ele me meter!


A Cuca invadiu o porão.
Trouxe consigo o Bicho-Papão!
Esses dois não são de nada:
Só sabem fazer trapalhada!


O Velho do Saco está no telhado
Com a chuva, ficou todo molhado!
Tomara que pegue um baita resfriado,
Para deixar de ser tão malvado!


Dessa casa, gosto mesmo é da saída!
Nunca mais por mim será invadida.
Esses monstros não são grande perigo,
Mas não sou louco de testar isso comigo!

quero

quero
toda a graça
toda a pirraça
de quem traça
o riso
sem siso
sorriso
só riso
na face
em que nasce
o novo dia.
Um fato
- factível -
é um sonho
-intangível -

brincadeira

SOL
SOLITÁRIO
SOLIDÃO
CELESTIAL
TU
TELÚRICO
TERRÍVEL
TEMOR
AMOR.

terça-feira, 1 de setembro de 2009

Ao vencedor, as batatas!

Foi cedo à banca de jornais. Cantarolava. Cuidava para não pisar nos rejuntes das pedras. Sorte. Queria ler a crítica de seu mais novo romance. Mais um sucesso, pra variar. Desfolhou todo o jornal, estabanado. Sacos de batatas. Intitulava-se “Sacos de batatas” a resenha. Era acusado de jogar seus personagens de um lado a outro sem nenhum zelo ou piedade. Não leu o resto. Imaginava o deleite de seus parentes. De seus ex-colegas. De sua ex-mulher. Da sua mãe.
Entrou em casa batendo a porta. Chutou o gato. Berrou para a empregada:
̶ -Mande seu filho vir aqui buscar essa porcaria de computador. É presente. Que faça bom uso.
̶ -Muito obrigada! – Disse, feliz da vida. ̶ Mas não quero dado, não! O senhor vai comprar um daqueles fininhos, bem modernos? Acho lindo, ainda mais os pretinhos...
Ele cortou a tagarelice:
̶ - Não preciso mais disso. Nunca mais escrevo.
A empregada arregalou os olhos. Abriu a boca e engoliu o ar. Suspendeu a pergunta, temerosa.
̶ - E você, trate de dar um jeito de aprender a escrever direito porque nem lista do super eu faço mais. ̶ - Ordenou.
̶ - Falando nisso – murmurou a empregada olhando para o chão -̶ , não vou fazer aquele seu purê porque as batatas acabaram. O senhor poderia...
Ele não ouviu o final da frase. Trancou-se no quarto. Deitado, olhava para o teto. Contava as tábuas do forro. Não queria pensar. Viu as malas sobre o roupeiro. Fugir seria trabalhoso e inútil. Deitou-se de bruços. O barulho do filho da empregada levando o computador irritou-o. Tapou a cabeça com o travesseiro. Dormiu. Sonhou que estava amarrado numa sala escura. Trouxeram-lhe um fumegante suflê de batatas. Quando iam lhe obrigar a comer a primeira colherada:
̶ - Senhor, senhor. Tem um moço aí com um papel pro senhor assinar. ̶ Chamou a empregada.
Ele lembrou-se. Era dia e não escrevia mais. Do quarto, gritou:
-̶ Assine você.
A empregada insistiu. Ele retrucou. Silêncio. Ele ouviu um choro baixo. Ela balbuciou:
̶ - Mas eu não assino mais meu nome desde que me divorciei. Não consigo.
Ele abriu a porta:
̶ - A sacana da minha ex-mulher também me deixou e nem por isso...
Ele não tinha moral para terminar a frase. Ela não notou:
̶ - Mas o senhor não teve que voltar a usar o sobrenome do pai. Pai bêbado. ̶ Soluçava. ̶ Coisa de mulher largada, feia, preguiçosa. ­Não sou isso, juro.
Ouviram o portão bater. O carteiro fora embora. Ele olhava a pobre criatura naquele choro inédito. Ela tentava se explicar:
- A lista de super eu faço. Não tem problema. Só assinar meu nome não dá...
Ele teve vontade de abraçá-la. Pegaria mal. Quis perguntar o que houve com o pai. Isso abriria precedentes. Nunca percebera aquela mulher. A fragilidade escondida sob a aparente rudeza. Um saco de batatas. Como seria aquele marido que a abandonara? Que expectativas frustrara com o casamento? As perguntas rodavam em sua cabeça. Precisava de um computador novo. Pegou um casaco e avisou:
̶ - Vou sair e demorar. Ligue o alarme quando for embora.
Ela já não chorava. Lembrou, delicada:
- Não esquece das batatas, tá?

domingo, 30 de agosto de 2009

Não me cabe no possível

Não me cabe no possível a fragilidade da vida.
Não me cabe no possível uma vida interrompida.
Não me cabe no possível não saber quando se está dando o último abraço.
A impossibilidade de voltar o tempo,
A inevitabilidade da tragédia anunciada,
A impassibilidade diante da morte,
Os bons morrerem cedo,
Também não me cabem no possível.

Não me cabe no possível saber
que um sorriso singularmente contagioso não ilumina mais esse mundo.
Que um espírito vibrante, enteosusiamado, não habita mais um corpo.
Que uma história de amor ficou em um ponto e vírgula.

Não me cabe no possível intuir
quanto sofrimento há nos silêncios diluídos.
Quantas lágrimas escondem outras lágrimas.

Só me cabe no possível a lembrança do sorriso. Do abraço confortável. Do amigo. Do coração do tamanho do universo. Do apoio. Do entusiasmo.
Cedo demais, ele, que era todo entusiasmo, está no seu lugar.In teos.

