terça-feira, 18 de agosto de 2009

Ensaio


Abaixo segue um exercício da Oficina.

Sete anos de pastor Jacó servia.” Foi o que me veio à mente quando a filha mais velha me entregou a urna com as cinzas do falecido. O verso ameaçava, apimentado, na minha língua. Não foram sete anos; pareceram-me setenta. Não podia dizer. A língua pesava de vontade. Tranquei os dentes. Não lembrava do resto do poema, nem de quem escreveu. Tampouco tinha certeza de que saíra de algum poema – sou lá eu mulher desses desfrutes?
Não era minha obrigação levar as cinzas. Era tarefa para os familiares. Não renderia nota na coluna social. Insinuaram, ameaçaram, obrigaram-me, deram-me o mapa. Nem tão longe que desse para ir de avião, nem tão perto que rendesse um passeio de fim de tarde. Sete horas de viagem me aguardavam até o Morro da Igreja, no fim do mundo à esquerda. Que eu aproveitasse bem a privilegiada paisagem! Encomendaram-me um queijo colonial, desses vendidos em barraquinhas na beira da estrada. Minha cara ficou mais azeda que o queijo. Faria pelo gosto das coisas bem feitas, pelo capricho de levar tudo até o fim.
Ofereceram-me o carro do falecido. Um belo e imundo BMW. Era impossível respirar dentro dele: cheiro de cigarro com poeira e alguma coisa podre. Minhas mãos grudaram no volante. Havia uma gordura viscosa, pegajosa sobre o couro. Nojo. O cheiro de gasolina era um bálsamo na fedentina geral. O ronco potente do motor animou-me.
Abri os vidros. Concentrei-me na aventura: pesar o pé sobre o acelerador. O vento desfazia meu coque e avermelhava minha pele. Aos poucos, nuvens carregadas juntavam-se e ameaçavam a minha estratégia contra o mau cheiro persistente. Pingos de chuva gelados e fortes bateram no meu rosto ao fim de quatro horas de viagem. Minhas bochechas ardiam. Fechei os vidros a contragosto. A podridão deu-me engulhos. O cheiro de pó despertou-me a rinite. Comecei a lacrimejar e, no instinto, levei a mão imunda aos olhos, que arderam. Na minha bolsa, havia uma necessaire com medicamentos, mas o caminho sinuoso não era propício para que eu mexesse nela.
Minha visão turvou. Curvas e cheiro insuportável. Controlava-me para não vomitar. Serra do Doze. Anoitecia. Vidros embaçados. Chovia forte. Deserto. Parei o mais à margem possível. Precisava respirar. Não queria vomitar ali dentro. Desci com minha bolsa, procurando o antialérgico, o colírio e o Plasil. Um caminhão despencava no sentido contrário. Abriu demais a curva. Bateu no BMW, arremessando-o no precipício. Um estouro. Um clarão. O carro explodiu. O caminhão sumiu. Eu assisti a tudo, abobalhada e ensopada. Sobraram o frio, o nariz entupido, o gosto salgado na boca. Podia chorar, ninguém estava vendo. Pavor. Se eu estivesse lá dentro?
Não sabia o que fazer. Sentei-me atrás de uns arbustos. Medo de cobra. Vi a polícia chegar. Mais medo. Culpa. Escondi-me. Fome. Não respirava mais direito, nem pela boca. Não sentia meus pés nem minhas mãos. Hipotermia à vista. Precisava me mexer. Esperei os policiais saírem. Demoraram, desceram barranco, voltaram, foram embora. A chuva cessara. Cerração fechada. Comecei a andar no breu.
Cheguei ao cume. Já amanhecia. Havia umas barraquinhas, daquelas que vendem souvenirs e produtos da região. Caí para dentro de uma delas assim que abriu. A moça olhou-me de cima a baixo, assustada. Trouxe-me, discreta e compreensiva, uma toalha e um café bem quente e doce. Comprei um abrigo horroroso, seco e macio. Nunca a sensação de uma malha sobre a pele arrepiada foi tão consoladora.
Sentei no pequeno restaurante. Pedi um café serrano completo. Precisava recompor-me, pensar. A televisão transmitia as notícias da manhã. “Enfermeira morre em acidente” foi a chamada principal. “Os policiais encontraram o corpo carbonizado dentro da BMW que explodiu após despencar de precipício, na madrugada de hoje, na Serra do Rio do Rastro, na altura do município de Bom Jardim da Serra.” As palavras da repórter fizeram-me morder a língua. Que corpo, se estava viva? Tudo ficou claro. O gosto do meu próprio sangue despertou-me ideias de vingança.

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