quarta-feira, 26 de agosto de 2009

A Promessa II

Ela adotou a menina. Colocou cortinas rendadas nas janelas. Uma guirlanda na porta. Escolheram tintas e móveis. Reconstruiu o forno de barro. Cortou a goiabeira. Plantou flores e legumes. Reformou a casinha da árvore. Comprou laços de fita para os cabelos da pequena. Roupas cor-de-rosa. O Batalhão das Letras. Um Labrador caramelo. Bordou toalhas de banho com os seus apelidos – novas vidas, novos nomes. Trancou os fantasmas no porão. Ela zelava pela felicidade da filha. Sessão da tarde e pipoca. Reinações de Narizinho antes de dormir. Uma pessoa de bem. Mãe, enfim. Uma família. Nidificaram. O lugar do pai estava vago. Ela e ele se encontraram, olharam-se. Não se amaram. Eram convenientes. Elas precisavam de um pai. Ele, de uma família. Ninho para a menina, status para ele, sonho para ela. Casaram-se – pompa e circunstância. Viajavam, frequentavam, aconteciam. Ela não ouvia o que lhe diziam sobre ele. Não lia o que escreviam sobre ele os jornais. Não via que ele chegava tarde. Não sentia o seu cheiro de perfume vagabundo e de uísque caro. Negava tudo. Negar não pôde a notificação judicial. Ele trapaceara. Ela mandou a filha para a Disney.
Agora eram só os dois. De igual para igual. Tinha seus contatos. Colocou a raiva em conserva por vários dias para servi-la naquele café da manhã. Mesa no quintal florido. Toalha da Ilha da Madeira, copos de cristal, porcelana fina, suco com sonífero. Ele dormiu. Ela o amarrou a uma cadeira, junto à mesa posta. Escreveu uma carta de suicida. Conhecia bem o gênero. Ele acordou. De revólver em punho, ela apresentou a carta impressa.
̶ - Assina! Nada de tremer a letra. ̶ ordenou ela.
̶ - Sua louca, o que é isso? Não vou assinar nada! ̶ - disse ele, derrubando uma xícara.
-̶ Não precisas, mando do teu e-mail para todos os teus contatos. Senha com nome do time de futebol, coisa mais patética! ̶ disse, rindo e engatilhando a arma. ̶ Se tu assinares, é morte indolor. Se tu não assinares, morres devagarinho, devagarinho... Achas que não aprendi nada em vinte anos?
̶ - O que eu te fiz, criatura? Pensa na nossa filha, o que vai ser dela, pelo-amor-de-deus!- ̶ gritava ele.
̶ -Assina! Tua filha nada! Minha! – Berrava, apontando-lhe a arma.
- Ele assinou. Ela recolheu depressa o papel. Encostou o revólver na cabeça dele.
̶ -O que tu vais fazer agora? Por que tudo isso? Tu não és assassina...
̶ -Experimenta para ver! Tu mereces. Aquelas empresas-fantasma no meu nome... ̶ gritou.
̶ - Só usei teus documentos. Iria dar tudo certo não fossem aquelas escutas... ̶ falou, soluçando.
̶ - Desgraçado! ̶ - rosnou ela, dando-lhe uma bofetada no rosto e um chute na canela. ­̶ Então o que dizem os jornais é verdade...
̶ - Eles não sabem da missa um terço. Mas não é por isso que tu vais te sujar. Me tira daqui, pensa, pensa! ̶- implorava.
̶ -Tu desviaste aquele dinheiro todo. ̶- gritava ela, cuspindo-lhe na cara. - Ladrão! Safado! Pilantra! Ordinário! ... ̶ gritava ela, cuspindo-lhe na cara.
̶ - Aquilo e muito mais, que está lá, guardadinho, esperando por nós, só deixando passar a turbulência, meu amor! ̶ - serpenteou.
­Ela baixou a arma. Atirou-a no chão. Aproximou-se dele. Bem perto. Hálito com hálito. Beijou-o. Sentou no seu colo. Colocou a mão por baixo da cadeira e arrancou um gravador colado com fita adesiva. Rebobinou. Ouviu um trecho. Gritou:
̶ -Podem vir!
Policiais infestaram o jardim florido. Desamarraram-no. Algemaram-no. Ela entrou na casa. Espiou entre as cortinas: levaram-no, enfim. A felicidade da filha estava a salvo. Eliminou o chupim. Acomodou-se na melhor poltrona da sala, esperando o tempo passar.
Ao fim de uma hora, ela conferiu seu saldo bancário na internet. Fez uma transferência. Sorriu. Fechou a casa. Colocou um cadeado no porão. Tirou as cortinas de renda. Recolheu a guirlanda. Ajeitou-as em malas, junto com as roupas cor-de-rosa, as toalhas bordadas, O Batalhão das Letras e Reinações de Narizinho. Colocou o Labrador no banco de trás da Hilux que acabaram de entregar. Conferiu os documentos do veículo, os seus e os da menina. Novos nomes, nova vida. No painel do carro, um bilhete com seu novo endereço, chaves e controle remoto do portão. A filha aguardava-a no aeroporto.

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