quarta-feira, 26 de agosto de 2009

A Promessa II

Ela adotou a menina. Colocou cortinas rendadas nas janelas. Uma guirlanda na porta. Escolheram tintas e móveis. Reconstruiu o forno de barro. Cortou a goiabeira. Plantou flores e legumes. Reformou a casinha da árvore. Comprou laços de fita para os cabelos da pequena. Roupas cor-de-rosa. O Batalhão das Letras. Um Labrador caramelo. Bordou toalhas de banho com os seus apelidos – novas vidas, novos nomes. Trancou os fantasmas no porão. Ela zelava pela felicidade da filha. Sessão da tarde e pipoca. Reinações de Narizinho antes de dormir. Uma pessoa de bem. Mãe, enfim. Uma família. Nidificaram. O lugar do pai estava vago. Ela e ele se encontraram, olharam-se. Não se amaram. Eram convenientes. Elas precisavam de um pai. Ele, de uma família. Ninho para a menina, status para ele, sonho para ela. Casaram-se – pompa e circunstância. Viajavam, frequentavam, aconteciam. Ela não ouvia o que lhe diziam sobre ele. Não lia o que escreviam sobre ele os jornais. Não via que ele chegava tarde. Não sentia o seu cheiro de perfume vagabundo e de uísque caro. Negava tudo. Negar não pôde a notificação judicial. Ele trapaceara. Ela mandou a filha para a Disney.
Agora eram só os dois. De igual para igual. Tinha seus contatos. Colocou a raiva em conserva por vários dias para servi-la naquele café da manhã. Mesa no quintal florido. Toalha da Ilha da Madeira, copos de cristal, porcelana fina, suco com sonífero. Ele dormiu. Ela o amarrou a uma cadeira, junto à mesa posta. Escreveu uma carta de suicida. Conhecia bem o gênero. Ele acordou. De revólver em punho, ela apresentou a carta impressa.
̶ - Assina! Nada de tremer a letra. ̶ ordenou ela.
̶ - Sua louca, o que é isso? Não vou assinar nada! ̶ - disse ele, derrubando uma xícara.
-̶ Não precisas, mando do teu e-mail para todos os teus contatos. Senha com nome do time de futebol, coisa mais patética! ̶ disse, rindo e engatilhando a arma. ̶ Se tu assinares, é morte indolor. Se tu não assinares, morres devagarinho, devagarinho... Achas que não aprendi nada em vinte anos?
̶ - O que eu te fiz, criatura? Pensa na nossa filha, o que vai ser dela, pelo-amor-de-deus!- ̶ gritava ele.
̶ -Assina! Tua filha nada! Minha! – Berrava, apontando-lhe a arma.
- Ele assinou. Ela recolheu depressa o papel. Encostou o revólver na cabeça dele.
̶ -O que tu vais fazer agora? Por que tudo isso? Tu não és assassina...
̶ -Experimenta para ver! Tu mereces. Aquelas empresas-fantasma no meu nome... ̶ gritou.
̶ - Só usei teus documentos. Iria dar tudo certo não fossem aquelas escutas... ̶ falou, soluçando.
̶ - Desgraçado! ̶ - rosnou ela, dando-lhe uma bofetada no rosto e um chute na canela. ­̶ Então o que dizem os jornais é verdade...
̶ - Eles não sabem da missa um terço. Mas não é por isso que tu vais te sujar. Me tira daqui, pensa, pensa! ̶- implorava.
̶ -Tu desviaste aquele dinheiro todo. ̶- gritava ela, cuspindo-lhe na cara. - Ladrão! Safado! Pilantra! Ordinário! ... ̶ gritava ela, cuspindo-lhe na cara.
̶ - Aquilo e muito mais, que está lá, guardadinho, esperando por nós, só deixando passar a turbulência, meu amor! ̶ - serpenteou.
­Ela baixou a arma. Atirou-a no chão. Aproximou-se dele. Bem perto. Hálito com hálito. Beijou-o. Sentou no seu colo. Colocou a mão por baixo da cadeira e arrancou um gravador colado com fita adesiva. Rebobinou. Ouviu um trecho. Gritou:
̶ -Podem vir!
Policiais infestaram o jardim florido. Desamarraram-no. Algemaram-no. Ela entrou na casa. Espiou entre as cortinas: levaram-no, enfim. A felicidade da filha estava a salvo. Eliminou o chupim. Acomodou-se na melhor poltrona da sala, esperando o tempo passar.
Ao fim de uma hora, ela conferiu seu saldo bancário na internet. Fez uma transferência. Sorriu. Fechou a casa. Colocou um cadeado no porão. Tirou as cortinas de renda. Recolheu a guirlanda. Ajeitou-as em malas, junto com as roupas cor-de-rosa, as toalhas bordadas, O Batalhão das Letras e Reinações de Narizinho. Colocou o Labrador no banco de trás da Hilux que acabaram de entregar. Conferiu os documentos do veículo, os seus e os da menina. Novos nomes, nova vida. No painel do carro, um bilhete com seu novo endereço, chaves e controle remoto do portão. A filha aguardava-a no aeroporto.

A promessa

Aquele seria o fim de uma noite tranqüila - ̶ para os padrões de um serviço de emergência. Faltavam 25 minutos apenas para concluir meu turno. Se tivesse sorte, o telefone não tocaria e poderia ir para casa assim que minha substituta chegasse. Mas ele tocou. Saco! Vamos lá, fazer o quê?
Na ambulância, meus colegas tiravam sarro. “Hora extra não-remunerada de novo.”, “Olha a Madre Teresa!”. Eram as mesmas, velhas e infames piadinhas. Fui colocando as luvas – três, como de costume­ – e ai do hipócrita que falasse alguma coisa.
Como era longe. De dentro da ambulância, não tinha a menor noção de aonde estávamos indo. Só que estava demorando. Quando desci e olhei para a casa, bambeei. Fiz uma descarga de adrenalina, daquelas de sepultar cardíacos. Não podia entrar lá. Nem pensar. Fiquei para trás, mas logo um colega me chamou:
̶ Que que é? A valentona tá com medinho da casa mal-assombrada? Buuuuuuuuu!
“Palhaço, casa mal-assombrada uma ova!”, pensei. Respirei fundo e fui. Melhor ir do que dar explicações. Estava tudo tão igual ̶ pelo menos, no escuro. Uma saudade doída apertou-me a garganta. Não pude olhar muito o pátio. Meus colegas já estavam na casa. Parei na soleira. Respirei fundo. Faltava o cheiro.
Nas sextas-feiras, era dia de faxina geral. Minha mãe chegava mais cedo do trabalho. Colocava todos os móveis leves na rua. Vassoura, balde, pano, escovão. Depois, Let´s twist again no toca-discos. Dançávamos com as flanelas sob os nossos pés, encerando e lustrando o chão. Um espelho. Nesse meio tempo, meu pai já estava com o fogo pronto no forno de barro. Minha avó, pontualíssima, chegava com a massa crescida das cucas e dos pães. Era só enformar e rechear. Entre músicas e piadas, as novidades da semana ficavam em dia. Mostravam-se os trabalhos manuais, o quanto renderam, como estavam bonitos. Eu relatava as novidades da escola e das minhas amiguinhas. Às vezes, vinha um parente de longe para passar o fim de semana. Os cheiros da lenha queimada, da cera, do doce das cucas misturavam-se. Cheiro de mãe. Cheiro de vó. Jeito de pai. Éramos festa.
No topo da escada, meu colega me chamava:
̶ Vem logo que a coisa é feia! Tua especialidade!
Subi a escada correndo, como fazia na minha meninice. “Resgatar, seja quem for”: era o que me passava pela cabeça. O motorista da ambulância me apontava o quarto, o que fora de meus pais. Parei. Não queria olhar a cena. Uma guerra de travesseiros passou-me rápida pela memória. Penas de ganso voando. O perfume do frasco que quebrei voltou forte às minhas narinas.
Na cama, uma mulher deitada. O homem, estirado no chão. Pela desordem dos lençóis e dos travesseiros, debateram-se. Os olhos esbugalhados diziam tudo. Verifiquei os pulsos dos dois, para constar. Nada. Sob a cômoda, uma folha de caderno dobrada. Apontei-o. Alguém leu e disse qualquer coisa como “ciúme”, “envenenamento”, “tudo de novo”. Acho que saí do ar. Só ouvi alguém me dizendo para abrir a janela, estava abafado. Isso eu não podia mesmo. A janela dava para o pátio interno. A goiabeira. Meu balanço. Meu pai enforcado. Minha mãe caída, paralisada pelo desespero.
̶ Então, quem chamou a ambulância? ̶ indagou um dos meus colegas.
̶ Pela carta, eles têm uma filha. ̶ observou outro.
Sabia onde ela estava: no meu esconderijo. Só podia estar lá, na casinha da árvore. E estava, encolhidinha em um canto, assustada, trêmula. Era ela ou me via em um espelho? Ouvi um “Como ela sabia disso?” vindo lá de baixo, mas ignorei. Abracei e ninei a menina que já fui. Disse que iria ficar tudo bem, que eu cuidaria dela. Levantou a cabeça e olhou-me: vi meus olhos nos olhos dela. Vi minha vida na vida dela. Aconcheguei-a mais ainda e reforcei ̶ “Prometo!”.

