Não me cabe no possível a fragilidade da vida.
Não me cabe no possível uma vida interrompida.
Não me cabe no possível não saber quando se está dando o último abraço.
A impossibilidade de voltar o tempo,
A inevitabilidade da tragédia anunciada,
A impassibilidade diante da morte,
Os bons morrerem cedo,
Também não me cabem no possível.
Não me cabe no possível saber
que um sorriso singularmente contagioso não ilumina mais esse mundo.
Que um espírito vibrante, enteosusiamado, não habita mais um corpo.
Que uma história de amor ficou em um ponto e vírgula.
Não me cabe no possível intuir
quanto sofrimento há nos silêncios diluídos.
Quantas lágrimas escondem outras lágrimas.
Só me cabe no possível a lembrança do sorriso. Do abraço confortável. Do amigo. Do coração do tamanho do universo. Do apoio. Do entusiasmo.
Cedo demais, ele, que era todo entusiasmo, está no seu lugar.In teos.
domingo, 30 de agosto de 2009
quarta-feira, 26 de agosto de 2009
A Promessa II
Ela adotou a menina. Colocou cortinas rendadas nas janelas. Uma guirlanda na porta. Escolheram tintas e móveis. Reconstruiu o forno de barro. Cortou a goiabeira. Plantou flores e legumes. Reformou a casinha da árvore. Comprou laços de fita para os cabelos da pequena. Roupas cor-de-rosa. O Batalhão das Letras. Um Labrador caramelo. Bordou toalhas de banho com os seus apelidos – novas vidas, novos nomes. Trancou os fantasmas no porão. Ela zelava pela felicidade da filha. Sessão da tarde e pipoca. Reinações de Narizinho antes de dormir. Uma pessoa de bem. Mãe, enfim. Uma família. Nidificaram. O lugar do pai estava vago. Ela e ele se encontraram, olharam-se. Não se amaram. Eram convenientes. Elas precisavam de um pai. Ele, de uma família. Ninho para a menina, status para ele, sonho para ela. Casaram-se – pompa e circunstância. Viajavam, frequentavam, aconteciam. Ela não ouvia o que lhe diziam sobre ele. Não lia o que escreviam sobre ele os jornais. Não via que ele chegava tarde. Não sentia o seu cheiro de perfume vagabundo e de uísque caro. Negava tudo. Negar não pôde a notificação judicial. Ele trapaceara. Ela mandou a filha para a Disney.
Agora eram só os dois. De igual para igual. Tinha seus contatos. Colocou a raiva em conserva por vários dias para servi-la naquele café da manhã. Mesa no quintal florido. Toalha da Ilha da Madeira, copos de cristal, porcelana fina, suco com sonífero. Ele dormiu. Ela o amarrou a uma cadeira, junto à mesa posta. Escreveu uma carta de suicida. Conhecia bem o gênero. Ele acordou. De revólver em punho, ela apresentou a carta impressa.
̶ - Assina! Nada de tremer a letra. ̶ ordenou ela.
̶ - Sua louca, o que é isso? Não vou assinar nada! ̶ - disse ele, derrubando uma xícara.
-̶ Não precisas, mando do teu e-mail para todos os teus contatos. Senha com nome do time de futebol, coisa mais patética! ̶ disse, rindo e engatilhando a arma. ̶ Se tu assinares, é morte indolor. Se tu não assinares, morres devagarinho, devagarinho... Achas que não aprendi nada em vinte anos?
̶ - O que eu te fiz, criatura? Pensa na nossa filha, o que vai ser dela, pelo-amor-de-deus!- ̶ gritava ele.
̶ -Assina! Tua filha nada! Minha! – Berrava, apontando-lhe a arma.
- Ele assinou. Ela recolheu depressa o papel. Encostou o revólver na cabeça dele.
̶ -O que tu vais fazer agora? Por que tudo isso? Tu não és assassina...
̶ -Experimenta para ver! Tu mereces. Aquelas empresas-fantasma no meu nome... ̶ gritou.
̶ - Só usei teus documentos. Iria dar tudo certo não fossem aquelas escutas... ̶ falou, soluçando.
̶ - Desgraçado! ̶ - rosnou ela, dando-lhe uma bofetada no rosto e um chute na canela. ̶ Então o que dizem os jornais é verdade...
̶ - Eles não sabem da missa um terço. Mas não é por isso que tu vais te sujar. Me tira daqui, pensa, pensa! ̶- implorava.
̶ -Tu desviaste aquele dinheiro todo. ̶- gritava ela, cuspindo-lhe na cara. - Ladrão! Safado! Pilantra! Ordinário! ... ̶ gritava ela, cuspindo-lhe na cara.
̶ - Aquilo e muito mais, que está lá, guardadinho, esperando por nós, só deixando passar a turbulência, meu amor! ̶ - serpenteou.
Ela baixou a arma. Atirou-a no chão. Aproximou-se dele. Bem perto. Hálito com hálito. Beijou-o. Sentou no seu colo. Colocou a mão por baixo da cadeira e arrancou um gravador colado com fita adesiva. Rebobinou. Ouviu um trecho. Gritou:
̶ -Podem vir!
Policiais infestaram o jardim florido. Desamarraram-no. Algemaram-no. Ela entrou na casa. Espiou entre as cortinas: levaram-no, enfim. A felicidade da filha estava a salvo. Eliminou o chupim. Acomodou-se na melhor poltrona da sala, esperando o tempo passar.
Ao fim de uma hora, ela conferiu seu saldo bancário na internet. Fez uma transferência. Sorriu. Fechou a casa. Colocou um cadeado no porão. Tirou as cortinas de renda. Recolheu a guirlanda. Ajeitou-as em malas, junto com as roupas cor-de-rosa, as toalhas bordadas, O Batalhão das Letras e Reinações de Narizinho. Colocou o Labrador no banco de trás da Hilux que acabaram de entregar. Conferiu os documentos do veículo, os seus e os da menina. Novos nomes, nova vida. No painel do carro, um bilhete com seu novo endereço, chaves e controle remoto do portão. A filha aguardava-a no aeroporto.
Agora eram só os dois. De igual para igual. Tinha seus contatos. Colocou a raiva em conserva por vários dias para servi-la naquele café da manhã. Mesa no quintal florido. Toalha da Ilha da Madeira, copos de cristal, porcelana fina, suco com sonífero. Ele dormiu. Ela o amarrou a uma cadeira, junto à mesa posta. Escreveu uma carta de suicida. Conhecia bem o gênero. Ele acordou. De revólver em punho, ela apresentou a carta impressa.
̶ - Assina! Nada de tremer a letra. ̶ ordenou ela.
̶ - Sua louca, o que é isso? Não vou assinar nada! ̶ - disse ele, derrubando uma xícara.
-̶ Não precisas, mando do teu e-mail para todos os teus contatos. Senha com nome do time de futebol, coisa mais patética! ̶ disse, rindo e engatilhando a arma. ̶ Se tu assinares, é morte indolor. Se tu não assinares, morres devagarinho, devagarinho... Achas que não aprendi nada em vinte anos?
̶ - O que eu te fiz, criatura? Pensa na nossa filha, o que vai ser dela, pelo-amor-de-deus!- ̶ gritava ele.
̶ -Assina! Tua filha nada! Minha! – Berrava, apontando-lhe a arma.
- Ele assinou. Ela recolheu depressa o papel. Encostou o revólver na cabeça dele.
̶ -O que tu vais fazer agora? Por que tudo isso? Tu não és assassina...
̶ -Experimenta para ver! Tu mereces. Aquelas empresas-fantasma no meu nome... ̶ gritou.
̶ - Só usei teus documentos. Iria dar tudo certo não fossem aquelas escutas... ̶ falou, soluçando.
̶ - Desgraçado! ̶ - rosnou ela, dando-lhe uma bofetada no rosto e um chute na canela. ̶ Então o que dizem os jornais é verdade...
̶ - Eles não sabem da missa um terço. Mas não é por isso que tu vais te sujar. Me tira daqui, pensa, pensa! ̶- implorava.
̶ -Tu desviaste aquele dinheiro todo. ̶- gritava ela, cuspindo-lhe na cara. - Ladrão! Safado! Pilantra! Ordinário! ... ̶ gritava ela, cuspindo-lhe na cara.
̶ - Aquilo e muito mais, que está lá, guardadinho, esperando por nós, só deixando passar a turbulência, meu amor! ̶ - serpenteou.
Ela baixou a arma. Atirou-a no chão. Aproximou-se dele. Bem perto. Hálito com hálito. Beijou-o. Sentou no seu colo. Colocou a mão por baixo da cadeira e arrancou um gravador colado com fita adesiva. Rebobinou. Ouviu um trecho. Gritou:
̶ -Podem vir!
Policiais infestaram o jardim florido. Desamarraram-no. Algemaram-no. Ela entrou na casa. Espiou entre as cortinas: levaram-no, enfim. A felicidade da filha estava a salvo. Eliminou o chupim. Acomodou-se na melhor poltrona da sala, esperando o tempo passar.
Ao fim de uma hora, ela conferiu seu saldo bancário na internet. Fez uma transferência. Sorriu. Fechou a casa. Colocou um cadeado no porão. Tirou as cortinas de renda. Recolheu a guirlanda. Ajeitou-as em malas, junto com as roupas cor-de-rosa, as toalhas bordadas, O Batalhão das Letras e Reinações de Narizinho. Colocou o Labrador no banco de trás da Hilux que acabaram de entregar. Conferiu os documentos do veículo, os seus e os da menina. Novos nomes, nova vida. No painel do carro, um bilhete com seu novo endereço, chaves e controle remoto do portão. A filha aguardava-a no aeroporto.
A promessa
Aquele seria o fim de uma noite tranqüila - ̶ para os padrões de um serviço de emergência. Faltavam 25 minutos apenas para concluir meu turno. Se tivesse sorte, o telefone não tocaria e poderia ir para casa assim que minha substituta chegasse. Mas ele tocou. Saco! Vamos lá, fazer o quê?
Na ambulância, meus colegas tiravam sarro. “Hora extra não-remunerada de novo.”, “Olha a Madre Teresa!”. Eram as mesmas, velhas e infames piadinhas. Fui colocando as luvas – três, como de costume – e ai do hipócrita que falasse alguma coisa.
Como era longe. De dentro da ambulância, não tinha a menor noção de aonde estávamos indo. Só que estava demorando. Quando desci e olhei para a casa, bambeei. Fiz uma descarga de adrenalina, daquelas de sepultar cardíacos. Não podia entrar lá. Nem pensar. Fiquei para trás, mas logo um colega me chamou:
̶ Que que é? A valentona tá com medinho da casa mal-assombrada? Buuuuuuuuu!
“Palhaço, casa mal-assombrada uma ova!”, pensei. Respirei fundo e fui. Melhor ir do que dar explicações. Estava tudo tão igual ̶ pelo menos, no escuro. Uma saudade doída apertou-me a garganta. Não pude olhar muito o pátio. Meus colegas já estavam na casa. Parei na soleira. Respirei fundo. Faltava o cheiro.
Nas sextas-feiras, era dia de faxina geral. Minha mãe chegava mais cedo do trabalho. Colocava todos os móveis leves na rua. Vassoura, balde, pano, escovão. Depois, Let´s twist again no toca-discos. Dançávamos com as flanelas sob os nossos pés, encerando e lustrando o chão. Um espelho. Nesse meio tempo, meu pai já estava com o fogo pronto no forno de barro. Minha avó, pontualíssima, chegava com a massa crescida das cucas e dos pães. Era só enformar e rechear. Entre músicas e piadas, as novidades da semana ficavam em dia. Mostravam-se os trabalhos manuais, o quanto renderam, como estavam bonitos. Eu relatava as novidades da escola e das minhas amiguinhas. Às vezes, vinha um parente de longe para passar o fim de semana. Os cheiros da lenha queimada, da cera, do doce das cucas misturavam-se. Cheiro de mãe. Cheiro de vó. Jeito de pai. Éramos festa.
No topo da escada, meu colega me chamava:
̶ Vem logo que a coisa é feia! Tua especialidade!
Subi a escada correndo, como fazia na minha meninice. “Resgatar, seja quem for”: era o que me passava pela cabeça. O motorista da ambulância me apontava o quarto, o que fora de meus pais. Parei. Não queria olhar a cena. Uma guerra de travesseiros passou-me rápida pela memória. Penas de ganso voando. O perfume do frasco que quebrei voltou forte às minhas narinas.
Na cama, uma mulher deitada. O homem, estirado no chão. Pela desordem dos lençóis e dos travesseiros, debateram-se. Os olhos esbugalhados diziam tudo. Verifiquei os pulsos dos dois, para constar. Nada. Sob a cômoda, uma folha de caderno dobrada. Apontei-o. Alguém leu e disse qualquer coisa como “ciúme”, “envenenamento”, “tudo de novo”. Acho que saí do ar. Só ouvi alguém me dizendo para abrir a janela, estava abafado. Isso eu não podia mesmo. A janela dava para o pátio interno. A goiabeira. Meu balanço. Meu pai enforcado. Minha mãe caída, paralisada pelo desespero.
̶ Então, quem chamou a ambulância? ̶ indagou um dos meus colegas.
̶ Pela carta, eles têm uma filha. ̶ observou outro.
