Aquele seria o fim de uma noite tranqüila - ̶ para os padrões de um serviço de emergência. Faltavam 25 minutos apenas para concluir meu turno. Se tivesse sorte, o telefone não tocaria e poderia ir para casa assim que minha substituta chegasse. Mas ele tocou. Saco! Vamos lá, fazer o quê?
Na ambulância, meus colegas tiravam sarro. “Hora extra não-remunerada de novo.”, “Olha a Madre Teresa!”. Eram as mesmas, velhas e infames piadinhas. Fui colocando as luvas – três, como de costume – e ai do hipócrita que falasse alguma coisa.
Como era longe. De dentro da ambulância, não tinha a menor noção de aonde estávamos indo. Só que estava demorando. Quando desci e olhei para a casa, bambeei. Fiz uma descarga de adrenalina, daquelas de sepultar cardíacos. Não podia entrar lá. Nem pensar. Fiquei para trás, mas logo um colega me chamou:
̶ Que que é? A valentona tá com medinho da casa mal-assombrada? Buuuuuuuuu!
“Palhaço, casa mal-assombrada uma ova!”, pensei. Respirei fundo e fui. Melhor ir do que dar explicações. Estava tudo tão igual ̶ pelo menos, no escuro. Uma saudade doída apertou-me a garganta. Não pude olhar muito o pátio. Meus colegas já estavam na casa. Parei na soleira. Respirei fundo. Faltava o cheiro.
Nas sextas-feiras, era dia de faxina geral. Minha mãe chegava mais cedo do trabalho. Colocava todos os móveis leves na rua. Vassoura, balde, pano, escovão. Depois, Let´s twist again no toca-discos. Dançávamos com as flanelas sob os nossos pés, encerando e lustrando o chão. Um espelho. Nesse meio tempo, meu pai já estava com o fogo pronto no forno de barro. Minha avó, pontualíssima, chegava com a massa crescida das cucas e dos pães. Era só enformar e rechear. Entre músicas e piadas, as novidades da semana ficavam em dia. Mostravam-se os trabalhos manuais, o quanto renderam, como estavam bonitos. Eu relatava as novidades da escola e das minhas amiguinhas. Às vezes, vinha um parente de longe para passar o fim de semana. Os cheiros da lenha queimada, da cera, do doce das cucas misturavam-se. Cheiro de mãe. Cheiro de vó. Jeito de pai. Éramos festa.
No topo da escada, meu colega me chamava:
̶ Vem logo que a coisa é feia! Tua especialidade!
Subi a escada correndo, como fazia na minha meninice. “Resgatar, seja quem for”: era o que me passava pela cabeça. O motorista da ambulância me apontava o quarto, o que fora de meus pais. Parei. Não queria olhar a cena. Uma guerra de travesseiros passou-me rápida pela memória. Penas de ganso voando. O perfume do frasco que quebrei voltou forte às minhas narinas.
Na cama, uma mulher deitada. O homem, estirado no chão. Pela desordem dos lençóis e dos travesseiros, debateram-se. Os olhos esbugalhados diziam tudo. Verifiquei os pulsos dos dois, para constar. Nada. Sob a cômoda, uma folha de caderno dobrada. Apontei-o. Alguém leu e disse qualquer coisa como “ciúme”, “envenenamento”, “tudo de novo”. Acho que saí do ar. Só ouvi alguém me dizendo para abrir a janela, estava abafado. Isso eu não podia mesmo. A janela dava para o pátio interno. A goiabeira. Meu balanço. Meu pai enforcado. Minha mãe caída, paralisada pelo desespero.
̶ Então, quem chamou a ambulância? ̶ indagou um dos meus colegas.
̶ Pela carta, eles têm uma filha. ̶ observou outro.
Sabia onde ela estava: no meu esconderijo. Só podia estar lá, na casinha da árvore. E estava, encolhidinha em um canto, assustada, trêmula. Era ela ou me via em um espelho? Ouvi um “Como ela sabia disso?” vindo lá de baixo, mas ignorei. Abracei e ninei a menina que já fui. Disse que iria ficar tudo bem, que eu cuidaria dela. Levantou a cabeça e olhou-me: vi meus olhos nos olhos dela. Vi minha vida na vida dela. Aconcheguei-a mais ainda e reforcei ̶ “Prometo!”.
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