Condolências

Separou os pertences da falecida. Colocou tudo na embalagem padrão e lacrou. As faxineiras chegaram. Deu as instruções a elas. Precisavam ser rápidas: o setor de emergências estava lotado.
No corredor, pessoas de olhos vermelhos e inchados consolavam-se. Entregou o saco a uma delas. Murmurou um “meus sentimentos”. Baixou a cabeça. Saiu.
Conferiu o trabalho das faxineiras. O cheiro de álcool em gel substituía o de urina e sangue. Tudo certo. Uma faxineira arrumava a trouxa com os lençóis sujos. Ao se retirar:
̶ - Achei isso. Ainda dá tempo de levar para a família. – disse, entregando-lhe um pequeno objeto prateado e redondo.
Ela deixou-se cair sobre o sofá destinado aos acompanhantes. Não sabia como pegar o objeto. Era o broche da sua mãe. Não existiriam dois broches tão mimosos no mundo. A prata imitava renda. As pedras cravejadas em simetria. No colo de sua mãe, imaginava que a pedra maior era a rainha e que as outras seis eram os cavaleiros. A mãe ficava muito elegante na blusa branca com o decote fechado pelo broche. O pai tinha ciúme, melhor não arrumar briga.
Fechou a mão com força. Machucou-se. Doía mais a obrigação de devolvê-lo. O broche pertencia-lhe por direito divino. Ele voltou às suas mãos. Acaso não existia para ela, só justiça. Injustiça, mais ainda. Levaram-lhe as joias todas. Depois, o piano alemão. Os objetos de arte. Os móveis. Dívidas e mais dívidas herdadas de seu pai. A casa, seu tutor vendeu. Ela nunca soube do dinheiro.
Urgia devolver o broche. Não era uma ladra. Roubaram-lhe. Agora se mostraria superior. O broche estava todo suado. Não era aquele suor que o deixara escurecido. A cretina não cuidara direito. Só um polidor e pronto. Simples. Nem isso fez. Não merecia ficar com a corte real. Procurava desculpas para não a devolver. Sabe-se lá por onde a dona falecida andara com o broche. Quantas roupas indignas não se condecoraram com ele? Um acinte!
Devolveria o objeto. A dor. A razão. A justiça. Precisava apressar-se. Secou o broche no jaleco e colocou-o no bolso. Foi ao corredor. Ninguém. A recepção. Pegou o elevador de serviço. Um carrinho com comida para pacientes. Nojo. Trancou a respiração o quanto pôde.
Na recepção, muitas pessoas. A filha da falecida a reconheceu. Os olhos e o nariz vermelhos. A herdeira abraçou-a. Um anacrônico Chanel número 5.
̶ - Queria te agradecer por tudo que fizeste pela mamãe... – disse, lacrimejando.
Ela colocou o broche na palma da mão da enlutada. Teatral, a herdeira murmurou:
̶ - A mamãe e esse broche horroroso. Se não fosse tão feio, até te daria, de lembrança da mamãe, que gostou tanto de ti...
Ela sentiu suas bochechas incendiarem-se com aquela estupidez. Como podia dizer isso? Imbecil! Conhecia o tipo. Precisava agir.
̶ - Pois é. A faxineira me entregou. Achei que talvez nem pertencesse a sua mãe, uma verdadeira dama. ­-̶ Disse, disfarçando a ironia.
A filha ficou mais vermelha ainda. Balançou as pulseiras douradas. Titubeou.
̶ - É, está mais escuro. Não sei... ̶- falou.
̶ - Tem certeza de que é dela? Não vai ficar com algo que não é seu, não é mesmo? Talvez a faxineira tenha trocado o número do quarto. Sabe como elas são, não é? Olhe direito... As pedras nem são verdadeiras. - ̶ serpenteou, antegozando a vitória.
A filha já não lacrimejava. Passou a mão em seus colares dourados e prateados. Ajeitou-se toda. Reequilibrou-se nos saltos altos. Pigarreou.
̶ - Não, não é mesmo. Mamãe não era mulherzinha de bijuterias. Desculpa, estou nervosa. Por favor, entrega a quem de justiça, sim? - ̶ pediu a enlutada.
Despediram-se. Condolências.
Sim, ela destinaria o broche a quem de justiça. A justiça divina.

segunda-feira, 24 de agosto de 2009

Ghost Writer

Ele deixou uma brecha nas cortinas blackout. O sol bateu bem no olho esquerdo. Gosto de ponteira enferrujada de guarda-chuva. Tentou fazer saliva. O fígado incomodava. O apito da fábrica ao lado. Uma e quinze. A essa hora, o mundo já sabia o resultado. O seu agente sabia. Ela sabia. Nenhum dos dois ligou.
Levantou. Espreguiçou-se. Teve câimbras. Recolheu duas garrafas vazias de cabernet sauvignon. Viu pontinhos pretos. Tropeçou na de merlot, desequilibrou-se, cortou o pé nos cacos da taça que jogara contra a parede. Pé esquerdo. Nem se importou. Merecia a dor. Uma infecção talvez. Balançava a cabeça, martelando o erro: por que contou para ela? Aqueles olhos azuis imensos pareciam tão calmos, tão serenos, tão compreensivos...
Ligou o computador. Colocou água para ferver. Café, café, café. Precisava de muito açúcar com café. Torceu para não conseguir acessar seus e-mails. A mão esquerda formigava. Não teve sorte: a conexão não falhou. Saiu da frente do computador. Fez o café e atirou-se no sofá. Ligou a TV. Zapeava, evitando os noticiários. Cochilou. Acordou-se com o telefone. Se fosse ela ou o agente? Olhou o número no identificador de chamadas. Pelo prefixo, só podia ser call center. Ninguém ligava para ele. Era um fantasma. Quem liga para fantasmas?
Precisava trabalhar. Atrasara-se com seu (seu?) “Rainha do Oriente”. A cliente pressionava. Queria seu livro pronto e impresso para fazer uma surpresa aos filhos e netos na festa de seus oitenta anos. Suas memórias. Coisas tão fascinantes quanto ser Rainha do Sport Club Oriente aos 15 anos. Casar aos 18. Ser mãe aos 19. Tudo dentro da moral e dos bons costumes. Nessas horas, preferia ser um ghost writer. Poupava-se do embaraço de assumir como suas aquelas bobagens.
“Aclamada Rainha do Oriente, não me desviei do bom caminho ensinado pelos meus pais. Pelo contrário, servi como exemplo às demais moças da minha idade que se pode ser bonita e recatada. Sempre falava que o exemplo de Santa Teresinha do Menino Jesus mostra o caminho certo que as moças devem seguir.” Foi o que ele digitou, rindo. Admirava-se do próprio cinismo. Não sabia onde aprendera a ser tão mercenário. Sentiu-se mal com o pensamento. Uma ferroada na fronte esquerda lembrou-lhe a bebedeira com seus motivos. Um retumbante fracasso ou uma fragorosa derrota?
Um ícone piscava na tela. Denunciava nova mensagem. Parou de digitar. Quem ordenou o capricho? Essa paixão por histórias interessantes ainda o complicaria na vida. Arrependia-se de sua dedicação àquela encomenda. Tão bem escrito para ser assinado por um advogado falastrão. Agora isso: a iminência de um prêmio literário. Para o cliente, os louros; para ele, as sombras.
O ícone piscava ameaçador. Respirou fundo. A narina esquerda trancou. O gosto do café melado com ponteira enferrujada de guarda-chuva estava insuportável. Levantou-se para escovar os dentes. Vomitou. Voltou ao computador. O ícone continuava a piscar. Coragem. Clicou. Seu olho esquerdo doeu. Tapou-o. Com o outro, viu o spam. Nada. O braço esquerdo incomodava. Ele era um fantasma. Quem manda notícias para fantasmas?
Lembrou que era quinta-feira. A vizinha ia para o trabalho antes mesmo de o jornal chegar. Capengando, saiu de pijamas. O corredor estava sempre vazio e gelado. Pegou o jornal. O estômago embrulhado. Sentou-se na mesa da cozinha. A faca afiada brilhava. Um aperto no peito, mais à esquerda. Separou o caderno de cultura. Na página 3, a manchete. “Os vencedores do Prêmio Literário são do Sul”. A foto dela. Uma dor aguda. Segurou-se na mesa. A toalha escorregou. O corpo foi ao chão. O vaso de crisântemos acertou-lhe a cabeça, selando seu destino. As sombras receberam seu mais dileto fantasma.