Sabia onde ela estava: no meu esconderijo. Só podia estar lá, na casinha da árvore. E estava, encolhidinha em um canto, assustada, trêmula. Era ela ou me via em um espelho? Ouvi um “Como ela sabia disso?” vindo lá de baixo, mas ignorei. Abracei e ninei a menina que já fui. Disse que iria ficar tudo bem, que eu cuidaria dela. Levantou a cabeça e olhou-me: vi meus olhos nos olhos dela. Vi minha vida na vida dela. Aconcheguei-a mais ainda e reforcei ̶ “Prometo!”.
Na ambulância, meus colegas tiravam sarro. “Hora extra não-remunerada de novo.”, “Olha a Madre Teresa!”. Eram as mesmas, velhas e infames piadinhas. Fui colocando as luvas – três, como de costume – e ai do hipócrita que falasse alguma coisa.
Como era longe. De dentro da ambulância, não tinha a menor noção de aonde estávamos indo. Só que estava demorando. Quando desci e olhei para a casa, bambeei. Fiz uma descarga de adrenalina, daquelas de sepultar cardíacos. Não podia entrar lá. Nem pensar. Fiquei para trás, mas logo um colega me chamou:
̶ Que que é? A valentona tá com medinho da casa mal-assombrada? Buuuuuuuuu!
“Palhaço, casa mal-assombrada uma ova!”, pensei. Respirei fundo e fui. Melhor ir do que dar explicações. Estava tudo tão igual ̶ pelo menos, no escuro. Uma saudade doída apertou-me a garganta. Não pude olhar muito o pátio. Meus colegas já estavam na casa. Parei na soleira. Respirei fundo. Faltava o cheiro.
Nas sextas-feiras, era dia de faxina geral. Minha mãe chegava mais cedo do trabalho. Colocava todos os móveis leves na rua. Vassoura, balde, pano, escovão. Depois, Let´s twist again no toca-discos. Dançávamos com as flanelas sob os nossos pés, encerando e lustrando o chão. Um espelho. Nesse meio tempo, meu pai já estava com o fogo pronto no forno de barro. Minha avó, pontualíssima, chegava com a massa crescida das cucas e dos pães. Era só enformar e rechear. Entre músicas e piadas, as novidades da semana ficavam em dia. Mostravam-se os trabalhos manuais, o quanto renderam, como estavam bonitos. Eu relatava as novidades da escola e das minhas amiguinhas. Às vezes, vinha um parente de longe para passar o fim de semana. Os cheiros da lenha queimada, da cera, do doce das cucas misturavam-se. Cheiro de mãe. Cheiro de vó. Jeito de pai. Éramos festa.
No topo da escada, meu colega me chamava:
̶ Vem logo que a coisa é feia! Tua especialidade!
Subi a escada correndo, como fazia na minha meninice. “Resgatar, seja quem for”: era o que me passava pela cabeça. O motorista da ambulância me apontava o quarto, o que fora de meus pais. Parei. Não queria olhar a cena. Uma guerra de travesseiros passou-me rápida pela memória. Penas de ganso voando. O perfume do frasco que quebrei voltou forte às minhas narinas.
Na cama, uma mulher deitada. O homem, estirado no chão. Pela desordem dos lençóis e dos travesseiros, debateram-se. Os olhos esbugalhados diziam tudo. Verifiquei os pulsos dos dois, para constar. Nada. Sob a cômoda, uma folha de caderno dobrada. Apontei-o. Alguém leu e disse qualquer coisa como “ciúme”, “envenenamento”, “tudo de novo”. Acho que saí do ar. Só ouvi alguém me dizendo para abrir a janela, estava abafado. Isso eu não podia mesmo. A janela dava para o pátio interno. A goiabeira. Meu balanço. Meu pai enforcado. Minha mãe caída, paralisada pelo desespero.
̶ Então, quem chamou a ambulância? ̶ indagou um dos meus colegas.
̶ Pela carta, eles têm uma filha. ̶ observou outro.
Sabia onde ela estava: no meu esconderijo. Só podia estar lá, na casinha da árvore. E estava, encolhidinha em um canto, assustada, trêmula. Era ela ou me via em um espelho? Ouvi um “Como ela sabia disso?” vindo lá de baixo, mas ignorei. Abracei e ninei a menina que já fui. Disse que iria ficar tudo bem, que eu cuidaria dela. Levantou a cabeça e olhou-me: vi meus olhos nos olhos dela. Vi minha vida na vida dela. Aconcheguei-a mais ainda e reforcei ̶ “Prometo!”.
Condolências
Separou os pertences da falecida. Colocou tudo na embalagem padrão e lacrou. As faxineiras chegaram. Deu as instruções a elas. Precisavam ser rápidas: o setor de emergências estava lotado.
No corredor, pessoas de olhos vermelhos e inchados consolavam-se. Entregou o saco a uma delas. Murmurou um “meus sentimentos”. Baixou a cabeça. Saiu.
Conferiu o trabalho das faxineiras. O cheiro de álcool em gel substituía o de urina e sangue. Tudo certo. Uma faxineira arrumava a trouxa com os lençóis sujos. Ao se retirar:
̶ - Achei isso. Ainda dá tempo de levar para a família. – disse, entregando-lhe um pequeno objeto prateado e redondo.
Ela deixou-se cair sobre o sofá destinado aos acompanhantes. Não sabia como pegar o objeto. Era o broche da sua mãe. Não existiriam dois broches tão mimosos no mundo. A prata imitava renda. As pedras cravejadas em simetria. No colo de sua mãe, imaginava que a pedra maior era a rainha e que as outras seis eram os cavaleiros. A mãe ficava muito elegante na blusa branca com o decote fechado pelo broche. O pai tinha ciúme, melhor não arrumar briga.
Fechou a mão com força. Machucou-se. Doía mais a obrigação de devolvê-lo. O broche pertencia-lhe por direito divino. Ele voltou às suas mãos. Acaso não existia para ela, só justiça. Injustiça, mais ainda. Levaram-lhe as joias todas. Depois, o piano alemão. Os objetos de arte. Os móveis. Dívidas e mais dívidas herdadas de seu pai. A casa, seu tutor vendeu. Ela nunca soube do dinheiro.
Urgia devolver o broche. Não era uma ladra. Roubaram-lhe. Agora se mostraria superior. O broche estava todo suado. Não era aquele suor que o deixara escurecido. A cretina não cuidara direito. Só um polidor e pronto. Simples. Nem isso fez. Não merecia ficar com a corte real. Procurava desculpas para não a devolver. Sabe-se lá por onde a dona falecida andara com o broche. Quantas roupas indignas não se condecoraram com ele? Um acinte!
Devolveria o objeto. A dor. A razão. A justiça. Precisava apressar-se. Secou o broche no jaleco e colocou-o no bolso. Foi ao corredor. Ninguém. A recepção. Pegou o elevador de serviço. Um carrinho com comida para pacientes. Nojo. Trancou a respiração o quanto pôde.
Na recepção, muitas pessoas. A filha da falecida a reconheceu. Os olhos e o nariz vermelhos. A herdeira abraçou-a. Um anacrônico Chanel número 5.
̶ - Queria te agradecer por tudo que fizeste pela mamãe... – disse, lacrimejando.
Ela colocou o broche na palma da mão da enlutada. Teatral, a herdeira murmurou:
̶ - A mamãe e esse broche horroroso. Se não fosse tão feio, até te daria, de lembrança da mamãe, que gostou tanto de ti...
Ela sentiu suas bochechas incendiarem-se com aquela estupidez. Como podia dizer isso? Imbecil! Conhecia o tipo. Precisava agir.
̶ - Pois é. A faxineira me entregou. Achei que talvez nem pertencesse a sua mãe, uma verdadeira dama. -̶ Disse, disfarçando a ironia.
A filha ficou mais vermelha ainda. Balançou as pulseiras douradas. Titubeou.
̶ - É, está mais escuro. Não sei... ̶- falou.
̶ - Tem certeza de que é dela? Não vai ficar com algo que não é seu, não é mesmo? Talvez a faxineira tenha trocado o número do quarto. Sabe como elas são, não é? Olhe direito... As pedras nem são verdadeiras. - ̶ serpenteou, antegozando a vitória.
A filha já não lacrimejava. Passou a mão em seus colares dourados e prateados. Ajeitou-se toda. Reequilibrou-se nos saltos altos. Pigarreou.
̶ - Não, não é mesmo. Mamãe não era mulherzinha de bijuterias. Desculpa, estou nervosa. Por favor, entrega a quem de justiça, sim? - ̶ pediu a enlutada.
Despediram-se. Condolências.
Sim, ela destinaria o broche a quem de justiça. A justiça divina.
No corredor, pessoas de olhos vermelhos e inchados consolavam-se. Entregou o saco a uma delas. Murmurou um “meus sentimentos”. Baixou a cabeça. Saiu.
Conferiu o trabalho das faxineiras. O cheiro de álcool em gel substituía o de urina e sangue. Tudo certo. Uma faxineira arrumava a trouxa com os lençóis sujos. Ao se retirar:
̶ - Achei isso. Ainda dá tempo de levar para a família. – disse, entregando-lhe um pequeno objeto prateado e redondo.
Ela deixou-se cair sobre o sofá destinado aos acompanhantes. Não sabia como pegar o objeto. Era o broche da sua mãe. Não existiriam dois broches tão mimosos no mundo. A prata imitava renda. As pedras cravejadas em simetria. No colo de sua mãe, imaginava que a pedra maior era a rainha e que as outras seis eram os cavaleiros. A mãe ficava muito elegante na blusa branca com o decote fechado pelo broche. O pai tinha ciúme, melhor não arrumar briga.
Fechou a mão com força. Machucou-se. Doía mais a obrigação de devolvê-lo. O broche pertencia-lhe por direito divino. Ele voltou às suas mãos. Acaso não existia para ela, só justiça. Injustiça, mais ainda. Levaram-lhe as joias todas. Depois, o piano alemão. Os objetos de arte. Os móveis. Dívidas e mais dívidas herdadas de seu pai. A casa, seu tutor vendeu. Ela nunca soube do dinheiro.
Urgia devolver o broche. Não era uma ladra. Roubaram-lhe. Agora se mostraria superior. O broche estava todo suado. Não era aquele suor que o deixara escurecido. A cretina não cuidara direito. Só um polidor e pronto. Simples. Nem isso fez. Não merecia ficar com a corte real. Procurava desculpas para não a devolver. Sabe-se lá por onde a dona falecida andara com o broche. Quantas roupas indignas não se condecoraram com ele? Um acinte!
Devolveria o objeto. A dor. A razão. A justiça. Precisava apressar-se. Secou o broche no jaleco e colocou-o no bolso. Foi ao corredor. Ninguém. A recepção. Pegou o elevador de serviço. Um carrinho com comida para pacientes. Nojo. Trancou a respiração o quanto pôde.
Na recepção, muitas pessoas. A filha da falecida a reconheceu. Os olhos e o nariz vermelhos. A herdeira abraçou-a. Um anacrônico Chanel número 5.
̶ - Queria te agradecer por tudo que fizeste pela mamãe... – disse, lacrimejando.
Ela colocou o broche na palma da mão da enlutada. Teatral, a herdeira murmurou:
̶ - A mamãe e esse broche horroroso. Se não fosse tão feio, até te daria, de lembrança da mamãe, que gostou tanto de ti...
Ela sentiu suas bochechas incendiarem-se com aquela estupidez. Como podia dizer isso? Imbecil! Conhecia o tipo. Precisava agir.
̶ - Pois é. A faxineira me entregou. Achei que talvez nem pertencesse a sua mãe, uma verdadeira dama. -̶ Disse, disfarçando a ironia.
A filha ficou mais vermelha ainda. Balançou as pulseiras douradas. Titubeou.
̶ - É, está mais escuro. Não sei... ̶- falou.
̶ - Tem certeza de que é dela? Não vai ficar com algo que não é seu, não é mesmo? Talvez a faxineira tenha trocado o número do quarto. Sabe como elas são, não é? Olhe direito... As pedras nem são verdadeiras. - ̶ serpenteou, antegozando a vitória.
A filha já não lacrimejava. Passou a mão em seus colares dourados e prateados. Ajeitou-se toda. Reequilibrou-se nos saltos altos. Pigarreou.
̶ - Não, não é mesmo. Mamãe não era mulherzinha de bijuterias. Desculpa, estou nervosa. Por favor, entrega a quem de justiça, sim? - ̶ pediu a enlutada.
Despediram-se. Condolências.
Sim, ela destinaria o broche a quem de justiça. A justiça divina.
segunda-feira, 24 de agosto de 2009
Ghost Writer
Ele deixou uma brecha nas cortinas blackout. O sol bateu bem no olho esquerdo. Gosto de ponteira enferrujada de guarda-chuva. Tentou fazer saliva. O fígado incomodava. O apito da fábrica ao lado. Uma e quinze. A essa hora, o mundo já sabia o resultado. O seu agente sabia. Ela sabia. Nenhum dos dois ligou.
Levantou. Espreguiçou-se. Teve câimbras. Recolheu duas garrafas vazias de cabernet sauvignon. Viu pontinhos pretos. Tropeçou na de merlot, desequilibrou-se, cortou o pé nos cacos da taça que jogara contra a parede. Pé esquerdo. Nem se importou. Merecia a dor. Uma infecção talvez. Balançava a cabeça, martelando o erro: por que contou para ela? Aqueles olhos azuis imensos pareciam tão calmos, tão serenos, tão compreensivos...
