terça-feira, 11 de agosto de 2009

Causo de velório

Causo de velório

Era uma gente festeira. Tão animada que os seus velórios eram muito mais animados do que as festas de muitas outras famílias. Sabiam levar a vida. Essa sabedoria – comprovada pela autoridade subjetiva das memórias – fazia com que as situações inusitadas fluíssem naturalmente, sem esforço algum.
Não foi diferente daquela vez.
Os seis irmãos varões fizeram um pacto. O avalista: delírios etílicos provocados por uma mistura sem-vergonha de cerveja, vinho e uísque – cachaça não, que é coisa de “brasilione”. Não fariam mais fiasco algum em casamentos, batizados, aniversários, velórios, ou qualquer outro tipo de festa. Nem sozinhos, nem em conjunto. Queriam um resultado prático. Ninguém mais poderia abrir sua boca suja para malfalar os irmãozinhos. Nenhum pêlo duro poderia abrir sua boca desdentada nem apontar seu dedo de unha suja para falar logo deles. Eram bons, mas tinham seu orgulho.
Desta vez, festa era um enterro. Enterro de tio velho, distante, daqueles que, quando os irmãos eram piás, roubaram a herança do pai falecido precocemente. “Até viveu demais, o animal” era a frase que não cansava. Combinaram-se, falaram-se por telefone e vestiram seus melhores ternos. O calor insinuava-se naquele início de manhã. “Só o que falta é ter vento norte, daí não vou agüentar a gravata” – repetia Germano, o mais novo e mais gordo, ameaçando mortalmente o pacto.
A viagem de carro não era muito longa, coisa de uma hora e meia, uma hora e quarenta e cinco no máximo. Precisavam ir nos melhores carros. Para fazer bonito. Para fazer bela figura aos parentes. Para honrar a memória da mãe. Para mostrar, enfim, que, mesmo que eles quisessem tirar os filhos da viúva, que lhe tivessem surrupiado as terras, eles eram os mais fortes. Os mais unidos. Os mais bem-vestidos. Os mais bem-sucedidos. Os melhores, enfim.
Marcaram de se encontrar na casa de Helmuth, o irmão mais velho. Claro. Sempre há que se respeitar a hierarquia. Chegaram mais ou menos ao mesmo tempo. Começaram as combinações. Helmuth, tomando para si ares de patriarca, foi logo sentenciando ao mais novo:
- Germano, nem uma palavra sobre a tua filha, grávida aos 15 anos sabe-se-lá-de-quem.
- E tu, nem uma palavra sobre a quase falência da tua firma. – Retrucou o avô precoce.
Foi quando o segundo mais novo, Frederico, atalhou:
- Pelo amor de Deus, gente, bem capaz que eles já não sabem disso tudo e mais ainda. Nós não sabemos os podres deles? Então? É a mesma coisa... A fofoqueira da nossa prima Dulce faz o serviço do expresso-leva-e-traz.
- E tudo distorcido, aumentado. Garanto! Como dois e dois são quatro. – Contribuiu raivosamente o segundo mais velho, Ernest.
- Vamos fazer de conta que é tudo um mar de rosas, como eles também fazem. Vamos mostrar que aprendemos o jogo sujo deles! – Conclamou, entusiasmado, Frederico.
Herbert, o terceiro, ajeitou-se em um banquinho e falou, com ares de deboche.
- Vocês estão se esquecendo do melhor, só pensando nos podres, nos problemas. Já pensou que beleza ver a cara daquele velho filha-da-puta deitado naquele caixão? Eu quero segurar a alça, tenho direito, já que ele queria me adotar quando éramos pequenos.
Ninguém discordou. Ao contrário, ensaiaram uma risada, que só o mais novo não engoliu.
- E viva a cuca-com-lingüiça! – comemorou Ruben, o quarto
- Aquela gente é tão sovina que é bem capaz de não ter. – bem observou Helmuth.
- Daí a gente compra, ué! – retrucou Frederico.
Partiram, em meio às risadas, os seis alegres irmãos. Dois em cada carro selecionado em um acordo tácito. Quando lá chegaram, como não acharam estacionamento bem na frente do local do velório, deram algumas boas voltas na quadra, para que o máximo de parentes possível pudesse vê-los em seus possantes. Não que fizessem isso de caso pensado, mas, no fundo, era isso: a necessidade de mostrar-se.
Ao entrarem no local do velório, mal disfarçando o sorriso no rosto, já avistaram a prima fofoqueira sentada em um dos lugares habitualmente reservados aos familiares mais próximos. Como sempre, cochichando, sibilando, serpenteando. Os olhos verdes rasgados não negavam a maledicência arraigada nos recônditos de sua alma – se é que tinha uma. Olhou os irmãos de cima a baixo, como era o seu costume. Entretanto, demorou seu olhar sobre Germano, esboçando um sorrisinho de canto de boca. O irmão mais novo notou – quem não haveria de notar? – e o úmido e mormacento calor da tarde subitamente começou a incomodar-lhe. Pensou em afrouxar a gravata. Helmuth o espancaria se fizesse isso.