terça-feira, 18 de agosto de 2009

Ensaio


Abaixo segue um exercício da Oficina.

Sete anos de pastor Jacó servia.” Foi o que me veio à mente quando a filha mais velha me entregou a urna com as cinzas do falecido. O verso ameaçava, apimentado, na minha língua. Não foram sete anos; pareceram-me setenta. Não podia dizer. A língua pesava de vontade. Tranquei os dentes. Não lembrava do resto do poema, nem de quem escreveu. Tampouco tinha certeza de que saíra de algum poema – sou lá eu mulher desses desfrutes?
Não era minha obrigação levar as cinzas. Era tarefa para os familiares. Não renderia nota na coluna social. Insinuaram, ameaçaram, obrigaram-me, deram-me o mapa. Nem tão longe que desse para ir de avião, nem tão perto que rendesse um passeio de fim de tarde. Sete horas de viagem me aguardavam até o Morro da Igreja, no fim do mundo à esquerda. Que eu aproveitasse bem a privilegiada paisagem! Encomendaram-me um queijo colonial, desses vendidos em barraquinhas na beira da estrada. Minha cara ficou mais azeda que o queijo. Faria pelo gosto das coisas bem feitas, pelo capricho de levar tudo até o fim.
Ofereceram-me o carro do falecido. Um belo e imundo BMW. Era impossível respirar dentro dele: cheiro de cigarro com poeira e alguma coisa podre. Minhas mãos grudaram no volante. Havia uma gordura viscosa, pegajosa sobre o couro. Nojo. O cheiro de gasolina era um bálsamo na fedentina geral. O ronco potente do motor animou-me.
Abri os vidros. Concentrei-me na aventura: pesar o pé sobre o acelerador. O vento desfazia meu coque e avermelhava minha pele. Aos poucos, nuvens carregadas juntavam-se e ameaçavam a minha estratégia contra o mau cheiro persistente. Pingos de chuva gelados e fortes bateram no meu rosto ao fim de quatro horas de viagem. Minhas bochechas ardiam. Fechei os vidros a contragosto. A podridão deu-me engulhos. O cheiro de pó despertou-me a rinite. Comecei a lacrimejar e, no instinto, levei a mão imunda aos olhos, que arderam. Na minha bolsa, havia uma necessaire com medicamentos, mas o caminho sinuoso não era propício para que eu mexesse nela.
Minha visão turvou. Curvas e cheiro insuportável. Controlava-me para não vomitar. Serra do Doze. Anoitecia. Vidros embaçados. Chovia forte. Deserto. Parei o mais à margem possível. Precisava respirar. Não queria vomitar ali dentro. Desci com minha bolsa, procurando o antialérgico, o colírio e o Plasil. Um caminhão despencava no sentido contrário. Abriu demais a curva. Bateu no BMW, arremessando-o no precipício. Um estouro. Um clarão. O carro explodiu. O caminhão sumiu. Eu assisti a tudo, abobalhada e ensopada. Sobraram o frio, o nariz entupido, o gosto salgado na boca. Podia chorar, ninguém estava vendo. Pavor. Se eu estivesse lá dentro?
Não sabia o que fazer. Sentei-me atrás de uns arbustos. Medo de cobra. Vi a polícia chegar. Mais medo. Culpa. Escondi-me. Fome. Não respirava mais direito, nem pela boca. Não sentia meus pés nem minhas mãos. Hipotermia à vista. Precisava me mexer. Esperei os policiais saírem. Demoraram, desceram barranco, voltaram, foram embora. A chuva cessara. Cerração fechada. Comecei a andar no breu.
Cheguei ao cume. Já amanhecia. Havia umas barraquinhas, daquelas que vendem souvenirs e produtos da região. Caí para dentro de uma delas assim que abriu. A moça olhou-me de cima a baixo, assustada. Trouxe-me, discreta e compreensiva, uma toalha e um café bem quente e doce. Comprei um abrigo horroroso, seco e macio. Nunca a sensação de uma malha sobre a pele arrepiada foi tão consoladora.
Sentei no pequeno restaurante. Pedi um café serrano completo. Precisava recompor-me, pensar. A televisão transmitia as notícias da manhã. “Enfermeira morre em acidente” foi a chamada principal. “Os policiais encontraram o corpo carbonizado dentro da BMW que explodiu após despencar de precipício, na madrugada de hoje, na Serra do Rio do Rastro, na altura do município de Bom Jardim da Serra.” As palavras da repórter fizeram-me morder a língua. Que corpo, se estava viva? Tudo ficou claro. O gosto do meu próprio sangue despertou-me ideias de vingança.

segunda-feira, 17 de agosto de 2009

A sétima filha

Eu havia dado como título a esse texto "Sob o signo de capricórnio", mas essas coisas de horóscopo pegam muito mal. Tinha pensado em "capricórnio" pelas ideias que a palavra desperta, mas achei que não funciona. Depois pensei em "Vingança de Santos Reis", mas daí antecipa o final...
Escrevi esse texto em janeiro de 2009, p/ a seleção p/ a Oficina.

Lá vai...