Ligou o computador. Colocou água para ferver. Café, café, café. Precisava de muito açúcar com café. Torceu para não conseguir acessar seus e-mails. A mão esquerda formigava. Não teve sorte: a conexão não falhou. Saiu da frente do computador. Fez o café e atirou-se no sofá. Ligou a TV. Zapeava, evitando os noticiários. Cochilou. Acordou-se com o telefone. Se fosse ela ou o agente? Olhou o número no identificador de chamadas. Pelo prefixo, só podia ser call center. Ninguém ligava para ele. Era um fantasma. Quem liga para fantasmas?
Precisava trabalhar. Atrasara-se com seu (seu?) “Rainha do Oriente”. A cliente pressionava. Queria seu livro pronto e impresso para fazer uma surpresa aos filhos e netos na festa de seus oitenta anos. Suas memórias. Coisas tão fascinantes quanto ser Rainha do Sport Club Oriente aos 15 anos. Casar aos 18. Ser mãe aos 19. Tudo dentro da moral e dos bons costumes. Nessas horas, preferia ser um ghost writer. Poupava-se do embaraço de assumir como suas aquelas bobagens.
“Aclamada Rainha do Oriente, não me desviei do bom caminho ensinado pelos meus pais. Pelo contrário, servi como exemplo às demais moças da minha idade que se pode ser bonita e recatada. Sempre falava que o exemplo de Santa Teresinha do Menino Jesus mostra o caminho certo que as moças devem seguir.” Foi o que ele digitou, rindo. Admirava-se do próprio cinismo. Não sabia onde aprendera a ser tão mercenário. Sentiu-se mal com o pensamento. Uma ferroada na fronte esquerda lembrou-lhe a bebedeira com seus motivos. Um retumbante fracasso ou uma fragorosa derrota?
Um ícone piscava na tela. Denunciava nova mensagem. Parou de digitar. Quem ordenou o capricho? Essa paixão por histórias interessantes ainda o complicaria na vida. Arrependia-se de sua dedicação àquela encomenda. Tão bem escrito para ser assinado por um advogado falastrão. Agora isso: a iminência de um prêmio literário. Para o cliente, os louros; para ele, as sombras.
O ícone piscava ameaçador. Respirou fundo. A narina esquerda trancou. O gosto do café melado com ponteira enferrujada de guarda-chuva estava insuportável. Levantou-se para escovar os dentes. Vomitou. Voltou ao computador. O ícone continuava a piscar. Coragem. Clicou. Seu olho esquerdo doeu. Tapou-o. Com o outro, viu o spam. Nada. O braço esquerdo incomodava. Ele era um fantasma. Quem manda notícias para fantasmas?
Lembrou que era quinta-feira. A vizinha ia para o trabalho antes mesmo de o jornal chegar. Capengando, saiu de pijamas. O corredor estava sempre vazio e gelado. Pegou o jornal. O estômago embrulhado. Sentou-se na mesa da cozinha. A faca afiada brilhava. Um aperto no peito, mais à esquerda. Separou o caderno de cultura. Na página 3, a manchete. “Os vencedores do Prêmio Literário são do Sul”. A foto dela. Uma dor aguda. Segurou-se na mesa. A toalha escorregou. O corpo foi ao chão. O vaso de crisântemos acertou-lhe a cabeça, selando seu destino. As sombras receberam seu mais dileto fantasma.
Levantou. Espreguiçou-se. Teve câimbras. Recolheu duas garrafas vazias de cabernet sauvignon. Viu pontinhos pretos. Tropeçou na de merlot, desequilibrou-se, cortou o pé nos cacos da taça que jogara contra a parede. Pé esquerdo. Nem se importou. Merecia a dor. Uma infecção talvez. Balançava a cabeça, martelando o erro: por que contou para ela? Aqueles olhos azuis imensos pareciam tão calmos, tão serenos, tão compreensivos...
Ligou o computador. Colocou água para ferver. Café, café, café. Precisava de muito açúcar com café. Torceu para não conseguir acessar seus e-mails. A mão esquerda formigava. Não teve sorte: a conexão não falhou. Saiu da frente do computador. Fez o café e atirou-se no sofá. Ligou a TV. Zapeava, evitando os noticiários. Cochilou. Acordou-se com o telefone. Se fosse ela ou o agente? Olhou o número no identificador de chamadas. Pelo prefixo, só podia ser call center. Ninguém ligava para ele. Era um fantasma. Quem liga para fantasmas?
Precisava trabalhar. Atrasara-se com seu (seu?) “Rainha do Oriente”. A cliente pressionava. Queria seu livro pronto e impresso para fazer uma surpresa aos filhos e netos na festa de seus oitenta anos. Suas memórias. Coisas tão fascinantes quanto ser Rainha do Sport Club Oriente aos 15 anos. Casar aos 18. Ser mãe aos 19. Tudo dentro da moral e dos bons costumes. Nessas horas, preferia ser um ghost writer. Poupava-se do embaraço de assumir como suas aquelas bobagens.
“Aclamada Rainha do Oriente, não me desviei do bom caminho ensinado pelos meus pais. Pelo contrário, servi como exemplo às demais moças da minha idade que se pode ser bonita e recatada. Sempre falava que o exemplo de Santa Teresinha do Menino Jesus mostra o caminho certo que as moças devem seguir.” Foi o que ele digitou, rindo. Admirava-se do próprio cinismo. Não sabia onde aprendera a ser tão mercenário. Sentiu-se mal com o pensamento. Uma ferroada na fronte esquerda lembrou-lhe a bebedeira com seus motivos. Um retumbante fracasso ou uma fragorosa derrota?
Um ícone piscava na tela. Denunciava nova mensagem. Parou de digitar. Quem ordenou o capricho? Essa paixão por histórias interessantes ainda o complicaria na vida. Arrependia-se de sua dedicação àquela encomenda. Tão bem escrito para ser assinado por um advogado falastrão. Agora isso: a iminência de um prêmio literário. Para o cliente, os louros; para ele, as sombras.
O ícone piscava ameaçador. Respirou fundo. A narina esquerda trancou. O gosto do café melado com ponteira enferrujada de guarda-chuva estava insuportável. Levantou-se para escovar os dentes. Vomitou. Voltou ao computador. O ícone continuava a piscar. Coragem. Clicou. Seu olho esquerdo doeu. Tapou-o. Com o outro, viu o spam. Nada. O braço esquerdo incomodava. Ele era um fantasma. Quem manda notícias para fantasmas?
Lembrou que era quinta-feira. A vizinha ia para o trabalho antes mesmo de o jornal chegar. Capengando, saiu de pijamas. O corredor estava sempre vazio e gelado. Pegou o jornal. O estômago embrulhado. Sentou-se na mesa da cozinha. A faca afiada brilhava. Um aperto no peito, mais à esquerda. Separou o caderno de cultura. Na página 3, a manchete. “Os vencedores do Prêmio Literário são do Sul”. A foto dela. Uma dor aguda. Segurou-se na mesa. A toalha escorregou. O corpo foi ao chão. O vaso de crisântemos acertou-lhe a cabeça, selando seu destino. As sombras receberam seu mais dileto fantasma.
terça-feira, 18 de agosto de 2009
Ensaio
Abaixo segue um exercício da Oficina.
Sete anos de pastor Jacó servia.” Foi o que me veio à mente quando a filha mais velha me entregou a urna com as cinzas do falecido. O verso ameaçava, apimentado, na minha língua. Não foram sete anos; pareceram-me setenta. Não podia dizer. A língua pesava de vontade. Tranquei os dentes. Não lembrava do resto do poema, nem de quem escreveu. Tampouco tinha certeza de que saíra de algum poema – sou lá eu mulher desses desfrutes?
Não era minha obrigação levar as cinzas. Era tarefa para os familiares. Não renderia nota na coluna social. Insinuaram, ameaçaram, obrigaram-me, deram-me o mapa. Nem tão longe que desse para ir de avião, nem tão perto que rendesse um passeio de fim de tarde. Sete horas de viagem me aguardavam até o Morro da Igreja, no fim do mundo à esquerda. Que eu aproveitasse bem a privilegiada paisagem! Encomendaram-me um queijo colonial, desses vendidos em barraquinhas na beira da estrada. Minha cara ficou mais azeda que o queijo. Faria pelo gosto das coisas bem feitas, pelo capricho de levar tudo até o fim.
Ofereceram-me o carro do falecido. Um belo e imundo BMW. Era impossível respirar dentro dele: cheiro de cigarro com poeira e alguma coisa podre. Minhas mãos grudaram no volante. Havia uma gordura viscosa, pegajosa sobre o couro. Nojo. O cheiro de gasolina era um bálsamo na fedentina geral. O ronco potente do motor animou-me.
Abri os vidros. Concentrei-me na aventura: pesar o pé sobre o acelerador. O vento desfazia meu coque e avermelhava minha pele. Aos poucos, nuvens carregadas juntavam-se e ameaçavam a minha estratégia contra o mau cheiro persistente. Pingos de chuva gelados e fortes bateram no meu rosto ao fim de quatro horas de viagem. Minhas bochechas ardiam. Fechei os vidros a contragosto. A podridão deu-me engulhos. O cheiro de pó despertou-me a rinite. Comecei a lacrimejar e, no instinto, levei a mão imunda aos olhos, que arderam. Na minha bolsa, havia uma necessaire com medicamentos, mas o caminho sinuoso não era propício para que eu mexesse nela.
Minha visão turvou. Curvas e cheiro insuportável. Controlava-me para não vomitar. Serra do Doze. Anoitecia. Vidros embaçados. Chovia forte. Deserto. Parei o mais à margem possível. Precisava respirar. Não queria vomitar ali dentro. Desci com minha bolsa, procurando o antialérgico, o colírio e o Plasil. Um caminhão despencava no sentido contrário. Abriu demais a curva. Bateu no BMW, arremessando-o no precipício. Um estouro. Um clarão. O carro explodiu. O caminhão sumiu. Eu assisti a tudo, abobalhada e ensopada. Sobraram o frio, o nariz entupido, o gosto salgado na boca. Podia chorar, ninguém estava vendo. Pavor. Se eu estivesse lá dentro?
Não sabia o que fazer. Sentei-me atrás de uns arbustos. Medo de cobra. Vi a polícia chegar. Mais medo. Culpa. Escondi-me. Fome. Não respirava mais direito, nem pela boca. Não sentia meus pés nem minhas mãos. Hipotermia à vista. Precisava me mexer. Esperei os policiais saírem. Demoraram, desceram barranco, voltaram, foram embora. A chuva cessara. Cerração fechada. Comecei a andar no breu.
Cheguei ao cume. Já amanhecia. Havia umas barraquinhas, daquelas que vendem souvenirs e produtos da região. Caí para dentro de uma delas assim que abriu. A moça olhou-me de cima a baixo, assustada. Trouxe-me, discreta e compreensiva, uma toalha e um café bem quente e doce. Comprei um abrigo horroroso, seco e macio. Nunca a sensação de uma malha sobre a pele arrepiada foi tão consoladora.
Sentei no pequeno restaurante. Pedi um café serrano completo. Precisava recompor-me, pensar. A televisão transmitia as notícias da manhã. “Enfermeira morre em acidente” foi a chamada principal. “Os policiais encontraram o corpo carbonizado dentro da BMW que explodiu após despencar de precipício, na madrugada de hoje, na Serra do Rio do Rastro, na altura do município de Bom Jardim da Serra.” As palavras da repórter fizeram-me morder a língua. Que corpo, se estava viva? Tudo ficou claro. O gosto do meu próprio sangue despertou-me ideias de vingança.
Sete anos de pastor Jacó servia.” Foi o que me veio à mente quando a filha mais velha me entregou a urna com as cinzas do falecido. O verso ameaçava, apimentado, na minha língua. Não foram sete anos; pareceram-me setenta. Não podia dizer. A língua pesava de vontade. Tranquei os dentes. Não lembrava do resto do poema, nem de quem escreveu. Tampouco tinha certeza de que saíra de algum poema – sou lá eu mulher desses desfrutes?
Não era minha obrigação levar as cinzas. Era tarefa para os familiares. Não renderia nota na coluna social. Insinuaram, ameaçaram, obrigaram-me, deram-me o mapa. Nem tão longe que desse para ir de avião, nem tão perto que rendesse um passeio de fim de tarde. Sete horas de viagem me aguardavam até o Morro da Igreja, no fim do mundo à esquerda. Que eu aproveitasse bem a privilegiada paisagem! Encomendaram-me um queijo colonial, desses vendidos em barraquinhas na beira da estrada. Minha cara ficou mais azeda que o queijo. Faria pelo gosto das coisas bem feitas, pelo capricho de levar tudo até o fim.
Ofereceram-me o carro do falecido. Um belo e imundo BMW. Era impossível respirar dentro dele: cheiro de cigarro com poeira e alguma coisa podre. Minhas mãos grudaram no volante. Havia uma gordura viscosa, pegajosa sobre o couro. Nojo. O cheiro de gasolina era um bálsamo na fedentina geral. O ronco potente do motor animou-me.
Abri os vidros. Concentrei-me na aventura: pesar o pé sobre o acelerador. O vento desfazia meu coque e avermelhava minha pele. Aos poucos, nuvens carregadas juntavam-se e ameaçavam a minha estratégia contra o mau cheiro persistente. Pingos de chuva gelados e fortes bateram no meu rosto ao fim de quatro horas de viagem. Minhas bochechas ardiam. Fechei os vidros a contragosto. A podridão deu-me engulhos. O cheiro de pó despertou-me a rinite. Comecei a lacrimejar e, no instinto, levei a mão imunda aos olhos, que arderam. Na minha bolsa, havia uma necessaire com medicamentos, mas o caminho sinuoso não era propício para que eu mexesse nela.