Os seis irmãos, ato ensaiado, fizeram figura. Bons luteranos. Posicionaram-se em volta do caixão, parados como soldados em posição de sentido. Cada um flexionou seu pescoço e fingiu uma oração. O silêncio. Cochichos das velhas carpideiras.“Os filhos da Frau Ida”. “Todos os irmãos juntos”. “Estes são sobrinhos do finado”. “Gente de bem”. “Agora estão bem de vida”. “São muito animados”. “Sempre fazem um fiasco.”
Helmuth nada ouviu. Contemplava a cara do defunto. Há tantos anos esperava por essa cena, há tanto tempo produzira e reproduzira essa imagem em sua mente. Agora sequer parecia verdade. Era muito bom para ser verdade. Só não o matara na época porque era um gurizote franzino. Depois não o fez por falta de coragem. De um bom plano para não ser descoberto. Não valeria a pena ser preso por causa desse traste. Nem pensava que não valeria a pena sujar-se por causa dele. Matá-lo não seria uma sujeira. Seria exorcizar um demônio, livrar o mundo de uma praga.
Encenada a oração, Helmuth cumpriu o protocolo de cumprimentar a viúva. Os irmãos o seguiram. Não se sentaram lado a lado conforme o combinado tácito, pois a quantidade de carpideiras contratadas era bastante significativa, lotando o espaço. Do lugar onde se abancou, o irmão mais velho podia observar bem a viúva sem que ela percebesse. Como estava acabada! A imagem que tinha dela era a de uma mulher muito bonita – beleza que contribuiu para uma certa vingança providenciada pelo destino: os chifres e mais chifres que ela colocou no falecido, galhadas e mais galhadas. Cada caso da agora viúva, tão logo vinha a público, era comemorado pela família da Frau Ida. Reuniam-se para comemorar e brindar à saúde do amante.
Ao mesmo tempo em que a infidelidade concedia uma certa simpatia à viúva, Helmuth não esquecera que ela nada fizera para defendê-los. Era viva a lembrança do episódio que sucedeu ao enterro de seu pai. Todos já estavam em casa e a Mãe, entre chorosa e forte, redistribuía as tarefas cotidianas entre os filhos. Teriam que substituir o braço forte do pai nas lides com os animais e com as roças. Caía a tarde: era preciso recolher os bois, ordenhar as vacas. A vida precisava continuar. Ela trazia um filho em seu ventre – Germano – e havia outro no colo – Frederico. “Todos vão continuar comendo, então temos que dar um jeito”, foi o que a mãe falou. Mensagem que Helmuth, no amadurecimento precoce de seus treze anos, entendeu perfeitamente. Quando Frau Ida avistou o cunhado chegando de carroça, junto com a jovem noiva e o futuro sogro, alegrou-se com o pensamento que eles vieram ajudar. No que se enganou. O cunhado veio sério, com uns papéis. Disse que as terras eram dele, e o futuro sogro, que era advogado, soltou umas palavras que nem ele, nem a mãe entenderam, mas que pareciam graves. A família teria trinta dias para deixar as terras. Como eram parentes, ele tinha “consideração” e não os mandaria logo sair dali. Seria melhor que os outros tios pegassem os mais novos para criar – o Frederico era tão vistoso, tão forte, quem não queria um guri assim? O Herbert, que já saíra das fraldas, ele mesmo poderia criar, casaria em breve. O abraço da mãe. “Nos meus filhos ninguém mete a mão”. “Podem me roubar terras, mas não a dignidade.” A mãe pegou uma chaleira de água quente que estava sobre o fogão a lenha e ameaçou de jogar no cunhado. Helmuth gritou para Ernest trazer a foice, que o fez prontamente. Enxotaram os ladrõezinhos de merda. Mas a “lei” estava com eles. Nos trinta dias seguintes, houve uma romaria de parentes. Propunham soluções mirabolantes para o caso. Todas elas passavam pela fragmentação da família, o que a Frau Ida, valente, não aceitou. Helmuth também tinha bem vivo na memória o momento em que a mãe decidiu. Se não poderiam trabalhar na terra, tirariam seu sustento da indústria. Juntou seus caquinhos, as trouxas e a prole. Foram para Novo Hamburgo, onde o calçado prometia uma vida sem fome e até com certos luxos, como água encanada e energia elétrica. Tempos difíceis, não impossíveis.
Uma voz estridente interrompeu a inevitável e dolorosa digressão de Helmuth. Era a prima Dulce fofoqueira querendo conversa. Não poderia mandá-la pastar, sob pena de ter coisas terríveis inventadas a seu respeito. Cumprimentou-a, educado e formal. Ela não se conteve:
- Uma vizinha minha que trabalha na tua firma disse que vocês estão mal das pernas, é verdade?
- Mas olha aqui as minhas pernas, firmes e fortes! – Tentou desviar Helmuth, forçando um sorriso.
- Ô, primo, sempre brincando...