A sétima filha

Nem se sabe quem ou o que guiava o flamante Aero Willys recém-adquirido pelo Patrão naquelas estradas poeirentas e esburacadas. Seu corpo estava ao volante, mas seus pensamentos enviesados encontravam-se já no seu destino, no casebre esquecido nos ermos da próspera fazenda.
Ele não podia fazer aquilo... Não conseguiria. Servia há anos, décadas, àquela família, mas o que a Patroazinha lhe pedia agora já era demais. Essa ordem ia contra os princípios até de quem não os tem. Pensou em desobedecer. Isso custaria o seu emprego, a sua única fonte de renda, de miserável renda, diga-se de passagem. Mas onde iria arranjar outro naquela idade? Nem para capacho haviam de querer-lhe mais. Pensou em cruzar a fronteira e vender o carro no Paraguai, mandar a metade do dinheiro para a filha continuar o tratamento da neta doente. Com a outra metade, se viraria até recomeçar sua vida. Era fraco demais. Fraco demais para desobedecer. Fraco demais para se sacrificar. Passou-lhe pela cabeça uma vida de foragido. Era velho também demais para viver essas aventuras.
À medida que se aproximava de seu destino, o frio que dominara sua alma contaminava-lhe igualmente o corpo. Adoeceu de morte. Suas mãos, de tão geladas, nem as sentia sob o sol escaldante de janeiro no Rio Grande do Sul. Seis de janeiro. Dia de Santos Reis - lembrou ele. Pois sim. Hoje o dia de santo não vai ter nada. Não se faz isso com uma criança. Não se faz. Sobretudo com aquela menininha loira, tão magrinha, tão bichinho-do-mato. Lembrava da Patroazinha, lá na cidade. Demônio em forma de gente – saiu aos seus. Aqueles olhos verdes, olhos de cobra, nunca o enganaram. Desde que ela era bem pequena, ele presenciou as suas pequenas monstruosidades. Jogar o bolo de aniversário da irmã no chão porque ficou mais bonito que o seu e dizer que foi um acidente. Arrebentar o colar de pérolas da mãe e culpar a empregada. Jogar comida no chão e mandar a filha da empregada comer como um cachorro. Bobagenzinhas que o pai achava vir de uma mocinha espirituosa e criativa.
Chegou à porteira da fazenda, desligou o carro. Titubeou. Não sabia se dava meia-volta. Era o que queria, o que a pouca consciência lhe mandava. Os imperativos da idade e da necessidade faziam-no desgraçado como nunca antes na vida. Deu-se conta. Não fora nada na vida, sua vida fora um nada. Só serviu, serviu, serviu. Serviu para quê? Para mandos e desmandos. Um pau mandado. Nem direito a ter pena. Tremia. Calafrios passavam por seu já debilitado corpo, como se, no torpor das duas da tarde, alguém lhe atirasse uma caneca de água gelada nas costas. Água gelada... Será que um dia ela beberá, terá direito a um belo, suado, gotejado copo de água gelada? Não há sequer energia elétrica naquelas lonjuras da fazenda...
Abriu a porteira com alguma dificuldade, rocurando desculpa para não executar sua tarefa. Torceu para o capataz não estar em casa, para que não houvesse ninguém na casa principal, que não tivesse viva alma que lhe desse um cavalo para seguir até o casebre. No que se decepcionou. Nem bem cruzou a porteira, avistou o capataz. A visão da antessala do inferno. A recepção efusiva e amistosa deu-lhe engulhos, vontade de vomitar. O capataz queria assunto, mas sentia seu corpo mole, aquele misto de frio e de calor lhe faria desmaiar a qualquer momento... O capataz, vendo que não obtinha resposta para suas perguntas, parou de falar por um breve instante. Olhou bem para o conhecido. De alto a baixo. Findado um segundo de estranhamento, perguntou:
- O que foi, homem de Deus? Tá branco como fantasma! Viu assombração?
- Não, foi cobra. E das peçonhentas. Mas não me pergunta mais nada. Arruma um cavalo pr’eu ir até a casinha da Viúva Fridalina.
- Mas tu não foi lá no Natal, levando aquela montoeira de coisas que a filha do Patrão não queria mais? Que vai fazer lá de novo? Não tem medo?
- Medo eu tenho, mas é da miséria. Faz o que eu te pedi, não estou indo lá por gosto meu.
Notando a contrariedade estampada nas rugas da testa e entre os olhos do conhecido, o capataz, desconfiando um desentendimento, logo arrumou um cavalo – e dos bons, o outro era cupincha do Patrão. Não saiu esporeando o animal, seu costume desde menino. Ia a trote manso. Muito manso. Parando. O que não parava era a sua cabeça. Rodava um filme, lembrava dos últimos acontecimentos desde o Natal.
Véspera de Natal, a Patroazinha podre de bêbada. O pai, pela primeira vez na vida, admoestou-a, de forma muito discreta, sobre seus exageros etílicos. Isso foi suficiente para lhe despertar a ira que trazia na alma - velha conhecida dos empregados, da mãe e da irmã, reféns de sua maldade e de seu ardil. Gritava, berrava. Urrava. Não era mais criança. O pai não poderia falar assim com ela. O pai, gentilmente, lembrou. Ela era a sua menininha, com o quarto cheio de bichinhos e de bonecas. A Patroazinha enlouqueceu de vez. Os grandes olhos verdes encheram-se de uma sombra terrível. Não chegava a ser inédita. Voou a seu quarto e – desespero canastrão - jogou todos os animaizinhos de pelúcia e as bonecas pela janela, lembranças de suas viagens solitárias com o papai. Urrava. “Agora vão ver quem é a menininha”, “fooora com esse liiixoooo”. Entre um grito e outro, lá se ia um souvenir da França, outro da Bélgica, mais um da Suécia, dos Estados Unidos. Uma das empregadas, muito espirituosa, brincou, enquanto recolhia os restos do ataque histérico. O trenó do Papai Noel sofreu um acidente e deixou cair todos os brinquedos no gramado da mansão. Ele ajudava, resignado. Não era a primeira vez que era desviado de função para consertar os estragos dos ataques de fúria da excêntrica Patroazinha. Também não lhe custava, não lhe cairia um dedo por isso. Foi quando a patroa deu-lhe a ordem mais surpreendente do mundo: pegar alguns dos brinquedos que restavam inteiros e levar para as crianças da fazenda. Ele não acreditou. A patroa nunca lhe pedira nada - as ordens sempre lhe vinham do Patrão e da Patroazinha. E uma coisa daquelas, dar os brinquedos caros da Patroazinha. Ela não dava nem suas roupas usadas, pois “preferia vê-las no lixo do que no corpo de gentalha”. Antevendo a satisfação das crianças, em pleno dia de Natal, não vacilou e juntou tudo o que pôde – inclusive uma belíssima boneca de louça, a única que restou intacta, apesar da queda do terceiro andar –, reservou um casal de ursinhos para sua neta doente e partiu para a fazenda.