Minha visão turvou. Curvas e cheiro insuportável. Controlava-me para não vomitar. Serra do Doze. Anoitecia. Vidros embaçados. Chovia forte. Deserto. Parei o mais à margem possível. Precisava respirar. Não queria vomitar ali dentro. Desci com minha bolsa, procurando o antialérgico, o colírio e o Plasil. Um caminhão despencava no sentido contrário. Abriu demais a curva. Bateu no BMW, arremessando-o no precipício. Um estouro. Um clarão. O carro explodiu. O caminhão sumiu. Eu assisti a tudo, abobalhada e ensopada. Sobraram o frio, o nariz entupido, o gosto salgado na boca. Podia chorar, ninguém estava vendo. Pavor. Se eu estivesse lá dentro?
Não sabia o que fazer. Sentei-me atrás de uns arbustos. Medo de cobra. Vi a polícia chegar. Mais medo. Culpa. Escondi-me. Fome. Não respirava mais direito, nem pela boca. Não sentia meus pés nem minhas mãos. Hipotermia à vista. Precisava me mexer. Esperei os policiais saírem. Demoraram, desceram barranco, voltaram, foram embora. A chuva cessara. Cerração fechada. Comecei a andar no breu.
Cheguei ao cume. Já amanhecia. Havia umas barraquinhas, daquelas que vendem souvenirs e produtos da região. Caí para dentro de uma delas assim que abriu. A moça olhou-me de cima a baixo, assustada. Trouxe-me, discreta e compreensiva, uma toalha e um café bem quente e doce. Comprei um abrigo horroroso, seco e macio. Nunca a sensação de uma malha sobre a pele arrepiada foi tão consoladora.
Sentei no pequeno restaurante. Pedi um café serrano completo. Precisava recompor-me, pensar. A televisão transmitia as notícias da manhã. “Enfermeira morre em acidente” foi a chamada principal. “Os policiais encontraram o corpo carbonizado dentro da BMW que explodiu após despencar de precipício, na madrugada de hoje, na Serra do Rio do Rastro, na altura do município de Bom Jardim da Serra.” As palavras da repórter fizeram-me morder a língua. Que corpo, se estava viva? Tudo ficou claro. O gosto do meu próprio sangue despertou-me ideias de vingança.
segunda-feira, 17 de agosto de 2009
A sétima filha
Eu havia dado como título a esse texto "Sob o signo de capricórnio", mas essas coisas de horóscopo pegam muito mal. Tinha pensado em "capricórnio" pelas ideias que a palavra desperta, mas achei que não funciona. Depois pensei em "Vingança de Santos Reis", mas daí antecipa o final...
Escrevi esse texto em janeiro de 2009, p/ a seleção p/ a Oficina.
Lá vai...
A sétima filha
Nem se sabe quem ou o que guiava o flamante Aero Willys recém-adquirido pelo Patrão naquelas estradas poeirentas e esburacadas. Seu corpo estava ao volante, mas seus pensamentos enviesados encontravam-se já no seu destino, no casebre esquecido nos ermos da próspera fazenda.
Ele não podia fazer aquilo... Não conseguiria. Servia há anos, décadas, àquela família, mas o que a Patroazinha lhe pedia agora já era demais. Essa ordem ia contra os princípios até de quem não os tem. Pensou em desobedecer. Isso custaria o seu emprego, a sua única fonte de renda, de miserável renda, diga-se de passagem. Mas onde iria arranjar outro naquela idade? Nem para capacho haviam de querer-lhe mais. Pensou em cruzar a fronteira e vender o carro no Paraguai, mandar a metade do dinheiro para a filha continuar o tratamento da neta doente. Com a outra metade, se viraria até recomeçar sua vida. Era fraco demais. Fraco demais para desobedecer. Fraco demais para se sacrificar. Passou-lhe pela cabeça uma vida de foragido. Era velho também demais para viver essas aventuras.
À medida que se aproximava de seu destino, o frio que dominara sua alma contaminava-lhe igualmente o corpo. Adoeceu de morte. Suas mãos, de tão geladas, nem as sentia sob o sol escaldante de janeiro no Rio Grande do Sul. Seis de janeiro. Dia de Santos Reis - lembrou ele. Pois sim. Hoje o dia de santo não vai ter nada. Não se faz isso com uma criança. Não se faz. Sobretudo com aquela menininha loira, tão magrinha, tão bichinho-do-mato. Lembrava da Patroazinha, lá na cidade. Demônio em forma de gente – saiu aos seus. Aqueles olhos verdes, olhos de cobra, nunca o enganaram. Desde que ela era bem pequena, ele presenciou as suas pequenas monstruosidades. Jogar o bolo de aniversário da irmã no chão porque ficou mais bonito que o seu e dizer que foi um acidente. Arrebentar o colar de pérolas da mãe e culpar a empregada. Jogar comida no chão e mandar a filha da empregada comer como um cachorro. Bobagenzinhas que o pai achava vir de uma mocinha espirituosa e criativa.
Chegou à porteira da fazenda, desligou o carro. Titubeou. Não sabia se dava meia-volta. Era o que queria, o que a pouca consciência lhe mandava. Os imperativos da idade e da necessidade faziam-no desgraçado como nunca antes na vida. Deu-se conta. Não fora nada na vida, sua vida fora um nada. Só serviu, serviu, serviu. Serviu para quê? Para mandos e desmandos. Um pau mandado. Nem direito a ter pena. Tremia. Calafrios passavam por seu já debilitado corpo, como se, no torpor das duas da tarde, alguém lhe atirasse uma caneca de água gelada nas costas. Água gelada... Será que um dia ela beberá, terá direito a um belo, suado, gotejado copo de água gelada? Não há sequer energia elétrica naquelas lonjuras da fazenda...
Abriu a porteira com alguma dificuldade, rocurando desculpa para não executar sua tarefa. Torceu para o capataz não estar em casa, para que não houvesse ninguém na casa principal, que não tivesse viva alma que lhe desse um cavalo para seguir até o casebre. No que se decepcionou. Nem bem cruzou a porteira, avistou o capataz. A visão da antessala do inferno. A recepção efusiva e amistosa deu-lhe engulhos, vontade de vomitar. O capataz queria assunto, mas sentia seu corpo mole, aquele misto de frio e de calor lhe faria desmaiar a qualquer momento... O capataz, vendo que não obtinha resposta para suas perguntas, parou de falar por um breve instante. Olhou bem para o conhecido. De alto a baixo. Findado um segundo de estranhamento, perguntou:
- O que foi, homem de Deus? Tá branco como fantasma! Viu assombração?
- Não, foi cobra. E das peçonhentas. Mas não me pergunta mais nada. Arruma um cavalo pr’eu ir até a casinha da Viúva Fridalina.
- Mas tu não foi lá no Natal, levando aquela montoeira de coisas que a filha do Patrão não queria mais? Que vai fazer lá de novo? Não tem medo?
- Medo eu tenho, mas é da miséria. Faz o que eu te pedi, não estou indo lá por gosto meu.
Notando a contrariedade estampada nas rugas da testa e entre os olhos do conhecido, o capataz, desconfiando um desentendimento, logo arrumou um cavalo – e dos bons, o outro era cupincha do Patrão. Não saiu esporeando o animal, seu costume desde menino. Ia a trote manso. Muito manso. Parando. O que não parava era a sua cabeça. Rodava um filme, lembrava dos últimos acontecimentos desde o Natal.
Véspera de Natal, a Patroazinha podre de bêbada. O pai, pela primeira vez na vida, admoestou-a, de forma muito discreta, sobre seus exageros etílicos. Isso foi suficiente para lhe despertar a ira que trazia na alma - velha conhecida dos empregados, da mãe e da irmã, reféns de sua maldade e de seu ardil. Gritava, berrava. Urrava. Não era mais criança. O pai não poderia falar assim com ela. O pai, gentilmente, lembrou. Ela era a sua menininha, com o quarto cheio de bichinhos e de bonecas. A Patroazinha enlouqueceu de vez. Os grandes olhos verdes encheram-se de uma sombra terrível. Não chegava a ser inédita. Voou a seu quarto e – desespero canastrão - jogou todos os animaizinhos de pelúcia e as bonecas pela janela, lembranças de suas viagens solitárias com o papai. Urrava. “Agora vão ver quem é a menininha”, “fooora com esse liiixoooo”. Entre um grito e outro, lá se ia um souvenir da França, outro da Bélgica, mais um da Suécia, dos Estados Unidos. Uma das empregadas, muito espirituosa, brincou, enquanto recolhia os restos do ataque histérico. O trenó do Papai Noel sofreu um acidente e deixou cair todos os brinquedos no gramado da mansão. Ele ajudava, resignado. Não era a primeira vez que era desviado de função para consertar os estragos dos ataques de fúria da excêntrica Patroazinha. Também não lhe custava, não lhe cairia um dedo por isso. Foi quando a patroa deu-lhe a ordem mais surpreendente do mundo: pegar alguns dos brinquedos que restavam inteiros e levar para as crianças da fazenda. Ele não acreditou. A patroa nunca lhe pedira nada - as ordens sempre lhe vinham do Patrão e da Patroazinha. E uma coisa daquelas, dar os brinquedos caros da Patroazinha. Ela não dava nem suas roupas usadas, pois “preferia vê-las no lixo do que no corpo de gentalha”. Antevendo a satisfação das crianças, em pleno dia de Natal, não vacilou e juntou tudo o que pôde – inclusive uma belíssima boneca de louça, a única que restou intacta, apesar da queda do terceiro andar –, reservou um casal de ursinhos para sua neta doente e partiu para a fazenda.
No caminho para a fazenda, pensou que aquele seu sacrifício, sem dormir, sem comer, enfrentando os perigos de dirigir à noite naquelas estradas solitárias, limparia da alma alguns dos “servicinhos” que fez, na juventude, para o pai do Patrão. Regogizava só em pensar na alegria daquelas sete meninas. A Frau Fridalina ficara viúva há seis meses, e a situação, que com o marido já era ruim, beirava o insustentável. Talvez fosse o último Natal com as filhas todas juntas. Ele vivera o suficiente para ver outros casos como aquele. A mulher enviúva e a família se esfacela. Cada um para um lado, num seja-o-que-deus-quiser. E só filha mulher... muito difícil, sem um braço de macho para o arado, para as lides do campo. Era certo que o Patrão as expulsaria de lá. Ainda mais com as histórias que o povo inventava... Sete filhas mulheres consecutivas: a sétima é bruxa. Se algum bicho adoecia na fazenda, alguém viu a Bruxinha, acariciando-o no dia anterior. Se os ovos goravam, se os pintos nasciam fracos, a culpa era da Bruxinha. Se chovia demais, a praga era da bruxinha. Se faltava chuva, era mau agouro da Bruxinha.
Sob o cavalo, no topo de uma coxilha, avistou, ao longe, o casebre. Parou. Fechou os olhos, meio tonto. Lembrou da cena alegre do dia 25 de dezembro. Frau Fridalina distribuindo os brinquedos. Pegou a boneca de louça e olhou-a longamente. Deu-a à sua sétima filha, dizendo, com sua voz doce de grande mãe:
- Filha, esta boneca de louça fica pra ti. Tu és a menor, vais aproveitar mais tempo. E como teus anos estão perto, no dia 11 de janeiro, tuas irmãs não vão se importar que tu fiques com o melhor brinquedo, pois vai ser teu presente de Natal e de aniversário. Tu nunca ganhaste nada. O teu sétimo aniversário vem recheado de sorte.
Aquelas palavras ficavam girando, girando na sua cabeça. Recheado de sorte. Recheado de sorte. Presente de Natal. De aniversário. Tu nunca ganhaste nada. Tu nunca ganhaste nada. Tu nunca ganhaste nada... Saltou do cavalo para vomitar. Um caldo verde. Verde como os olhos da desgraçada da Patroazinha. Essa vagabundazinha bêbada. Sentou-se à sombra, em um capão, nem se importando com o cheiro fétido das fezes da criação que dormia ali. Fechou mais uma vez os olhos. Não queria ver nada. Lembrou-se da notícia aterradora que teve quando voltou, todo feliz, à mansão. A Patroazinha queria a boneca de louça de volta. Guardaria como a única lembrança da infância feliz. Ele teria que voltar, nos próximos dias, à fazenda para buscá-la. A notícia caiu-lhe nos ouvidos e socou-lhe o estômago. O sacrifício que fizera na noite anterior fora em vão. Sentia-se castigado por todo mal feito na vida, culpado por nunca antes fazer um único esforço por ninguém que não ele mesmo. Vai ver que é por isso que a neta nasceu doente – por culpa dele, para seu castigo, a inocente sofria, a filha sofria, a menininha sofrerá... Tudo culpa dele, dele, dele....
Era o que ele, o pau-mandado covarde, o último dos homens, fazia: cumpria ordens. Não havia modo de adiar - ditavam o seu medo e a sua covardia. Já caía a tarde quando chegou ao casebre. Encontrou a Bruxinha em uma felicidade inédita com um sorriso luminoso, brincando em um balanço e segurando a linda boneca de louça. Segurava-a como se um anjo guardasse o Jesus Menino. Seu olhar era todo ternura, todo encantamento. Grudou os olhos no chão. Explicou a situação para Dona Fridalina. Relatou o caso entre pigarros e engasgos. Juntou suas últimas forças para não fraquejar diante da mulher – afinal, era homem. Um nada de homem, mas precisava manter as aparências. A mulher olhou-o resignada. Sequer suspirou. Virou-lhe as costas sem dizer palavra, em um misto de desprezo e decepção.
