Aquele quarto vazio fora o território de sua infância. Nas paredes rachadas, o tom rosa desbotado denunciava ancestralidade feminina. O barulho do salto de seus sapatos reverberava. A escuridão e o cheiro de mofo fizeram-na abrir a janela.
Sentou-se no vão da janela. Na parede a sua frente, havia alguns buracos, bem onde ficavam as prateleiras com suas bonecas. Na mais alta, os ursinhos e as bonecas europeias, mandadas por uma tia-avó desconhecida todo Natal e todo aniversário. Na intermediária, ficavam a Suzi, a Amiguinha e outras da Estrela. Na mais baixa, as sobreviventes de guerra: sem cabeça, com cabelos cortados, sem perna, sem olhinhos... Os outros furos deveriam ser dos quadros: sua foto de bebê em seis poses, uma reprodução de pintura do anjo-da-guarda.
No parquê apodrecido aqui e ali, nem sombra de cera ou do brilho antigo. Havia quatro grandes manchas retangulares. Uma delas era a marca da sua estante. A coleção do Lobato, o Tesouro da Juventude. Em uma portinha, escondidos os gibis do Mickey e do Pato Donald. O álbum de figurinhas incompleto. Em outra porta, os LPs coloridos: narração das fábulas de La Fontaine e dos contos de Perrault. O toca-discos cor de laranja.
Outra marca era a de seu guarda-roupa. Tudo muito bem dobrado. Cheiro de roupa seca ao sol. Cheiro de saches de cravo-da-índia, para não pegar traça. Nos cabides, vestidos estilo marinheiro contrastavam com as batas floreadas e moderninhas. As calças boca-de-sino e pata-de-elefante, feitas sob medida pela costureira da esquina, deixavam-na “uma mo-ci-nha!”.
A terceira marca era a da cômoda. Sobre ela, uma caixinha de música dourada tocava Lara’s theme, coreografada por uma bailarina de plástico em eterno pliêt. Cada gaveta guardava um tipo de peças de roupas, tudo na mais perfeita e imaculável ordem. A mãe colocava as roupas sobre a cama e mandava que ela as ajeitasse. Meia hora depois, voltava para conferir. Uma meia bege no meio das brancas fez com que sua coleção de figurinhas não fosse completada. Uma camisola no meio dos pijamas suspendeu sua fidelidade ao programa do Toppo Gigio.
A quarta marca não sabia do que era. Vestígio de outra habitante. Foi até ela, esfregou o pé com força. A mancha continuou lá. Tão perto da cômoda. Pequena demais para ser uma escrivaninha. Muito distante da cama para ser um criado-mudo. Ou mudaram a posição da cama.
Parada sobre a mancha invasora, olhou para cima: o alçapão continuava lá. Houve noites em que teve medo: o Bicho Papão poderia sair por aquele buraco e pegá-la. Tempos depois, subia no armário, equilibrava-se para retirar a tampa e entrar pelo pequeno quadrado. O sótão era o seu salão, repleto de pequenos tesouros. Era a princesa regente.
Foi lá que se refugiaram, ela e a mãe, naquele noite. O tio fora visitá-las. A mãe mandou que se arrumasse, que iriam fazer uma longa viagem na Variant. Mal havia separado as roupas sobre a cama, a mãe voltou, mandando que se escondesse. Antes que terminasse a frase, ouviram um estrondo na sala, de porta arrombada, e gritos de “deita, deita”. Pegou a mãe pela mão e ajudou-a a subir no armário. Refugiaram-se no sótão. De lá ouviram os gritos do tio – “não sei, não sei” – urros de dor, passos ameaçadores na escada, barulho de portas. Objetos quebrados. Um carro partindo em alta velocidade Depois, silêncio assustador. O medo de sair. O resgate.
Fechou os olhos mais uma vez, tentando recuperar seu reinado na memória. Nada. O cheiro incômodo, o sol se pondo, as sombras – o medo do vazio – fizeram-na ir até o corredor. Lá havia uma escada...
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