No caminho para a fazenda, pensou que aquele seu sacrifício, sem dormir, sem comer, enfrentando os perigos de dirigir à noite naquelas estradas solitárias, limparia da alma alguns dos “servicinhos” que fez, na juventude, para o pai do Patrão. Regogizava só em pensar na alegria daquelas sete meninas. A Frau Fridalina ficara viúva há seis meses, e a situação, que com o marido já era ruim, beirava o insustentável. Talvez fosse o último Natal com as filhas todas juntas. Ele vivera o suficiente para ver outros casos como aquele. A mulher enviúva e a família se esfacela. Cada um para um lado, num seja-o-que-deus-quiser. E só filha mulher... muito difícil, sem um braço de macho para o arado, para as lides do campo. Era certo que o Patrão as expulsaria de lá. Ainda mais com as histórias que o povo inventava... Sete filhas mulheres consecutivas: a sétima é bruxa. Se algum bicho adoecia na fazenda, alguém viu a Bruxinha, acariciando-o no dia anterior. Se os ovos goravam, se os pintos nasciam fracos, a culpa era da Bruxinha. Se chovia demais, a praga era da bruxinha. Se faltava chuva, era mau agouro da Bruxinha.
Sob o cavalo, no topo de uma coxilha, avistou, ao longe, o casebre. Parou. Fechou os olhos, meio tonto. Lembrou da cena alegre do dia 25 de dezembro. Frau Fridalina distribuindo os brinquedos. Pegou a boneca de louça e olhou-a longamente. Deu-a à sua sétima filha, dizendo, com sua voz doce de grande mãe:
- Filha, esta boneca de louça fica pra ti. Tu és a menor, vais aproveitar mais tempo. E como teus anos estão perto, no dia 11 de janeiro, tuas irmãs não vão se importar que tu fiques com o melhor brinquedo, pois vai ser teu presente de Natal e de aniversário. Tu nunca ganhaste nada. O teu sétimo aniversário vem recheado de sorte.
Aquelas palavras ficavam girando, girando na sua cabeça. Recheado de sorte. Recheado de sorte. Presente de Natal. De aniversário. Tu nunca ganhaste nada. Tu nunca ganhaste nada. Tu nunca ganhaste nada... Saltou do cavalo para vomitar. Um caldo verde. Verde como os olhos da desgraçada da Patroazinha. Essa vagabundazinha bêbada. Sentou-se à sombra, em um capão, nem se importando com o cheiro fétido das fezes da criação que dormia ali. Fechou mais uma vez os olhos. Não queria ver nada. Lembrou-se da notícia aterradora que teve quando voltou, todo feliz, à mansão. A Patroazinha queria a boneca de louça de volta. Guardaria como a única lembrança da infância feliz. Ele teria que voltar, nos próximos dias, à fazenda para buscá-la. A notícia caiu-lhe nos ouvidos e socou-lhe o estômago. O sacrifício que fizera na noite anterior fora em vão. Sentia-se castigado por todo mal feito na vida, culpado por nunca antes fazer um único esforço por ninguém que não ele mesmo. Vai ver que é por isso que a neta nasceu doente – por culpa dele, para seu castigo, a inocente sofria, a filha sofria, a menininha sofrerá... Tudo culpa dele, dele, dele....
Era o que ele, o pau-mandado covarde, o último dos homens, fazia: cumpria ordens. Não havia modo de adiar - ditavam o seu medo e a sua covardia. Já caía a tarde quando chegou ao casebre. Encontrou a Bruxinha em uma felicidade inédita com um sorriso luminoso, brincando em um balanço e segurando a linda boneca de louça. Segurava-a como se um anjo guardasse o Jesus Menino. Seu olhar era todo ternura, todo encantamento. Grudou os olhos no chão. Explicou a situação para Dona Fridalina. Relatou o caso entre pigarros e engasgos. Juntou suas últimas forças para não fraquejar diante da mulher – afinal, era homem. Um nada de homem, mas precisava manter as aparências. A mulher olhou-o resignada. Sequer suspirou. Virou-lhe as costas sem dizer palavra, em um misto de desprezo e decepção.
Dona Fridalina falou, com mansidão habitual, à filha, que se transtornou. Subiu em uma laranjeira, arranhou-se toda. Ali ele, o homem mau, não a seguiria. Ele subiu, caiu duas vezes, os espinhos rasgaram-lhe a camisa e a calça de seu uniforme de motorista. Verteu muito menos sangue do que ele se achava merecedor de perder. Com dificuldade, alcançou a menina, tirando-a de lá... Tirou a boneca da menina à força, arrancando ambos corações juntos...Se ele, pelo menos, tivesse dinheiro para comprar-lhe uma bonequinha simples...Mas era um ferrado na vida... A menininha gritava, grunhidos de dor... Parecia que estava tendo um ataque epilético. Ele queria tirar-se dali, mas não conseguia... Ao fim de alguns intermináveis minutos, a Bruxinha cansou. Parou, estática. Entre os dentes, a menina rangeu:
- Quem dá presente e depois tira, cria rabo.
Ele seguiu seu rumo, mais arrasado do que imaginava que ficaria. Não teve forças para dirigir de volta. Passou a noite na fazenda, socorrido pelo capataz e pela sua mulher, que lhe fez uma canja.
A vida na mansão parecia quase seguir seu ritmo habitual. À boneca, a Patroazinha sequer lançou um olhar com o rabo do olho, ocupadíssima em resolver detalhes de sua festa de aniversário para ali a quatro dias. Ele nem se sentia mais no corpo. Observava, cumpria ordens aqui e ali, andava pela cidade toda atrás de frescuras da dita-cuja. Nada de novo. Discussões sem fim eram banais: os preparativos para a grande festa pelos 21 anos da Patroazinha acirravam um pouco mais os ânimos. A fina flor da sociedade convidada. Vinhos, bebidas caras, comidas de gente enjoada, conjunto instrumental ao vivo, flores, velas – tudo do bom e do melhor. Também nada de anormal. Ele já havia visto arrumações assim incontáveis vezes naquela casa.
No dia da festa, ele acompanhou o que se colocava embaixo de seus olhos. Estava enojado para ter curiosidade. “Criativa, estonteante e arrojada” – como a descreviam as colunas sociais – a Patroazinha bebeu, bebeu e bebeu... Ele a viu subindo para seu refúgio no terceiro andar com um rapaz do tipo almofadinha – certamente mais um para sua coleção de namoradinhos. O que aconteceu depois ele não viu. Contaram.
Dizem que o rapazola achou que a ida ao quarto se tratasse de um convite para aventuras mais ousadas. Ela o esbofeteou – “agora não, que amassa meu vestido” – segredou uma camareira que escutou tudo do corredor. E ele revidou, e revidou – pelos barulhos ouvidos... Na briga, a dona das bonecas de louça caiu pela janela. A barra de seu vestido ficou presa na sacada – todos os convivas que estavam à beira da piscina presenciaram, emudecidos, o nobre cetim rasgando. Esborrachou-se no chão. Caiu de costas. O cadáver em decúbito dorsal. Os grandes olhos verdes esbugalhados, vidrados. A expressão de terror congelou-se para a eternidade orgânica da terra. O sangue verteu e verteu, formando uma mancha no piso de mármore italiano. Não da cabeça, como seria o normal, mas da região do quadril. Um grande rabo de sangue...
Quem dá presente e depois tira...