Dona Fridalina falou, com mansidão habitual, à filha, que se transtornou. Subiu em uma laranjeira, arranhou-se toda. Ali ele, o homem mau, não a seguiria. Ele subiu, caiu duas vezes, os espinhos rasgaram-lhe a camisa e a calça de seu uniforme de motorista. Verteu muito menos sangue do que ele se achava merecedor de perder. Com dificuldade, alcançou a menina, tirando-a de lá... Tirou a boneca da menina à força, arrancando ambos corações juntos...Se ele, pelo menos, tivesse dinheiro para comprar-lhe uma bonequinha simples...Mas era um ferrado na vida... A menininha gritava, grunhidos de dor... Parecia que estava tendo um ataque epilético. Ele queria tirar-se dali, mas não conseguia... Ao fim de alguns intermináveis minutos, a Bruxinha cansou. Parou, estática. Entre os dentes, a menina rangeu:
- Quem dá presente e depois tira, cria rabo.
Ele seguiu seu rumo, mais arrasado do que imaginava que ficaria. Não teve forças para dirigir de volta. Passou a noite na fazenda, socorrido pelo capataz e pela sua mulher, que lhe fez uma canja.
A vida na mansão parecia quase seguir seu ritmo habitual. À boneca, a Patroazinha sequer lançou um olhar com o rabo do olho, ocupadíssima em resolver detalhes de sua festa de aniversário para ali a quatro dias. Ele nem se sentia mais no corpo. Observava, cumpria ordens aqui e ali, andava pela cidade toda atrás de frescuras da dita-cuja. Nada de novo. Discussões sem fim eram banais: os preparativos para a grande festa pelos 21 anos da Patroazinha acirravam um pouco mais os ânimos. A fina flor da sociedade convidada. Vinhos, bebidas caras, comidas de gente enjoada, conjunto instrumental ao vivo, flores, velas – tudo do bom e do melhor. Também nada de anormal. Ele já havia visto arrumações assim incontáveis vezes naquela casa.
No dia da festa, ele acompanhou o que se colocava embaixo de seus olhos. Estava enojado para ter curiosidade. “Criativa, estonteante e arrojada” – como a descreviam as colunas sociais – a Patroazinha bebeu, bebeu e bebeu... Ele a viu subindo para seu refúgio no terceiro andar com um rapaz do tipo almofadinha – certamente mais um para sua coleção de namoradinhos. O que aconteceu depois ele não viu. Contaram.
Dizem que o rapazola achou que a ida ao quarto se tratasse de um convite para aventuras mais ousadas. Ela o esbofeteou – “agora não, que amassa meu vestido” – segredou uma camareira que escutou tudo do corredor. E ele revidou, e revidou – pelos barulhos ouvidos... Na briga, a dona das bonecas de louça caiu pela janela. A barra de seu vestido ficou presa na sacada – todos os convivas que estavam à beira da piscina presenciaram, emudecidos, o nobre cetim rasgando. Esborrachou-se no chão. Caiu de costas. O cadáver em decúbito dorsal. Os grandes olhos verdes esbugalhados, vidrados. A expressão de terror congelou-se para a eternidade orgânica da terra. O sangue verteu e verteu, formando uma mancha no piso de mármore italiano. Não da cabeça, como seria o normal, mas da região do quadril. Um grande rabo de sangue...
Quem dá presente e depois tira...
Escrevi esse texto em janeiro de 2009, p/ a seleção p/ a Oficina.
Lá vai...
A sétima filha
Nem se sabe quem ou o que guiava o flamante Aero Willys recém-adquirido pelo Patrão naquelas estradas poeirentas e esburacadas. Seu corpo estava ao volante, mas seus pensamentos enviesados encontravam-se já no seu destino, no casebre esquecido nos ermos da próspera fazenda.
Ele não podia fazer aquilo... Não conseguiria. Servia há anos, décadas, àquela família, mas o que a Patroazinha lhe pedia agora já era demais. Essa ordem ia contra os princípios até de quem não os tem. Pensou em desobedecer. Isso custaria o seu emprego, a sua única fonte de renda, de miserável renda, diga-se de passagem. Mas onde iria arranjar outro naquela idade? Nem para capacho haviam de querer-lhe mais. Pensou em cruzar a fronteira e vender o carro no Paraguai, mandar a metade do dinheiro para a filha continuar o tratamento da neta doente. Com a outra metade, se viraria até recomeçar sua vida. Era fraco demais. Fraco demais para desobedecer. Fraco demais para se sacrificar. Passou-lhe pela cabeça uma vida de foragido. Era velho também demais para viver essas aventuras.
À medida que se aproximava de seu destino, o frio que dominara sua alma contaminava-lhe igualmente o corpo. Adoeceu de morte. Suas mãos, de tão geladas, nem as sentia sob o sol escaldante de janeiro no Rio Grande do Sul. Seis de janeiro. Dia de Santos Reis - lembrou ele. Pois sim. Hoje o dia de santo não vai ter nada. Não se faz isso com uma criança. Não se faz. Sobretudo com aquela menininha loira, tão magrinha, tão bichinho-do-mato. Lembrava da Patroazinha, lá na cidade. Demônio em forma de gente – saiu aos seus. Aqueles olhos verdes, olhos de cobra, nunca o enganaram. Desde que ela era bem pequena, ele presenciou as suas pequenas monstruosidades. Jogar o bolo de aniversário da irmã no chão porque ficou mais bonito que o seu e dizer que foi um acidente. Arrebentar o colar de pérolas da mãe e culpar a empregada. Jogar comida no chão e mandar a filha da empregada comer como um cachorro. Bobagenzinhas que o pai achava vir de uma mocinha espirituosa e criativa.
Chegou à porteira da fazenda, desligou o carro. Titubeou. Não sabia se dava meia-volta. Era o que queria, o que a pouca consciência lhe mandava. Os imperativos da idade e da necessidade faziam-no desgraçado como nunca antes na vida. Deu-se conta. Não fora nada na vida, sua vida fora um nada. Só serviu, serviu, serviu. Serviu para quê? Para mandos e desmandos. Um pau mandado. Nem direito a ter pena. Tremia. Calafrios passavam por seu já debilitado corpo, como se, no torpor das duas da tarde, alguém lhe atirasse uma caneca de água gelada nas costas. Água gelada... Será que um dia ela beberá, terá direito a um belo, suado, gotejado copo de água gelada? Não há sequer energia elétrica naquelas lonjuras da fazenda...
Abriu a porteira com alguma dificuldade, rocurando desculpa para não executar sua tarefa. Torceu para o capataz não estar em casa, para que não houvesse ninguém na casa principal, que não tivesse viva alma que lhe desse um cavalo para seguir até o casebre. No que se decepcionou. Nem bem cruzou a porteira, avistou o capataz. A visão da antessala do inferno. A recepção efusiva e amistosa deu-lhe engulhos, vontade de vomitar. O capataz queria assunto, mas sentia seu corpo mole, aquele misto de frio e de calor lhe faria desmaiar a qualquer momento... O capataz, vendo que não obtinha resposta para suas perguntas, parou de falar por um breve instante. Olhou bem para o conhecido. De alto a baixo. Findado um segundo de estranhamento, perguntou:
- O que foi, homem de Deus? Tá branco como fantasma! Viu assombração?
- Não, foi cobra. E das peçonhentas. Mas não me pergunta mais nada. Arruma um cavalo pr’eu ir até a casinha da Viúva Fridalina.
- Mas tu não foi lá no Natal, levando aquela montoeira de coisas que a filha do Patrão não queria mais? Que vai fazer lá de novo? Não tem medo?
- Medo eu tenho, mas é da miséria. Faz o que eu te pedi, não estou indo lá por gosto meu.
Notando a contrariedade estampada nas rugas da testa e entre os olhos do conhecido, o capataz, desconfiando um desentendimento, logo arrumou um cavalo – e dos bons, o outro era cupincha do Patrão. Não saiu esporeando o animal, seu costume desde menino. Ia a trote manso. Muito manso. Parando. O que não parava era a sua cabeça. Rodava um filme, lembrava dos últimos acontecimentos desde o Natal.
Véspera de Natal, a Patroazinha podre de bêbada. O pai, pela primeira vez na vida, admoestou-a, de forma muito discreta, sobre seus exageros etílicos. Isso foi suficiente para lhe despertar a ira que trazia na alma - velha conhecida dos empregados, da mãe e da irmã, reféns de sua maldade e de seu ardil. Gritava, berrava. Urrava. Não era mais criança. O pai não poderia falar assim com ela. O pai, gentilmente, lembrou. Ela era a sua menininha, com o quarto cheio de bichinhos e de bonecas. A Patroazinha enlouqueceu de vez. Os grandes olhos verdes encheram-se de uma sombra terrível. Não chegava a ser inédita. Voou a seu quarto e – desespero canastrão - jogou todos os animaizinhos de pelúcia e as bonecas pela janela, lembranças de suas viagens solitárias com o papai. Urrava. “Agora vão ver quem é a menininha”, “fooora com esse liiixoooo”. Entre um grito e outro, lá se ia um souvenir da França, outro da Bélgica, mais um da Suécia, dos Estados Unidos. Uma das empregadas, muito espirituosa, brincou, enquanto recolhia os restos do ataque histérico. O trenó do Papai Noel sofreu um acidente e deixou cair todos os brinquedos no gramado da mansão. Ele ajudava, resignado. Não era a primeira vez que era desviado de função para consertar os estragos dos ataques de fúria da excêntrica Patroazinha. Também não lhe custava, não lhe cairia um dedo por isso. Foi quando a patroa deu-lhe a ordem mais surpreendente do mundo: pegar alguns dos brinquedos que restavam inteiros e levar para as crianças da fazenda. Ele não acreditou. A patroa nunca lhe pedira nada - as ordens sempre lhe vinham do Patrão e da Patroazinha. E uma coisa daquelas, dar os brinquedos caros da Patroazinha. Ela não dava nem suas roupas usadas, pois “preferia vê-las no lixo do que no corpo de gentalha”. Antevendo a satisfação das crianças, em pleno dia de Natal, não vacilou e juntou tudo o que pôde – inclusive uma belíssima boneca de louça, a única que restou intacta, apesar da queda do terceiro andar –, reservou um casal de ursinhos para sua neta doente e partiu para a fazenda.
No caminho para a fazenda, pensou que aquele seu sacrifício, sem dormir, sem comer, enfrentando os perigos de dirigir à noite naquelas estradas solitárias, limparia da alma alguns dos “servicinhos” que fez, na juventude, para o pai do Patrão. Regogizava só em pensar na alegria daquelas sete meninas. A Frau Fridalina ficara viúva há seis meses, e a situação, que com o marido já era ruim, beirava o insustentável. Talvez fosse o último Natal com as filhas todas juntas. Ele vivera o suficiente para ver outros casos como aquele. A mulher enviúva e a família se esfacela. Cada um para um lado, num seja-o-que-deus-quiser. E só filha mulher... muito difícil, sem um braço de macho para o arado, para as lides do campo. Era certo que o Patrão as expulsaria de lá. Ainda mais com as histórias que o povo inventava... Sete filhas mulheres consecutivas: a sétima é bruxa. Se algum bicho adoecia na fazenda, alguém viu a Bruxinha, acariciando-o no dia anterior. Se os ovos goravam, se os pintos nasciam fracos, a culpa era da Bruxinha. Se chovia demais, a praga era da bruxinha. Se faltava chuva, era mau agouro da Bruxinha.
Sob o cavalo, no topo de uma coxilha, avistou, ao longe, o casebre. Parou. Fechou os olhos, meio tonto. Lembrou da cena alegre do dia 25 de dezembro. Frau Fridalina distribuindo os brinquedos. Pegou a boneca de louça e olhou-a longamente. Deu-a à sua sétima filha, dizendo, com sua voz doce de grande mãe:
- Filha, esta boneca de louça fica pra ti. Tu és a menor, vais aproveitar mais tempo. E como teus anos estão perto, no dia 11 de janeiro, tuas irmãs não vão se importar que tu fiques com o melhor brinquedo, pois vai ser teu presente de Natal e de aniversário. Tu nunca ganhaste nada. O teu sétimo aniversário vem recheado de sorte.
Aquelas palavras ficavam girando, girando na sua cabeça. Recheado de sorte. Recheado de sorte. Presente de Natal. De aniversário. Tu nunca ganhaste nada. Tu nunca ganhaste nada. Tu nunca ganhaste nada... Saltou do cavalo para vomitar. Um caldo verde. Verde como os olhos da desgraçada da Patroazinha. Essa vagabundazinha bêbada. Sentou-se à sombra, em um capão, nem se importando com o cheiro fétido das fezes da criação que dormia ali. Fechou mais uma vez os olhos. Não queria ver nada. Lembrou-se da notícia aterradora que teve quando voltou, todo feliz, à mansão. A Patroazinha queria a boneca de louça de volta. Guardaria como a única lembrança da infância feliz. Ele teria que voltar, nos próximos dias, à fazenda para buscá-la. A notícia caiu-lhe nos ouvidos e socou-lhe o estômago. O sacrifício que fizera na noite anterior fora em vão. Sentia-se castigado por todo mal feito na vida, culpado por nunca antes fazer um único esforço por ninguém que não ele mesmo. Vai ver que é por isso que a neta nasceu doente – por culpa dele, para seu castigo, a inocente sofria, a filha sofria, a menininha sofrerá... Tudo culpa dele, dele, dele....
