segunda-feira, 17 de agosto de 2009

A sétima filha

Eu havia dado como título a esse texto "Sob o signo de capricórnio", mas essas coisas de horóscopo pegam muito mal. Tinha pensado em "capricórnio" pelas ideias que a palavra desperta, mas achei que não funciona. Depois pensei em "Vingança de Santos Reis", mas daí antecipa o final...
Escrevi esse texto em janeiro de 2009, p/ a seleção p/ a Oficina.

Lá vai...


A sétima filha

Nem se sabe quem ou o que guiava o flamante Aero Willys recém-adquirido pelo Patrão naquelas estradas poeirentas e esburacadas. Seu corpo estava ao volante, mas seus pensamentos enviesados encontravam-se já no seu destino, no casebre esquecido nos ermos da próspera fazenda.
Ele não podia fazer aquilo... Não conseguiria. Servia há anos, décadas, àquela família, mas o que a Patroazinha lhe pedia agora já era demais. Essa ordem ia contra os princípios até de quem não os tem. Pensou em desobedecer. Isso custaria o seu emprego, a sua única fonte de renda, de miserável renda, diga-se de passagem. Mas onde iria arranjar outro naquela idade? Nem para capacho haviam de querer-lhe mais. Pensou em cruzar a fronteira e vender o carro no Paraguai, mandar a metade do dinheiro para a filha continuar o tratamento da neta doente. Com a outra metade, se viraria até recomeçar sua vida. Era fraco demais. Fraco demais para desobedecer. Fraco demais para se sacrificar. Passou-lhe pela cabeça uma vida de foragido. Era velho também demais para viver essas aventuras.
À medida que se aproximava de seu destino, o frio que dominara sua alma contaminava-lhe igualmente o corpo. Adoeceu de morte. Suas mãos, de tão geladas, nem as sentia sob o sol escaldante de janeiro no Rio Grande do Sul. Seis de janeiro. Dia de Santos Reis - lembrou ele. Pois sim. Hoje o dia de santo não vai ter nada. Não se faz isso com uma criança. Não se faz. Sobretudo com aquela menininha loira, tão magrinha, tão bichinho-do-mato. Lembrava da Patroazinha, lá na cidade. Demônio em forma de gente – saiu aos seus. Aqueles olhos verdes, olhos de cobra, nunca o enganaram. Desde que ela era bem pequena, ele presenciou as suas pequenas monstruosidades. Jogar o bolo de aniversário da irmã no chão porque ficou mais bonito que o seu e dizer que foi um acidente. Arrebentar o colar de pérolas da mãe e culpar a empregada. Jogar comida no chão e mandar a filha da empregada comer como um cachorro. Bobagenzinhas que o pai achava vir de uma mocinha espirituosa e criativa.
Chegou à porteira da fazenda, desligou o carro. Titubeou. Não sabia se dava meia-volta. Era o que queria, o que a pouca consciência lhe mandava. Os imperativos da idade e da necessidade faziam-no desgraçado como nunca antes na vida. Deu-se conta. Não fora nada na vida, sua vida fora um nada. Só serviu, serviu, serviu. Serviu para quê? Para mandos e desmandos. Um pau mandado. Nem direito a ter pena. Tremia. Calafrios passavam por seu já debilitado corpo, como se, no torpor das duas da tarde, alguém lhe atirasse uma caneca de água gelada nas costas. Água gelada... Será que um dia ela beberá, terá direito a um belo, suado, gotejado copo de água gelada? Não há sequer energia elétrica naquelas lonjuras da fazenda...
Abriu a porteira com alguma dificuldade, rocurando desculpa para não executar sua tarefa. Torceu para o capataz não estar em casa, para que não houvesse ninguém na casa principal, que não tivesse viva alma que lhe desse um cavalo para seguir até o casebre. No que se decepcionou. Nem bem cruzou a porteira, avistou o capataz. A visão da antessala do inferno. A recepção efusiva e amistosa deu-lhe engulhos, vontade de vomitar. O capataz queria assunto, mas sentia seu corpo mole, aquele misto de frio e de calor lhe faria desmaiar a qualquer momento... O capataz, vendo que não obtinha resposta para suas perguntas, parou de falar por um breve instante. Olhou bem para o conhecido. De alto a baixo. Findado um segundo de estranhamento, perguntou:
- O que foi, homem de Deus? Tá branco como fantasma! Viu assombração?
- Não, foi cobra. E das peçonhentas. Mas não me pergunta mais nada. Arruma um cavalo pr’eu ir até a casinha da Viúva Fridalina.
- Mas tu não foi lá no Natal, levando aquela montoeira de coisas que a filha do Patrão não queria mais? Que vai fazer lá de novo? Não tem medo?
- Medo eu tenho, mas é da miséria. Faz o que eu te pedi, não estou indo lá por gosto meu.
Notando a contrariedade estampada nas rugas da testa e entre os olhos do conhecido, o capataz, desconfiando um desentendimento, logo arrumou um cavalo – e dos bons, o outro era cupincha do Patrão. Não saiu esporeando o animal, seu costume desde menino. Ia a trote manso. Muito manso. Parando. O que não parava era a sua cabeça. Rodava um filme, lembrava dos últimos acontecimentos desde o Natal.
Véspera de Natal, a Patroazinha podre de bêbada. O pai, pela primeira vez na vida, admoestou-a, de forma muito discreta, sobre seus exageros etílicos. Isso foi suficiente para lhe despertar a ira que trazia na alma - velha conhecida dos empregados, da mãe e da irmã, reféns de sua maldade e de seu ardil. Gritava, berrava. Urrava. Não era mais criança. O pai não poderia falar assim com ela. O pai, gentilmente, lembrou. Ela era a sua menininha, com o quarto cheio de bichinhos e de bonecas. A Patroazinha enlouqueceu de vez. Os grandes olhos verdes encheram-se de uma sombra terrível. Não chegava a ser inédita. Voou a seu quarto e – desespero canastrão - jogou todos os animaizinhos de pelúcia e as bonecas pela janela, lembranças de suas viagens solitárias com o papai. Urrava. “Agora vão ver quem é a menininha”, “fooora com esse liiixoooo”. Entre um grito e outro, lá se ia um souvenir da França, outro da Bélgica, mais um da Suécia, dos Estados Unidos. Uma das empregadas, muito espirituosa, brincou, enquanto recolhia os restos do ataque histérico. O trenó do Papai Noel sofreu um acidente e deixou cair todos os brinquedos no gramado da mansão. Ele ajudava, resignado. Não era a primeira vez que era desviado de função para consertar os estragos dos ataques de fúria da excêntrica Patroazinha. Também não lhe custava, não lhe cairia um dedo por isso. Foi quando a patroa deu-lhe a ordem mais surpreendente do mundo: pegar alguns dos brinquedos que restavam inteiros e levar para as crianças da fazenda. Ele não acreditou. A patroa nunca lhe pedira nada - as ordens sempre lhe vinham do Patrão e da Patroazinha. E uma coisa daquelas, dar os brinquedos caros da Patroazinha. Ela não dava nem suas roupas usadas, pois “preferia vê-las no lixo do que no corpo de gentalha”. Antevendo a satisfação das crianças, em pleno dia de Natal, não vacilou e juntou tudo o que pôde – inclusive uma belíssima boneca de louça, a única que restou intacta, apesar da queda do terceiro andar –, reservou um casal de ursinhos para sua neta doente e partiu para a fazenda.