terça-feira, 11 de agosto de 2009

Causo de velório

Causo de velório

Era uma gente festeira. Tão animada que os seus velórios eram muito mais animados do que as festas de muitas outras famílias. Sabiam levar a vida. Essa sabedoria – comprovada pela autoridade subjetiva das memórias – fazia com que as situações inusitadas fluíssem naturalmente, sem esforço algum.
Não foi diferente daquela vez.
Os seis irmãos varões fizeram um pacto. O avalista: delírios etílicos provocados por uma mistura sem-vergonha de cerveja, vinho e uísque – cachaça não, que é coisa de “brasilione”. Não fariam mais fiasco algum em casamentos, batizados, aniversários, velórios, ou qualquer outro tipo de festa. Nem sozinhos, nem em conjunto. Queriam um resultado prático. Ninguém mais poderia abrir sua boca suja para malfalar os irmãozinhos. Nenhum pêlo duro poderia abrir sua boca desdentada nem apontar seu dedo de unha suja para falar logo deles. Eram bons, mas tinham seu orgulho.
Desta vez, festa era um enterro. Enterro de tio velho, distante, daqueles que, quando os irmãos eram piás, roubaram a herança do pai falecido precocemente. “Até viveu demais, o animal” era a frase que não cansava. Combinaram-se, falaram-se por telefone e vestiram seus melhores ternos. O calor insinuava-se naquele início de manhã. “Só o que falta é ter vento norte, daí não vou agüentar a gravata” – repetia Germano, o mais novo e mais gordo, ameaçando mortalmente o pacto.
A viagem de carro não era muito longa, coisa de uma hora e meia, uma hora e quarenta e cinco no máximo. Precisavam ir nos melhores carros. Para fazer bonito. Para fazer bela figura aos parentes. Para honrar a memória da mãe. Para mostrar, enfim, que, mesmo que eles quisessem tirar os filhos da viúva, que lhe tivessem surrupiado as terras, eles eram os mais fortes. Os mais unidos. Os mais bem-vestidos. Os mais bem-sucedidos. Os melhores, enfim.
Marcaram de se encontrar na casa de Helmuth, o irmão mais velho. Claro. Sempre há que se respeitar a hierarquia. Chegaram mais ou menos ao mesmo tempo. Começaram as combinações. Helmuth, tomando para si ares de patriarca, foi logo sentenciando ao mais novo:
- Germano, nem uma palavra sobre a tua filha, grávida aos 15 anos sabe-se-lá-de-quem.
- E tu, nem uma palavra sobre a quase falência da tua firma. – Retrucou o avô precoce.
Foi quando o segundo mais novo, Frederico, atalhou:
- Pelo amor de Deus, gente, bem capaz que eles já não sabem disso tudo e mais ainda. Nós não sabemos os podres deles? Então? É a mesma coisa... A fofoqueira da nossa prima Dulce faz o serviço do expresso-leva-e-traz.
- E tudo distorcido, aumentado. Garanto! Como dois e dois são quatro. – Contribuiu raivosamente o segundo mais velho, Ernest.
- Vamos fazer de conta que é tudo um mar de rosas, como eles também fazem. Vamos mostrar que aprendemos o jogo sujo deles! – Conclamou, entusiasmado, Frederico.
Herbert, o terceiro, ajeitou-se em um banquinho e falou, com ares de deboche.
- Vocês estão se esquecendo do melhor, só pensando nos podres, nos problemas. Já pensou que beleza ver a cara daquele velho filha-da-puta deitado naquele caixão? Eu quero segurar a alça, tenho direito, já que ele queria me adotar quando éramos pequenos.
Ninguém discordou. Ao contrário, ensaiaram uma risada, que só o mais novo não engoliu.
- E viva a cuca-com-lingüiça! – comemorou Ruben, o quarto
- Aquela gente é tão sovina que é bem capaz de não ter. – bem observou Helmuth.
- Daí a gente compra, ué! – retrucou Frederico.
Partiram, em meio às risadas, os seis alegres irmãos. Dois em cada carro selecionado em um acordo tácito. Quando lá chegaram, como não acharam estacionamento bem na frente do local do velório, deram algumas boas voltas na quadra, para que o máximo de parentes possível pudesse vê-los em seus possantes. Não que fizessem isso de caso pensado, mas, no fundo, era isso: a necessidade de mostrar-se.
Ao entrarem no local do velório, mal disfarçando o sorriso no rosto, já avistaram a prima fofoqueira sentada em um dos lugares habitualmente reservados aos familiares mais próximos. Como sempre, cochichando, sibilando, serpenteando. Os olhos verdes rasgados não negavam a maledicência arraigada nos recônditos de sua alma – se é que tinha uma. Olhou os irmãos de cima a baixo, como era o seu costume. Entretanto, demorou seu olhar sobre Germano, esboçando um sorrisinho de canto de boca. O irmão mais novo notou – quem não haveria de notar? – e o úmido e mormacento calor da tarde subitamente começou a incomodar-lhe. Pensou em afrouxar a gravata. Helmuth o espancaria se fizesse isso.
Os seis irmãos, ato ensaiado, fizeram figura. Bons luteranos. Posicionaram-se em volta do caixão, parados como soldados em posição de sentido. Cada um flexionou seu pescoço e fingiu uma oração. O silêncio. Cochichos das velhas carpideiras.“Os filhos da Frau Ida”. “Todos os irmãos juntos”. “Estes são sobrinhos do finado”. “Gente de bem”. “Agora estão bem de vida”. “São muito animados”. “Sempre fazem um fiasco.”
Helmuth nada ouviu. Contemplava a cara do defunto. Há tantos anos esperava por essa cena, há tanto tempo produzira e reproduzira essa imagem em sua mente. Agora sequer parecia verdade. Era muito bom para ser verdade. Só não o matara na época porque era um gurizote franzino. Depois não o fez por falta de coragem. De um bom plano para não ser descoberto. Não valeria a pena ser preso por causa desse traste. Nem pensava que não valeria a pena sujar-se por causa dele. Matá-lo não seria uma sujeira. Seria exorcizar um demônio, livrar o mundo de uma praga.
Encenada a oração, Helmuth cumpriu o protocolo de cumprimentar a viúva. Os irmãos o seguiram. Não se sentaram lado a lado conforme o combinado tácito, pois a quantidade de carpideiras contratadas era bastante significativa, lotando o espaço. Do lugar onde se abancou, o irmão mais velho podia observar bem a viúva sem que ela percebesse. Como estava acabada! A imagem que tinha dela era a de uma mulher muito bonita – beleza que contribuiu para uma certa vingança providenciada pelo destino: os chifres e mais chifres que ela colocou no falecido, galhadas e mais galhadas. Cada caso da agora viúva, tão logo vinha a público, era comemorado pela família da Frau Ida. Reuniam-se para comemorar e brindar à saúde do amante.