Era o que ele, o pau-mandado covarde, o último dos homens, fazia: cumpria ordens. Não havia modo de adiar - ditavam o seu medo e a sua covardia. Já caía a tarde quando chegou ao casebre. Encontrou a Bruxinha em uma felicidade inédita com um sorriso luminoso, brincando em um balanço e segurando a linda boneca de louça. Segurava-a como se um anjo guardasse o Jesus Menino. Seu olhar era todo ternura, todo encantamento. Grudou os olhos no chão. Explicou a situação para Dona Fridalina. Relatou o caso entre pigarros e engasgos. Juntou suas últimas forças para não fraquejar diante da mulher – afinal, era homem. Um nada de homem, mas precisava manter as aparências. A mulher olhou-o resignada. Sequer suspirou. Virou-lhe as costas sem dizer palavra, em um misto de desprezo e decepção.
Dona Fridalina falou, com mansidão habitual, à filha, que se transtornou. Subiu em uma laranjeira, arranhou-se toda. Ali ele, o homem mau, não a seguiria. Ele subiu, caiu duas vezes, os espinhos rasgaram-lhe a camisa e a calça de seu uniforme de motorista. Verteu muito menos sangue do que ele se achava merecedor de perder. Com dificuldade, alcançou a menina, tirando-a de lá... Tirou a boneca da menina à força, arrancando ambos corações juntos...Se ele, pelo menos, tivesse dinheiro para comprar-lhe uma bonequinha simples...Mas era um ferrado na vida... A menininha gritava, grunhidos de dor... Parecia que estava tendo um ataque epilético. Ele queria tirar-se dali, mas não conseguia... Ao fim de alguns intermináveis minutos, a Bruxinha cansou. Parou, estática. Entre os dentes, a menina rangeu:
- Quem dá presente e depois tira, cria rabo.
Ele seguiu seu rumo, mais arrasado do que imaginava que ficaria. Não teve forças para dirigir de volta. Passou a noite na fazenda, socorrido pelo capataz e pela sua mulher, que lhe fez uma canja.
A vida na mansão parecia quase seguir seu ritmo habitual. À boneca, a Patroazinha sequer lançou um olhar com o rabo do olho, ocupadíssima em resolver detalhes de sua festa de aniversário para ali a quatro dias. Ele nem se sentia mais no corpo. Observava, cumpria ordens aqui e ali, andava pela cidade toda atrás de frescuras da dita-cuja. Nada de novo. Discussões sem fim eram banais: os preparativos para a grande festa pelos 21 anos da Patroazinha acirravam um pouco mais os ânimos. A fina flor da sociedade convidada. Vinhos, bebidas caras, comidas de gente enjoada, conjunto instrumental ao vivo, flores, velas – tudo do bom e do melhor. Também nada de anormal. Ele já havia visto arrumações assim incontáveis vezes naquela casa.
No dia da festa, ele acompanhou o que se colocava embaixo de seus olhos. Estava enojado para ter curiosidade. “Criativa, estonteante e arrojada” – como a descreviam as colunas sociais – a Patroazinha bebeu, bebeu e bebeu... Ele a viu subindo para seu refúgio no terceiro andar com um rapaz do tipo almofadinha – certamente mais um para sua coleção de namoradinhos. O que aconteceu depois ele não viu. Contaram.
Dizem que o rapazola achou que a ida ao quarto se tratasse de um convite para aventuras mais ousadas. Ela o esbofeteou – “agora não, que amassa meu vestido” – segredou uma camareira que escutou tudo do corredor. E ele revidou, e revidou – pelos barulhos ouvidos... Na briga, a dona das bonecas de louça caiu pela janela. A barra de seu vestido ficou presa na sacada – todos os convivas que estavam à beira da piscina presenciaram, emudecidos, o nobre cetim rasgando. Esborrachou-se no chão. Caiu de costas. O cadáver em decúbito dorsal. Os grandes olhos verdes esbugalhados, vidrados. A expressão de terror congelou-se para a eternidade orgânica da terra. O sangue verteu e verteu, formando uma mancha no piso de mármore italiano. Não da cabeça, como seria o normal, mas da região do quadril. Um grande rabo de sangue...
Quem dá presente e depois tira...
terça-feira, 11 de agosto de 2009
Causo de velório
Causo de velório
Era uma gente festeira. Tão animada que os seus velórios eram muito mais animados do que as festas de muitas outras famílias. Sabiam levar a vida. Essa sabedoria – comprovada pela autoridade subjetiva das memórias – fazia com que as situações inusitadas fluíssem naturalmente, sem esforço algum.
Não foi diferente daquela vez.
Os seis irmãos varões fizeram um pacto. O avalista: delírios etílicos provocados por uma mistura sem-vergonha de cerveja, vinho e uísque – cachaça não, que é coisa de “brasilione”. Não fariam mais fiasco algum em casamentos, batizados, aniversários, velórios, ou qualquer outro tipo de festa. Nem sozinhos, nem em conjunto. Queriam um resultado prático. Ninguém mais poderia abrir sua boca suja para malfalar os irmãozinhos. Nenhum pêlo duro poderia abrir sua boca desdentada nem apontar seu dedo de unha suja para falar logo deles. Eram bons, mas tinham seu orgulho.
Desta vez, festa era um enterro. Enterro de tio velho, distante, daqueles que, quando os irmãos eram piás, roubaram a herança do pai falecido precocemente. “Até viveu demais, o animal” era a frase que não cansava. Combinaram-se, falaram-se por telefone e vestiram seus melhores ternos. O calor insinuava-se naquele início de manhã. “Só o que falta é ter vento norte, daí não vou agüentar a gravata” – repetia Germano, o mais novo e mais gordo, ameaçando mortalmente o pacto.
A viagem de carro não era muito longa, coisa de uma hora e meia, uma hora e quarenta e cinco no máximo. Precisavam ir nos melhores carros. Para fazer bonito. Para fazer bela figura aos parentes. Para honrar a memória da mãe. Para mostrar, enfim, que, mesmo que eles quisessem tirar os filhos da viúva, que lhe tivessem surrupiado as terras, eles eram os mais fortes. Os mais unidos. Os mais bem-vestidos. Os mais bem-sucedidos. Os melhores, enfim.
Marcaram de se encontrar na casa de Helmuth, o irmão mais velho. Claro. Sempre há que se respeitar a hierarquia. Chegaram mais ou menos ao mesmo tempo. Começaram as combinações. Helmuth, tomando para si ares de patriarca, foi logo sentenciando ao mais novo:
- Germano, nem uma palavra sobre a tua filha, grávida aos 15 anos sabe-se-lá-de-quem.
- E tu, nem uma palavra sobre a quase falência da tua firma. – Retrucou o avô precoce.
Foi quando o segundo mais novo, Frederico, atalhou:
- Pelo amor de Deus, gente, bem capaz que eles já não sabem disso tudo e mais ainda. Nós não sabemos os podres deles? Então? É a mesma coisa... A fofoqueira da nossa prima Dulce faz o serviço do expresso-leva-e-traz.
- E tudo distorcido, aumentado. Garanto! Como dois e dois são quatro. – Contribuiu raivosamente o segundo mais velho, Ernest.
- Vamos fazer de conta que é tudo um mar de rosas, como eles também fazem. Vamos mostrar que aprendemos o jogo sujo deles! – Conclamou, entusiasmado, Frederico.
Herbert, o terceiro, ajeitou-se em um banquinho e falou, com ares de deboche.
- Vocês estão se esquecendo do melhor, só pensando nos podres, nos problemas. Já pensou que beleza ver a cara daquele velho filha-da-puta deitado naquele caixão? Eu quero segurar a alça, tenho direito, já que ele queria me adotar quando éramos pequenos.
Ninguém discordou. Ao contrário, ensaiaram uma risada, que só o mais novo não engoliu.
- E viva a cuca-com-lingüiça! – comemorou Ruben, o quarto
- Aquela gente é tão sovina que é bem capaz de não ter. – bem observou Helmuth.
- Daí a gente compra, ué! – retrucou Frederico.
Partiram, em meio às risadas, os seis alegres irmãos. Dois em cada carro selecionado em um acordo tácito. Quando lá chegaram, como não acharam estacionamento bem na frente do local do velório, deram algumas boas voltas na quadra, para que o máximo de parentes possível pudesse vê-los em seus possantes. Não que fizessem isso de caso pensado, mas, no fundo, era isso: a necessidade de mostrar-se.
Ao entrarem no local do velório, mal disfarçando o sorriso no rosto, já avistaram a prima fofoqueira sentada em um dos lugares habitualmente reservados aos familiares mais próximos. Como sempre, cochichando, sibilando, serpenteando. Os olhos verdes rasgados não negavam a maledicência arraigada nos recônditos de sua alma – se é que tinha uma. Olhou os irmãos de cima a baixo, como era o seu costume. Entretanto, demorou seu olhar sobre Germano, esboçando um sorrisinho de canto de boca. O irmão mais novo notou – quem não haveria de notar? – e o úmido e mormacento calor da tarde subitamente começou a incomodar-lhe. Pensou em afrouxar a gravata. Helmuth o espancaria se fizesse isso.
Os seis irmãos, ato ensaiado, fizeram figura. Bons luteranos. Posicionaram-se em volta do caixão, parados como soldados em posição de sentido. Cada um flexionou seu pescoço e fingiu uma oração. O silêncio. Cochichos das velhas carpideiras.“Os filhos da Frau Ida”. “Todos os irmãos juntos”. “Estes são sobrinhos do finado”. “Gente de bem”. “Agora estão bem de vida”. “São muito animados”. “Sempre fazem um fiasco.”
Helmuth nada ouviu. Contemplava a cara do defunto. Há tantos anos esperava por essa cena, há tanto tempo produzira e reproduzira essa imagem em sua mente. Agora sequer parecia verdade. Era muito bom para ser verdade. Só não o matara na época porque era um gurizote franzino. Depois não o fez por falta de coragem. De um bom plano para não ser descoberto. Não valeria a pena ser preso por causa desse traste. Nem pensava que não valeria a pena sujar-se por causa dele. Matá-lo não seria uma sujeira. Seria exorcizar um demônio, livrar o mundo de uma praga.
Encenada a oração, Helmuth cumpriu o protocolo de cumprimentar a viúva. Os irmãos o seguiram. Não se sentaram lado a lado conforme o combinado tácito, pois a quantidade de carpideiras contratadas era bastante significativa, lotando o espaço. Do lugar onde se abancou, o irmão mais velho podia observar bem a viúva sem que ela percebesse. Como estava acabada! A imagem que tinha dela era a de uma mulher muito bonita – beleza que contribuiu para uma certa vingança providenciada pelo destino: os chifres e mais chifres que ela colocou no falecido, galhadas e mais galhadas. Cada caso da agora viúva, tão logo vinha a público, era comemorado pela família da Frau Ida. Reuniam-se para comemorar e brindar à saúde do amante.
Ao mesmo tempo em que a infidelidade concedia uma certa simpatia à viúva, Helmuth não esquecera que ela nada fizera para defendê-los. Era viva a lembrança do episódio que sucedeu ao enterro de seu pai. Todos já estavam em casa e a Mãe, entre chorosa e forte, redistribuía as tarefas cotidianas entre os filhos. Teriam que substituir o braço forte do pai nas lides com os animais e com as roças. Caía a tarde: era preciso recolher os bois, ordenhar as vacas. A vida precisava continuar. Ela trazia um filho em seu ventre – Germano – e havia outro no colo – Frederico. “Todos vão continuar comendo, então temos que dar um jeito”, foi o que a mãe falou. Mensagem que Helmuth, no amadurecimento precoce de seus treze anos, entendeu perfeitamente. Quando Frau Ida avistou o cunhado chegando de carroça, junto com a jovem noiva e o futuro sogro, alegrou-se com o pensamento que eles vieram ajudar. No que se enganou. O cunhado veio sério, com uns papéis. Disse que as terras eram dele, e o futuro sogro, que era advogado, soltou umas palavras que nem ele, nem a mãe entenderam, mas que pareciam graves. A família teria trinta dias para deixar as terras. Como eram parentes, ele tinha “consideração” e não os mandaria logo sair dali. Seria melhor que os outros tios pegassem os mais novos para criar – o Frederico era tão vistoso, tão forte, quem não queria um guri assim? O Herbert, que já saíra das fraldas, ele mesmo poderia criar, casaria em breve. O abraço da mãe. “Nos meus filhos ninguém mete a mão”. “Podem me roubar terras, mas não a dignidade.” A mãe pegou uma chaleira de água quente que estava sobre o fogão a lenha e ameaçou de jogar no cunhado. Helmuth gritou para Ernest trazer a foice, que o fez prontamente. Enxotaram os ladrõezinhos de merda. Mas a “lei” estava com eles. Nos trinta dias seguintes, houve uma romaria de parentes. Propunham soluções mirabolantes para o caso. Todas elas passavam pela fragmentação da família, o que a Frau Ida, valente, não aceitou. Helmuth também tinha bem vivo na memória o momento em que a mãe decidiu. Se não poderiam trabalhar na terra, tirariam seu sustento da indústria. Juntou seus caquinhos, as trouxas e a prole. Foram para Novo Hamburgo, onde o calçado prometia uma vida sem fome e até com certos luxos, como água encanada e energia elétrica. Tempos difíceis, não impossíveis.
