Ele deixou uma brecha nas cortinas blackout. O sol bateu bem no olho esquerdo. Gosto de ponteira enferrujada de guarda-chuva. Tentou fazer saliva. O fígado incomodava. O apito da fábrica ao lado. Uma e quinze. A essa hora, o mundo já sabia o resultado. O seu agente sabia. Ela sabia. Nenhum dos dois ligou.
Levantou. Espreguiçou-se. Teve câimbras. Recolheu duas garrafas vazias de cabernet sauvignon. Viu pontinhos pretos. Tropeçou na de merlot, desequilibrou-se, cortou o pé nos cacos da taça que jogara contra a parede. Pé esquerdo. Nem se importou. Merecia a dor. Uma infecção talvez. Balançava a cabeça, martelando o erro: por que contou para ela? Aqueles olhos azuis imensos pareciam tão calmos, tão serenos, tão compreensivos...
Ligou o computador. Colocou água para ferver. Café, café, café. Precisava de muito açúcar com café. Torceu para não conseguir acessar seus e-mails. A mão esquerda formigava. Não teve sorte: a conexão não falhou. Saiu da frente do computador. Fez o café e atirou-se no sofá. Ligou a TV. Zapeava, evitando os noticiários. Cochilou. Acordou-se com o telefone. Se fosse ela ou o agente? Olhou o número no identificador de chamadas. Pelo prefixo, só podia ser call center. Ninguém ligava para ele. Era um fantasma. Quem liga para fantasmas?
Precisava trabalhar. Atrasara-se com seu (seu?) “Rainha do Oriente”. A cliente pressionava. Queria seu livro pronto e impresso para fazer uma surpresa aos filhos e netos na festa de seus oitenta anos. Suas memórias. Coisas tão fascinantes quanto ser Rainha do Sport Club Oriente aos 15 anos. Casar aos 18. Ser mãe aos 19. Tudo dentro da moral e dos bons costumes. Nessas horas, preferia ser um ghost writer. Poupava-se do embaraço de assumir como suas aquelas bobagens.
“Aclamada Rainha do Oriente, não me desviei do bom caminho ensinado pelos meus pais. Pelo contrário, servi como exemplo às demais moças da minha idade que se pode ser bonita e recatada. Sempre falava que o exemplo de Santa Teresinha do Menino Jesus mostra o caminho certo que as moças devem seguir.” Foi o que ele digitou, rindo. Admirava-se do próprio cinismo. Não sabia onde aprendera a ser tão mercenário. Sentiu-se mal com o pensamento. Uma ferroada na fronte esquerda lembrou-lhe a bebedeira com seus motivos. Um retumbante fracasso ou uma fragorosa derrota?
Um ícone piscava na tela. Denunciava nova mensagem. Parou de digitar. Quem ordenou o capricho? Essa paixão por histórias interessantes ainda o complicaria na vida. Arrependia-se de sua dedicação àquela encomenda. Tão bem escrito para ser assinado por um advogado falastrão. Agora isso: a iminência de um prêmio literário. Para o cliente, os louros; para ele, as sombras.
O ícone piscava ameaçador. Respirou fundo. A narina esquerda trancou. O gosto do café melado com ponteira enferrujada de guarda-chuva estava insuportável. Levantou-se para escovar os dentes. Vomitou. Voltou ao computador. O ícone continuava a piscar. Coragem. Clicou. Seu olho esquerdo doeu. Tapou-o. Com o outro, viu o spam. Nada. O braço esquerdo incomodava. Ele era um fantasma. Quem manda notícias para fantasmas?
Lembrou que era quinta-feira. A vizinha ia para o trabalho antes mesmo de o jornal chegar. Capengando, saiu de pijamas. O corredor estava sempre vazio e gelado. Pegou o jornal. O estômago embrulhado. Sentou-se na mesa da cozinha. A faca afiada brilhava. Um aperto no peito, mais à esquerda. Separou o caderno de cultura. Na página 3, a manchete. “Os vencedores do Prêmio Literário são do Sul”. A foto dela. Uma dor aguda. Segurou-se na mesa. A toalha escorregou. O corpo foi ao chão. O vaso de crisântemos acertou-lhe a cabeça, selando seu destino. As sombras receberam seu mais dileto fantasma.
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