Ao mesmo tempo em que a infidelidade concedia uma certa simpatia à viúva, Helmuth não esquecera que ela nada fizera para defendê-los. Era viva a lembrança do episódio que sucedeu ao enterro de seu pai. Todos já estavam em casa e a Mãe, entre chorosa e forte, redistribuía as tarefas cotidianas entre os filhos. Teriam que substituir o braço forte do pai nas lides com os animais e com as roças. Caía a tarde: era preciso recolher os bois, ordenhar as vacas. A vida precisava continuar. Ela trazia um filho em seu ventre – Germano – e havia outro no colo – Frederico. “Todos vão continuar comendo, então temos que dar um jeito”, foi o que a mãe falou. Mensagem que Helmuth, no amadurecimento precoce de seus treze anos, entendeu perfeitamente. Quando Frau Ida avistou o cunhado chegando de carroça, junto com a jovem noiva e o futuro sogro, alegrou-se com o pensamento que eles vieram ajudar. No que se enganou. O cunhado veio sério, com uns papéis. Disse que as terras eram dele, e o futuro sogro, que era advogado, soltou umas palavras que nem ele, nem a mãe entenderam, mas que pareciam graves. A família teria trinta dias para deixar as terras. Como eram parentes, ele tinha “consideração” e não os mandaria logo sair dali. Seria melhor que os outros tios pegassem os mais novos para criar – o Frederico era tão vistoso, tão forte, quem não queria um guri assim? O Herbert, que já saíra das fraldas, ele mesmo poderia criar, casaria em breve. O abraço da mãe. “Nos meus filhos ninguém mete a mão”. “Podem me roubar terras, mas não a dignidade.” A mãe pegou uma chaleira de água quente que estava sobre o fogão a lenha e ameaçou de jogar no cunhado. Helmuth gritou para Ernest trazer a foice, que o fez prontamente. Enxotaram os ladrõezinhos de merda. Mas a “lei” estava com eles. Nos trinta dias seguintes, houve uma romaria de parentes. Propunham soluções mirabolantes para o caso. Todas elas passavam pela fragmentação da família, o que a Frau Ida, valente, não aceitou. Helmuth também tinha bem vivo na memória o momento em que a mãe decidiu. Se não poderiam trabalhar na terra, tirariam seu sustento da indústria. Juntou seus caquinhos, as trouxas e a prole. Foram para Novo Hamburgo, onde o calçado prometia uma vida sem fome e até com certos luxos, como água encanada e energia elétrica. Tempos difíceis, não impossíveis.
Uma voz estridente interrompeu a inevitável e dolorosa digressão de Helmuth. Era a prima Dulce fofoqueira querendo conversa. Não poderia mandá-la pastar, sob pena de ter coisas terríveis inventadas a seu respeito. Cumprimentou-a, educado e formal. Ela não se conteve:
- Uma vizinha minha que trabalha na tua firma disse que vocês estão mal das pernas, é verdade?
- Mas olha aqui as minhas pernas, firmes e fortes! – Tentou desviar Helmuth, forçando um sorriso.
- Ô, primo, sempre brincando...
- Para que chorar se a morte é certa?
- Nem me fale. Coitado do tio, homem tão bom... – disse, provocativa e peçonhenta.
- É mesmo! – Disse sem convicção. Longe dele entrar nesses assuntos logo com quem.
Germano, outro que não ouviu os comentários das velhas durante a pseudo-oração-show dos irmãos, estava com medo de Dulce. Ai dela se tocasse no nome de sua filha grávida. Não confiava no seu autocontrole. O fiasco, olha o fiasco. O dedo de Helmuth em riste. Dulce veio em sua direção, ele levantou-se. Já era tarde demais. Ela o interceptou no caminho:
- Primo Germano, quanto tempo. Cada vez mais barrigudo! As coisas vão bem, né? Ou nem tanto. Como está a Evinha, tua filha?
Frederico, que fora encarregado por Helmuth de vigiar o irmão mais novo, veio em socorro a Germano:
- Tu não sabias que eu vou ser tio-avô? Estou muito orgulhoso. E já disse que, se eu não for o padrinho, fico de mal. Falando nas gurias, a tua é que está bonitona, né? O meu filho me mostrou umas fotos dela na Internet, mas que belezura. Aliás, até as tenho no meu laptop lá no carro. Queres que eu busque?
A mulher corou e não deu resposta. Germano ficou boquiaberto com o feito do irmão: fazer a fofoqueira calar e bater em retirada quase chorando.
- Que história de fotos na Internet é essa?
- Fotinhos pe-la-da. Uma biscate. Depois te mostro.
- Não, nem quero ver isso. Já me salvaram de boa. Como tu não contou isso antes?
- E estragar a surpresa? – Disse, segurando-se para não ter uma ataque de risos e furar com o combinado.
O velório transcorreu sem maiores incidentes. Nada de cuca, nada de lingüiça. Muito menos cachaça, mas isso não fazia falta os irmãos, que se recusavam a beber bebida de “rafuagem”. Uma torrencial chuva de verão impediu que Herbert e Ruben fossem providenciar os ingredientes do tradicional cardápio desse tipo de festa. Frederico só esperava que não chovesse também na hora do enterro, para não estragar o terno e o sapato novos. Helmuth estava feliz: o pulha morto, os irmãos comportando-se bem, a prima fora de combate e mal-falada por todos.
Quando o Pastor chegou, o irmão mais velho suspirou aliviado: não haveria mais tempo para fiascar. Era só encomendar a alma ao diabo, dar comida aos vermes e pronto. Acabado. Enquanto o Pastor falava, o coral cantava, as mentiras multiplicavam-se e pantomima realizava-se, a chuva parou. O féretro saiu, lento como sempre, sob um sol tímido, que fugia das nuvens. Herbert conseguiu seu lugar para segurar uma das alças do caixão. Fora oferecido a Helmuth. O mais velho, alegando idade, declinou do convite em favor do irmão, que “era mais forte”. O sol sobre a terra úmida. O mormaço insuportável. O cheiro de velas.
No antigo cemitério lamacento, grandes lápides com inscrições em alemão registravam valores atemporais: valorosa mãe, prestimoso irmão, amoroso pai. Helmuth só não ria do cinismo dos escritos porque estaria traindo um pacto que ele mesmo propôs e impôs. Exigiu que Germano ficasse ao seu lado enquanto preparavam o esquife para descer ao seu devido lugar e o Pastor falava as últimas palavras. A umidade, a tensão dos últimos momentos, o calor, o suor, o cansaço fizeram com que os dois irmãos ajeitassem seus volumosos corpos. Escoraram-se em uma das velhas lápides. “Terra a terra, pó a pó”. A conhecida cantilena quebrava o silêncio. Ouviam-se respirações ofegantes pela curta caminhada.Todos se distraíam em outros pensamentos. Ouviu-se um estrondo medonho. Olhou-se em volta, várias carpideiras ensaiaram um desmaio, mas o chão estava molhado demais para deixarem-se cair. O pastor, em uma posição mais elevada, viu dois gordos pares de pernas para o ar. Estava tentando engolir o riso, com o pescoço grosso, as veias saltavam e a cara arroxeava-se por prender o ar.
A lápide em que o mais velho e o mais novo escoraram-se caiu, levando os dois ao chão. Quando o Pastor irrompeu em risadas, ninguém mais se conteve: riram-se todos, da viúva à prima, do irmão mais novo ao mais velho. As carpideiras entreolharam-se e substituíram o choro por uma convulsão de risos. Uma criança arrancou uma flor de uma coroa e a jogou em outra gritando “É guerra”. O que se seguiu foi uma “batalha floral”. Quem não alcançava as flores, jogava bolinhas de barro. Dulce era o lavo preferido, especialmente das outras velhas. A chuva, mais uma vez, veio com toda a força, providencial, espantando todos do cemitério. Saíram com o corpo lavado pela água e a alma pelas risadas.
Ninguém teve coragem de levantar seu dedo sujo nem de abrir sua boca desdentada.