Uma voz estridente interrompeu a inevitável e dolorosa digressão de Helmuth. Era a prima Dulce fofoqueira querendo conversa. Não poderia mandá-la pastar, sob pena de ter coisas terríveis inventadas a seu respeito. Cumprimentou-a, educado e formal. Ela não se conteve:
- Uma vizinha minha que trabalha na tua firma disse que vocês estão mal das pernas, é verdade?
- Mas olha aqui as minhas pernas, firmes e fortes! – Tentou desviar Helmuth, forçando um sorriso.
- Ô, primo, sempre brincando...
- Para que chorar se a morte é certa?
- Nem me fale. Coitado do tio, homem tão bom... – disse, provocativa e peçonhenta.
- É mesmo! – Disse sem convicção. Longe dele entrar nesses assuntos logo com quem.
Germano, outro que não ouviu os comentários das velhas durante a pseudo-oração-show dos irmãos, estava com medo de Dulce. Ai dela se tocasse no nome de sua filha grávida. Não confiava no seu autocontrole. O fiasco, olha o fiasco. O dedo de Helmuth em riste. Dulce veio em sua direção, ele levantou-se. Já era tarde demais. Ela o interceptou no caminho:
- Primo Germano, quanto tempo. Cada vez mais barrigudo! As coisas vão bem, né? Ou nem tanto. Como está a Evinha, tua filha?
Frederico, que fora encarregado por Helmuth de vigiar o irmão mais novo, veio em socorro a Germano:
- Tu não sabias que eu vou ser tio-avô? Estou muito orgulhoso. E já disse que, se eu não for o padrinho, fico de mal. Falando nas gurias, a tua é que está bonitona, né? O meu filho me mostrou umas fotos dela na Internet, mas que belezura. Aliás, até as tenho no meu laptop lá no carro. Queres que eu busque?
A mulher corou e não deu resposta. Germano ficou boquiaberto com o feito do irmão: fazer a fofoqueira calar e bater em retirada quase chorando.
- Que história de fotos na Internet é essa?
- Fotinhos pe-la-da. Uma biscate. Depois te mostro.
- Não, nem quero ver isso. Já me salvaram de boa. Como tu não contou isso antes?
- E estragar a surpresa? – Disse, segurando-se para não ter uma ataque de risos e furar com o combinado.
O velório transcorreu sem maiores incidentes. Nada de cuca, nada de lingüiça. Muito menos cachaça, mas isso não fazia falta os irmãos, que se recusavam a beber bebida de “rafuagem”. Uma torrencial chuva de verão impediu que Herbert e Ruben fossem providenciar os ingredientes do tradicional cardápio desse tipo de festa. Frederico só esperava que não chovesse também na hora do enterro, para não estragar o terno e o sapato novos. Helmuth estava feliz: o pulha morto, os irmãos comportando-se bem, a prima fora de combate e mal-falada por todos.
Quando o Pastor chegou, o irmão mais velho suspirou aliviado: não haveria mais tempo para fiascar. Era só encomendar a alma ao diabo, dar comida aos vermes e pronto. Acabado. Enquanto o Pastor falava, o coral cantava, as mentiras multiplicavam-se e pantomima realizava-se, a chuva parou. O féretro saiu, lento como sempre, sob um sol tímido, que fugia das nuvens. Herbert conseguiu seu lugar para segurar uma das alças do caixão. Fora oferecido a Helmuth. O mais velho, alegando idade, declinou do convite em favor do irmão, que “era mais forte”. O sol sobre a terra úmida. O mormaço insuportável. O cheiro de velas.
No antigo cemitério lamacento, grandes lápides com inscrições em alemão registravam valores atemporais: valorosa mãe, prestimoso irmão, amoroso pai. Helmuth só não ria do cinismo dos escritos porque estaria traindo um pacto que ele mesmo propôs e impôs. Exigiu que Germano ficasse ao seu lado enquanto preparavam o esquife para descer ao seu devido lugar e o Pastor falava as últimas palavras. A umidade, a tensão dos últimos momentos, o calor, o suor, o cansaço fizeram com que os dois irmãos ajeitassem seus volumosos corpos. Escoraram-se em uma das velhas lápides. “Terra a terra, pó a pó”. A conhecida cantilena quebrava o silêncio. Ouviam-se respirações ofegantes pela curta caminhada.Todos se distraíam em outros pensamentos. Ouviu-se um estrondo medonho. Olhou-se em volta, várias carpideiras ensaiaram um desmaio, mas o chão estava molhado demais para deixarem-se cair. O pastor, em uma posição mais elevada, viu dois gordos pares de pernas para o ar. Estava tentando engolir o riso, com o pescoço grosso, as veias saltavam e a cara arroxeava-se por prender o ar.
A lápide em que o mais velho e o mais novo escoraram-se caiu, levando os dois ao chão. Quando o Pastor irrompeu em risadas, ninguém mais se conteve: riram-se todos, da viúva à prima, do irmão mais novo ao mais velho. As carpideiras entreolharam-se e substituíram o choro por uma convulsão de risos. Uma criança arrancou uma flor de uma coroa e a jogou em outra gritando “É guerra”. O que se seguiu foi uma “batalha floral”. Quem não alcançava as flores, jogava bolinhas de barro. Dulce era o lavo preferido, especialmente das outras velhas. A chuva, mais uma vez, veio com toda a força, providencial, espantando todos do cemitério. Saíram com o corpo lavado pela água e a alma pelas risadas.
Ninguém teve coragem de levantar seu dedo sujo nem de abrir sua boca desdentada.
Era uma gente festeira. Tão animada que os seus velórios eram muito mais animados do que as festas de muitas outras famílias. Sabiam levar a vida. Essa sabedoria – comprovada pela autoridade subjetiva das memórias – fazia com que as situações inusitadas fluíssem naturalmente, sem esforço algum.
Não foi diferente daquela vez.
Os seis irmãos varões fizeram um pacto. O avalista: delírios etílicos provocados por uma mistura sem-vergonha de cerveja, vinho e uísque – cachaça não, que é coisa de “brasilione”. Não fariam mais fiasco algum em casamentos, batizados, aniversários, velórios, ou qualquer outro tipo de festa. Nem sozinhos, nem em conjunto. Queriam um resultado prático. Ninguém mais poderia abrir sua boca suja para malfalar os irmãozinhos. Nenhum pêlo duro poderia abrir sua boca desdentada nem apontar seu dedo de unha suja para falar logo deles. Eram bons, mas tinham seu orgulho.
Desta vez, festa era um enterro. Enterro de tio velho, distante, daqueles que, quando os irmãos eram piás, roubaram a herança do pai falecido precocemente. “Até viveu demais, o animal” era a frase que não cansava. Combinaram-se, falaram-se por telefone e vestiram seus melhores ternos. O calor insinuava-se naquele início de manhã. “Só o que falta é ter vento norte, daí não vou agüentar a gravata” – repetia Germano, o mais novo e mais gordo, ameaçando mortalmente o pacto.
A viagem de carro não era muito longa, coisa de uma hora e meia, uma hora e quarenta e cinco no máximo. Precisavam ir nos melhores carros. Para fazer bonito. Para fazer bela figura aos parentes. Para honrar a memória da mãe. Para mostrar, enfim, que, mesmo que eles quisessem tirar os filhos da viúva, que lhe tivessem surrupiado as terras, eles eram os mais fortes. Os mais unidos. Os mais bem-vestidos. Os mais bem-sucedidos. Os melhores, enfim.
Marcaram de se encontrar na casa de Helmuth, o irmão mais velho. Claro. Sempre há que se respeitar a hierarquia. Chegaram mais ou menos ao mesmo tempo. Começaram as combinações. Helmuth, tomando para si ares de patriarca, foi logo sentenciando ao mais novo:
- Germano, nem uma palavra sobre a tua filha, grávida aos 15 anos sabe-se-lá-de-quem.
- E tu, nem uma palavra sobre a quase falência da tua firma. – Retrucou o avô precoce.
Foi quando o segundo mais novo, Frederico, atalhou:
- Pelo amor de Deus, gente, bem capaz que eles já não sabem disso tudo e mais ainda. Nós não sabemos os podres deles? Então? É a mesma coisa... A fofoqueira da nossa prima Dulce faz o serviço do expresso-leva-e-traz.
- E tudo distorcido, aumentado. Garanto! Como dois e dois são quatro. – Contribuiu raivosamente o segundo mais velho, Ernest.
- Vamos fazer de conta que é tudo um mar de rosas, como eles também fazem. Vamos mostrar que aprendemos o jogo sujo deles! – Conclamou, entusiasmado, Frederico.
Herbert, o terceiro, ajeitou-se em um banquinho e falou, com ares de deboche.
- Vocês estão se esquecendo do melhor, só pensando nos podres, nos problemas. Já pensou que beleza ver a cara daquele velho filha-da-puta deitado naquele caixão? Eu quero segurar a alça, tenho direito, já que ele queria me adotar quando éramos pequenos.
Ninguém discordou. Ao contrário, ensaiaram uma risada, que só o mais novo não engoliu.
- E viva a cuca-com-lingüiça! – comemorou Ruben, o quarto
- Aquela gente é tão sovina que é bem capaz de não ter. – bem observou Helmuth.
- Daí a gente compra, ué! – retrucou Frederico.
Partiram, em meio às risadas, os seis alegres irmãos. Dois em cada carro selecionado em um acordo tácito. Quando lá chegaram, como não acharam estacionamento bem na frente do local do velório, deram algumas boas voltas na quadra, para que o máximo de parentes possível pudesse vê-los em seus possantes. Não que fizessem isso de caso pensado, mas, no fundo, era isso: a necessidade de mostrar-se.
Ao entrarem no local do velório, mal disfarçando o sorriso no rosto, já avistaram a prima fofoqueira sentada em um dos lugares habitualmente reservados aos familiares mais próximos. Como sempre, cochichando, sibilando, serpenteando. Os olhos verdes rasgados não negavam a maledicência arraigada nos recônditos de sua alma – se é que tinha uma. Olhou os irmãos de cima a baixo, como era o seu costume. Entretanto, demorou seu olhar sobre Germano, esboçando um sorrisinho de canto de boca. O irmão mais novo notou – quem não haveria de notar? – e o úmido e mormacento calor da tarde subitamente começou a incomodar-lhe. Pensou em afrouxar a gravata. Helmuth o espancaria se fizesse isso.
Os seis irmãos, ato ensaiado, fizeram figura. Bons luteranos. Posicionaram-se em volta do caixão, parados como soldados em posição de sentido. Cada um flexionou seu pescoço e fingiu uma oração. O silêncio. Cochichos das velhas carpideiras.“Os filhos da Frau Ida”. “Todos os irmãos juntos”. “Estes são sobrinhos do finado”. “Gente de bem”. “Agora estão bem de vida”. “São muito animados”. “Sempre fazem um fiasco.”
Helmuth nada ouviu. Contemplava a cara do defunto. Há tantos anos esperava por essa cena, há tanto tempo produzira e reproduzira essa imagem em sua mente. Agora sequer parecia verdade. Era muito bom para ser verdade. Só não o matara na época porque era um gurizote franzino. Depois não o fez por falta de coragem. De um bom plano para não ser descoberto. Não valeria a pena ser preso por causa desse traste. Nem pensava que não valeria a pena sujar-se por causa dele. Matá-lo não seria uma sujeira. Seria exorcizar um demônio, livrar o mundo de uma praga.
Encenada a oração, Helmuth cumpriu o protocolo de cumprimentar a viúva. Os irmãos o seguiram. Não se sentaram lado a lado conforme o combinado tácito, pois a quantidade de carpideiras contratadas era bastante significativa, lotando o espaço. Do lugar onde se abancou, o irmão mais velho podia observar bem a viúva sem que ela percebesse. Como estava acabada! A imagem que tinha dela era a de uma mulher muito bonita – beleza que contribuiu para uma certa vingança providenciada pelo destino: os chifres e mais chifres que ela colocou no falecido, galhadas e mais galhadas. Cada caso da agora viúva, tão logo vinha a público, era comemorado pela família da Frau Ida. Reuniam-se para comemorar e brindar à saúde do amante.