- Para que chorar se a morte é certa?
- Nem me fale. Coitado do tio, homem tão bom... – disse, provocativa e peçonhenta.
- É mesmo! – Disse sem convicção. Longe dele entrar nesses assuntos logo com quem.
Germano, outro que não ouviu os comentários das velhas durante a pseudo-oração-show dos irmãos, estava com medo de Dulce. Ai dela se tocasse no nome de sua filha grávida. Não confiava no seu autocontrole. O fiasco, olha o fiasco. O dedo de Helmuth em riste. Dulce veio em sua direção, ele levantou-se. Já era tarde demais. Ela o interceptou no caminho:
- Primo Germano, quanto tempo. Cada vez mais barrigudo! As coisas vão bem, né? Ou nem tanto. Como está a Evinha, tua filha?
Frederico, que fora encarregado por Helmuth de vigiar o irmão mais novo, veio em socorro a Germano:
- Tu não sabias que eu vou ser tio-avô? Estou muito orgulhoso. E já disse que, se eu não for o padrinho, fico de mal. Falando nas gurias, a tua é que está bonitona, né? O meu filho me mostrou umas fotos dela na Internet, mas que belezura. Aliás, até as tenho no meu laptop lá no carro. Queres que eu busque?
A mulher corou e não deu resposta. Germano ficou boquiaberto com o feito do irmão: fazer a fofoqueira calar e bater em retirada quase chorando.
- Que história de fotos na Internet é essa?
- Fotinhos pe-la-da. Uma biscate. Depois te mostro.
- Não, nem quero ver isso. Já me salvaram de boa. Como tu não contou isso antes?
- E estragar a surpresa? – Disse, segurando-se para não ter uma ataque de risos e furar com o combinado.
O velório transcorreu sem maiores incidentes. Nada de cuca, nada de lingüiça. Muito menos cachaça, mas isso não fazia falta os irmãos, que se recusavam a beber bebida de “rafuagem”. Uma torrencial chuva de verão impediu que Herbert e Ruben fossem providenciar os ingredientes do tradicional cardápio desse tipo de festa. Frederico só esperava que não chovesse também na hora do enterro, para não estragar o terno e o sapato novos. Helmuth estava feliz: o pulha morto, os irmãos comportando-se bem, a prima fora de combate e mal-falada por todos.
Quando o Pastor chegou, o irmão mais velho suspirou aliviado: não haveria mais tempo para fiascar. Era só encomendar a alma ao diabo, dar comida aos vermes e pronto. Acabado. Enquanto o Pastor falava, o coral cantava, as mentiras multiplicavam-se e pantomima realizava-se, a chuva parou. O féretro saiu, lento como sempre, sob um sol tímido, que fugia das nuvens. Herbert conseguiu seu lugar para segurar uma das alças do caixão. Fora oferecido a Helmuth. O mais velho, alegando idade, declinou do convite em favor do irmão, que “era mais forte”. O sol sobre a terra úmida. O mormaço insuportável. O cheiro de velas.
No antigo cemitério lamacento, grandes lápides com inscrições em alemão registravam valores atemporais: valorosa mãe, prestimoso irmão, amoroso pai. Helmuth só não ria do cinismo dos escritos porque estaria traindo um pacto que ele mesmo propôs e impôs. Exigiu que Germano ficasse ao seu lado enquanto preparavam o esquife para descer ao seu devido lugar e o Pastor falava as últimas palavras. A umidade, a tensão dos últimos momentos, o calor, o suor, o cansaço fizeram com que os dois irmãos ajeitassem seus volumosos corpos. Escoraram-se em uma das velhas lápides. “Terra a terra, pó a pó”. A conhecida cantilena quebrava o silêncio. Ouviam-se respirações ofegantes pela curta caminhada.Todos se distraíam em outros pensamentos. Ouviu-se um estrondo medonho. Olhou-se em volta, várias carpideiras ensaiaram um desmaio, mas o chão estava molhado demais para deixarem-se cair. O pastor, em uma posição mais elevada, viu dois gordos pares de pernas para o ar. Estava tentando engolir o riso, com o pescoço grosso, as veias saltavam e a cara arroxeava-se por prender o ar.
A lápide em que o mais velho e o mais novo escoraram-se caiu, levando os dois ao chão. Quando o Pastor irrompeu em risadas, ninguém mais se conteve: riram-se todos, da viúva à prima, do irmão mais novo ao mais velho. As carpideiras entreolharam-se e substituíram o choro por uma convulsão de risos. Uma criança arrancou uma flor de uma coroa e a jogou em outra gritando “É guerra”. O que se seguiu foi uma “batalha floral”. Quem não alcançava as flores, jogava bolinhas de barro. Dulce era o lavo preferido, especialmente das outras velhas. A chuva, mais uma vez, veio com toda a força, providencial, espantando todos do cemitério. Saíram com o corpo lavado pela água e a alma pelas risadas.
Ninguém teve coragem de levantar seu dedo sujo nem de abrir sua boca desdentada.

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