No caminho para a fazenda, pensou que aquele seu sacrifício, sem dormir, sem comer, enfrentando os perigos de dirigir à noite naquelas estradas solitárias, limparia da alma alguns dos “servicinhos” que fez, na juventude, para o pai do Patrão. Regogizava só em pensar na alegria daquelas sete meninas. A Frau Fridalina ficara viúva há seis meses, e a situação, que com o marido já era ruim, beirava o insustentável. Talvez fosse o último Natal com as filhas todas juntas. Ele vivera o suficiente para ver outros casos como aquele. A mulher enviúva e a família se esfacela. Cada um para um lado, num seja-o-que-deus-quiser. E só filha mulher... muito difícil, sem um braço de macho para o arado, para as lides do campo. Era certo que o Patrão as expulsaria de lá. Ainda mais com as histórias que o povo inventava... Sete filhas mulheres consecutivas: a sétima é bruxa. Se algum bicho adoecia na fazenda, alguém viu a Bruxinha, acariciando-o no dia anterior. Se os ovos goravam, se os pintos nasciam fracos, a culpa era da Bruxinha. Se chovia demais, a praga era da bruxinha. Se faltava chuva, era mau agouro da Bruxinha.
Sob o cavalo, no topo de uma coxilha, avistou, ao longe, o casebre. Parou. Fechou os olhos, meio tonto. Lembrou da cena alegre do dia 25 de dezembro. Frau Fridalina distribuindo os brinquedos. Pegou a boneca de louça e olhou-a longamente. Deu-a à sua sétima filha, dizendo, com sua voz doce de grande mãe:
- Filha, esta boneca de louça fica pra ti. Tu és a menor, vais aproveitar mais tempo. E como teus anos estão perto, no dia 11 de janeiro, tuas irmãs não vão se importar que tu fiques com o melhor brinquedo, pois vai ser teu presente de Natal e de aniversário. Tu nunca ganhaste nada. O teu sétimo aniversário vem recheado de sorte.
Aquelas palavras ficavam girando, girando na sua cabeça. Recheado de sorte. Recheado de sorte. Presente de Natal. De aniversário. Tu nunca ganhaste nada. Tu nunca ganhaste nada. Tu nunca ganhaste nada... Saltou do cavalo para vomitar. Um caldo verde. Verde como os olhos da desgraçada da Patroazinha. Essa vagabundazinha bêbada. Sentou-se à sombra, em um capão, nem se importando com o cheiro fétido das fezes da criação que dormia ali. Fechou mais uma vez os olhos. Não queria ver nada. Lembrou-se da notícia aterradora que teve quando voltou, todo feliz, à mansão. A Patroazinha queria a boneca de louça de volta. Guardaria como a única lembrança da infância feliz. Ele teria que voltar, nos próximos dias, à fazenda para buscá-la. A notícia caiu-lhe nos ouvidos e socou-lhe o estômago. O sacrifício que fizera na noite anterior fora em vão. Sentia-se castigado por todo mal feito na vida, culpado por nunca antes fazer um único esforço por ninguém que não ele mesmo. Vai ver que é por isso que a neta nasceu doente – por culpa dele, para seu castigo, a inocente sofria, a filha sofria, a menininha sofrerá... Tudo culpa dele, dele, dele....
Era o que ele, o pau-mandado covarde, o último dos homens, fazia: cumpria ordens. Não havia modo de adiar - ditavam o seu medo e a sua covardia. Já caía a tarde quando chegou ao casebre. Encontrou a Bruxinha em uma felicidade inédita com um sorriso luminoso, brincando em um balanço e segurando a linda boneca de louça. Segurava-a como se um anjo guardasse o Jesus Menino. Seu olhar era todo ternura, todo encantamento. Grudou os olhos no chão. Explicou a situação para Dona Fridalina. Relatou o caso entre pigarros e engasgos. Juntou suas últimas forças para não fraquejar diante da mulher – afinal, era homem. Um nada de homem, mas precisava manter as aparências. A mulher olhou-o resignada. Sequer suspirou. Virou-lhe as costas sem dizer palavra, em um misto de desprezo e decepção.
Dona Fridalina falou, com mansidão habitual, à filha, que se transtornou. Subiu em uma laranjeira, arranhou-se toda. Ali ele, o homem mau, não a seguiria. Ele subiu, caiu duas vezes, os espinhos rasgaram-lhe a camisa e a calça de seu uniforme de motorista. Verteu muito menos sangue do que ele se achava merecedor de perder. Com dificuldade, alcançou a menina, tirando-a de lá... Tirou a boneca da menina à força, arrancando ambos corações juntos...Se ele, pelo menos, tivesse dinheiro para comprar-lhe uma bonequinha simples...Mas era um ferrado na vida... A menininha gritava, grunhidos de dor... Parecia que estava tendo um ataque epilético. Ele queria tirar-se dali, mas não conseguia... Ao fim de alguns intermináveis minutos, a Bruxinha cansou. Parou, estática. Entre os dentes, a menina rangeu:
- Quem dá presente e depois tira, cria rabo.
Ele seguiu seu rumo, mais arrasado do que imaginava que ficaria. Não teve forças para dirigir de volta. Passou a noite na fazenda, socorrido pelo capataz e pela sua mulher, que lhe fez uma canja.
A vida na mansão parecia quase seguir seu ritmo habitual. À boneca, a Patroazinha sequer lançou um olhar com o rabo do olho, ocupadíssima em resolver detalhes de sua festa de aniversário para ali a quatro dias. Ele nem se sentia mais no corpo. Observava, cumpria ordens aqui e ali, andava pela cidade toda atrás de frescuras da dita-cuja. Nada de novo. Discussões sem fim eram banais: os preparativos para a grande festa pelos 21 anos da Patroazinha acirravam um pouco mais os ânimos. A fina flor da sociedade convidada. Vinhos, bebidas caras, comidas de gente enjoada, conjunto instrumental ao vivo, flores, velas – tudo do bom e do melhor. Também nada de anormal. Ele já havia visto arrumações assim incontáveis vezes naquela casa.
No dia da festa, ele acompanhou o que se colocava embaixo de seus olhos. Estava enojado para ter curiosidade. “Criativa, estonteante e arrojada” – como a descreviam as colunas sociais – a Patroazinha bebeu, bebeu e bebeu... Ele a viu subindo para seu refúgio no terceiro andar com um rapaz do tipo almofadinha – certamente mais um para sua coleção de namoradinhos. O que aconteceu depois ele não viu. Contaram.
Dizem que o rapazola achou que a ida ao quarto se tratasse de um convite para aventuras mais ousadas. Ela o esbofeteou – “agora não, que amassa meu vestido” – segredou uma camareira que escutou tudo do corredor. E ele revidou, e revidou – pelos barulhos ouvidos... Na briga, a dona das bonecas de louça caiu pela janela. A barra de seu vestido ficou presa na sacada – todos os convivas que estavam à beira da piscina presenciaram, emudecidos, o nobre cetim rasgando. Esborrachou-se no chão. Caiu de costas. O cadáver em decúbito dorsal. Os grandes olhos verdes esbugalhados, vidrados. A expressão de terror congelou-se para a eternidade orgânica da terra. O sangue verteu e verteu, formando uma mancha no piso de mármore italiano. Não da cabeça, como seria o normal, mas da região do quadril. Um grande rabo de sangue...
Quem dá presente e depois tira...

Um comentário:

  1. NOSSA sora, muuuito bom, queria saber de onde veio a tua inspiração pra esse conto. O modo cuja a história é narrada mexe de fato com o leitor. Adorei o modo com que foi trabalhoado o psicológico do motorista: aquela veeelha sensação de inutilidade diante de algo iminente, a angústia do personagem que era carrasco da bruxinha e de si mesmo, TUDO.
    Os personagens todos com aquela dualidade própria: A bruxinha que era tanto a inocência e a pureza, quanto a maldade e a superstição. A Patroinha, que era a futilidade e a crueldade, mas que era vista como espirituosa e criativa pelo pai. Este por sua vez é aquele clássico pai, rico e que ama tanto a filha, que na tentativa de ser um bom pai, acaba mimando a filha. Bom, o motorista foi o personagem com o qual eu mais me identifiquei: sentia-se inútil, era o carrasco e a vítima, sofria por todos e não era reconhecido por ninguem. O mocinho, o vilão. Espero ansiosímo pelo próximo conto!

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