Ao mesmo tempo em que a infidelidade concedia uma certa simpatia à viúva, Helmuth não esquecera que ela nada fizera para defendê-los. Era viva a lembrança do episódio que sucedeu ao enterro de seu pai. Todos já estavam em casa e a Mãe, entre chorosa e forte, redistribuía as tarefas cotidianas entre os filhos. Teriam que substituir o braço forte do pai nas lides com os animais e com as roças. Caía a tarde: era preciso recolher os bois, ordenhar as vacas. A vida precisava continuar. Ela trazia um filho em seu ventre – Germano – e havia outro no colo – Frederico. “Todos vão continuar comendo, então temos que dar um jeito”, foi o que a mãe falou. Mensagem que Helmuth, no amadurecimento precoce de seus treze anos, entendeu perfeitamente. Quando Frau Ida avistou o cunhado chegando de carroça, junto com a jovem noiva e o futuro sogro, alegrou-se com o pensamento que eles vieram ajudar. No que se enganou. O cunhado veio sério, com uns papéis. Disse que as terras eram dele, e o futuro sogro, que era advogado, soltou umas palavras que nem ele, nem a mãe entenderam, mas que pareciam graves. A família teria trinta dias para deixar as terras. Como eram parentes, ele tinha “consideração” e não os mandaria logo sair dali. Seria melhor que os outros tios pegassem os mais novos para criar – o Frederico era tão vistoso, tão forte, quem não queria um guri assim? O Herbert, que já saíra das fraldas, ele mesmo poderia criar, casaria em breve. O abraço da mãe. “Nos meus filhos ninguém mete a mão”. “Podem me roubar terras, mas não a dignidade.” A mãe pegou uma chaleira de água quente que estava sobre o fogão a lenha e ameaçou de jogar no cunhado. Helmuth gritou para Ernest trazer a foice, que o fez prontamente. Enxotaram os ladrõezinhos de merda. Mas a “lei” estava com eles. Nos trinta dias seguintes, houve uma romaria de parentes. Propunham soluções mirabolantes para o caso. Todas elas passavam pela fragmentação da família, o que a Frau Ida, valente, não aceitou. Helmuth também tinha bem vivo na memória o momento em que a mãe decidiu. Se não poderiam trabalhar na terra, tirariam seu sustento da indústria. Juntou seus caquinhos, as trouxas e a prole. Foram para Novo Hamburgo, onde o calçado prometia uma vida sem fome e até com certos luxos, como água encanada e energia elétrica. Tempos difíceis, não impossíveis.
Uma voz estridente interrompeu a inevitável e dolorosa digressão de Helmuth. Era a prima Dulce fofoqueira querendo conversa. Não poderia mandá-la pastar, sob pena de ter coisas terríveis inventadas a seu respeito. Cumprimentou-a, educado e formal. Ela não se conteve:
- Uma vizinha minha que trabalha na tua firma disse que vocês estão mal das pernas, é verdade?
- Mas olha aqui as minhas pernas, firmes e fortes! – Tentou desviar Helmuth, forçando um sorriso.
- Ô, primo, sempre brincando...
- Para que chorar se a morte é certa?
- Nem me fale. Coitado do tio, homem tão bom... – disse, provocativa e peçonhenta.
- É mesmo! – Disse sem convicção. Longe dele entrar nesses assuntos logo com quem.
Germano, outro que não ouviu os comentários das velhas durante a pseudo-oração-show dos irmãos, estava com medo de Dulce. Ai dela se tocasse no nome de sua filha grávida. Não confiava no seu autocontrole. O fiasco, olha o fiasco. O dedo de Helmuth em riste. Dulce veio em sua direção, ele levantou-se. Já era tarde demais. Ela o interceptou no caminho:
- Primo Germano, quanto tempo. Cada vez mais barrigudo! As coisas vão bem, né? Ou nem tanto. Como está a Evinha, tua filha?
Frederico, que fora encarregado por Helmuth de vigiar o irmão mais novo, veio em socorro a Germano:
- Tu não sabias que eu vou ser tio-avô? Estou muito orgulhoso. E já disse que, se eu não for o padrinho, fico de mal. Falando nas gurias, a tua é que está bonitona, né? O meu filho me mostrou umas fotos dela na Internet, mas que belezura. Aliás, até as tenho no meu laptop lá no carro. Queres que eu busque?
A mulher corou e não deu resposta. Germano ficou boquiaberto com o feito do irmão: fazer a fofoqueira calar e bater em retirada quase chorando.
- Que história de fotos na Internet é essa?
- Fotinhos pe-la-da. Uma biscate. Depois te mostro.
- Não, nem quero ver isso. Já me salvaram de boa. Como tu não contou isso antes?
- E estragar a surpresa? – Disse, segurando-se para não ter uma ataque de risos e furar com o combinado.
O velório transcorreu sem maiores incidentes. Nada de cuca, nada de lingüiça. Muito menos cachaça, mas isso não fazia falta os irmãos, que se recusavam a beber bebida de “rafuagem”. Uma torrencial chuva de verão impediu que Herbert e Ruben fossem providenciar os ingredientes do tradicional cardápio desse tipo de festa. Frederico só esperava que não chovesse também na hora do enterro, para não estragar o terno e o sapato novos. Helmuth estava feliz: o pulha morto, os irmãos comportando-se bem, a prima fora de combate e mal-falada por todos.
Quando o Pastor chegou, o irmão mais velho suspirou aliviado: não haveria mais tempo para fiascar. Era só encomendar a alma ao diabo, dar comida aos vermes e pronto. Acabado. Enquanto o Pastor falava, o coral cantava, as mentiras multiplicavam-se e pantomima realizava-se, a chuva parou. O féretro saiu, lento como sempre, sob um sol tímido, que fugia das nuvens. Herbert conseguiu seu lugar para segurar uma das alças do caixão. Fora oferecido a Helmuth. O mais velho, alegando idade, declinou do convite em favor do irmão, que “era mais forte”. O sol sobre a terra úmida. O mormaço insuportável. O cheiro de velas.
No antigo cemitério lamacento, grandes lápides com inscrições em alemão registravam valores atemporais: valorosa mãe, prestimoso irmão, amoroso pai. Helmuth só não ria do cinismo dos escritos porque estaria traindo um pacto que ele mesmo propôs e impôs. Exigiu que Germano ficasse ao seu lado enquanto preparavam o esquife para descer ao seu devido lugar e o Pastor falava as últimas palavras. A umidade, a tensão dos últimos momentos, o calor, o suor, o cansaço fizeram com que os dois irmãos ajeitassem seus volumosos corpos. Escoraram-se em uma das velhas lápides. “Terra a terra, pó a pó”. A conhecida cantilena quebrava o silêncio. Ouviam-se respirações ofegantes pela curta caminhada.Todos se distraíam em outros pensamentos. Ouviu-se um estrondo medonho. Olhou-se em volta, várias carpideiras ensaiaram um desmaio, mas o chão estava molhado demais para deixarem-se cair. O pastor, em uma posição mais elevada, viu dois gordos pares de pernas para o ar. Estava tentando engolir o riso, com o pescoço grosso, as veias saltavam e a cara arroxeava-se por prender o ar.
A lápide em que o mais velho e o mais novo escoraram-se caiu, levando os dois ao chão. Quando o Pastor irrompeu em risadas, ninguém mais se conteve: riram-se todos, da viúva à prima, do irmão mais novo ao mais velho. As carpideiras entreolharam-se e substituíram o choro por uma convulsão de risos. Uma criança arrancou uma flor de uma coroa e a jogou em outra gritando “É guerra”. O que se seguiu foi uma “batalha floral”. Quem não alcançava as flores, jogava bolinhas de barro. Dulce era o lavo preferido, especialmente das outras velhas. A chuva, mais uma vez, veio com toda a força, providencial, espantando todos do cemitério. Saíram com o corpo lavado pela água e a alma pelas risadas.
Ninguém teve coragem de levantar seu dedo sujo nem de abrir sua boca desdentada.
Tentativas, ensaios
Aquele quarto vazio fora o território de sua infância. Nas paredes rachadas, o tom rosa desbotado denunciava ancestralidade feminina. O barulho do salto de seus sapatos reverberava. A escuridão e o cheiro de mofo fizeram-na abrir a janela.
Sentou-se no vão da janela. Na parede a sua frente, havia alguns buracos, bem onde ficavam as prateleiras com suas bonecas. Na mais alta, os ursinhos e as bonecas europeias, mandadas por uma tia-avó desconhecida todo Natal e todo aniversário. Na intermediária, ficavam a Suzi, a Amiguinha e outras da Estrela. Na mais baixa, as sobreviventes de guerra: sem cabeça, com cabelos cortados, sem perna, sem olhinhos... Os outros furos deveriam ser dos quadros: sua foto de bebê em seis poses, uma reprodução de pintura do anjo-da-guarda.
No parquê apodrecido aqui e ali, nem sombra de cera ou do brilho antigo. Havia quatro grandes manchas retangulares. Uma delas era a marca da sua estante. A coleção do Lobato, o Tesouro da Juventude. Em uma portinha, escondidos os gibis do Mickey e do Pato Donald. O álbum de figurinhas incompleto. Em outra porta, os LPs coloridos: narração das fábulas de La Fontaine e dos contos de Perrault. O toca-discos cor de laranja.
Outra marca era a de seu guarda-roupa. Tudo muito bem dobrado. Cheiro de roupa seca ao sol. Cheiro de saches de cravo-da-índia, para não pegar traça. Nos cabides, vestidos estilo marinheiro contrastavam com as batas floreadas e moderninhas. As calças boca-de-sino e pata-de-elefante, feitas sob medida pela costureira da esquina, deixavam-na “uma mo-ci-nha!”.
A terceira marca era a da cômoda. Sobre ela, uma caixinha de música dourada tocava Lara’s theme, coreografada por uma bailarina de plástico em eterno pliêt. Cada gaveta guardava um tipo de peças de roupas, tudo na mais perfeita e imaculável ordem. A mãe colocava as roupas sobre a cama e mandava que ela as ajeitasse. Meia hora depois, voltava para conferir. Uma meia bege no meio das brancas fez com que sua coleção de figurinhas não fosse completada. Uma camisola no meio dos pijamas suspendeu sua fidelidade ao programa do Toppo Gigio.
A quarta marca não sabia do que era. Vestígio de outra habitante. Foi até ela, esfregou o pé com força. A mancha continuou lá. Tão perto da cômoda. Pequena demais para ser uma escrivaninha. Muito distante da cama para ser um criado-mudo. Ou mudaram a posição da cama.
Parada sobre a mancha invasora, olhou para cima: o alçapão continuava lá. Houve noites em que teve medo: o Bicho Papão poderia sair por aquele buraco e pegá-la. Tempos depois, subia no armário, equilibrava-se para retirar a tampa e entrar pelo pequeno quadrado. O sótão era o seu salão, repleto de pequenos tesouros. Era a princesa regente.
Foi lá que se refugiaram, ela e a mãe, naquele noite. O tio fora visitá-las. A mãe mandou que se arrumasse, que iriam fazer uma longa viagem na Variant. Mal havia separado as roupas sobre a cama, a mãe voltou, mandando que se escondesse. Antes que terminasse a frase, ouviram um estrondo na sala, de porta arrombada, e gritos de “deita, deita”. Pegou a mãe pela mão e ajudou-a a subir no armário. Refugiaram-se no sótão. De lá ouviram os gritos do tio – “não sei, não sei” – urros de dor, passos ameaçadores na escada, barulho de portas. Objetos quebrados. Um carro partindo em alta velocidade Depois, silêncio assustador. O medo de sair. O resgate.
Fechou os olhos mais uma vez, tentando recuperar seu reinado na memória. Nada. O cheiro incômodo, o sol se pondo, as sombras – o medo do vazio – fizeram-na ir até o corredor. Lá havia uma escada...
Sentou-se no vão da janela. Na parede a sua frente, havia alguns buracos, bem onde ficavam as prateleiras com suas bonecas. Na mais alta, os ursinhos e as bonecas europeias, mandadas por uma tia-avó desconhecida todo Natal e todo aniversário. Na intermediária, ficavam a Suzi, a Amiguinha e outras da Estrela. Na mais baixa, as sobreviventes de guerra: sem cabeça, com cabelos cortados, sem perna, sem olhinhos... Os outros furos deveriam ser dos quadros: sua foto de bebê em seis poses, uma reprodução de pintura do anjo-da-guarda.
No parquê apodrecido aqui e ali, nem sombra de cera ou do brilho antigo. Havia quatro grandes manchas retangulares. Uma delas era a marca da sua estante. A coleção do Lobato, o Tesouro da Juventude. Em uma portinha, escondidos os gibis do Mickey e do Pato Donald. O álbum de figurinhas incompleto. Em outra porta, os LPs coloridos: narração das fábulas de La Fontaine e dos contos de Perrault. O toca-discos cor de laranja.
Outra marca era a de seu guarda-roupa. Tudo muito bem dobrado. Cheiro de roupa seca ao sol. Cheiro de saches de cravo-da-índia, para não pegar traça. Nos cabides, vestidos estilo marinheiro contrastavam com as batas floreadas e moderninhas. As calças boca-de-sino e pata-de-elefante, feitas sob medida pela costureira da esquina, deixavam-na “uma mo-ci-nha!”.
A terceira marca era a da cômoda. Sobre ela, uma caixinha de música dourada tocava Lara’s theme, coreografada por uma bailarina de plástico em eterno pliêt. Cada gaveta guardava um tipo de peças de roupas, tudo na mais perfeita e imaculável ordem. A mãe colocava as roupas sobre a cama e mandava que ela as ajeitasse. Meia hora depois, voltava para conferir. Uma meia bege no meio das brancas fez com que sua coleção de figurinhas não fosse completada. Uma camisola no meio dos pijamas suspendeu sua fidelidade ao programa do Toppo Gigio.
A quarta marca não sabia do que era. Vestígio de outra habitante. Foi até ela, esfregou o pé com força. A mancha continuou lá. Tão perto da cômoda. Pequena demais para ser uma escrivaninha. Muito distante da cama para ser um criado-mudo. Ou mudaram a posição da cama.
Parada sobre a mancha invasora, olhou para cima: o alçapão continuava lá. Houve noites em que teve medo: o Bicho Papão poderia sair por aquele buraco e pegá-la. Tempos depois, subia no armário, equilibrava-se para retirar a tampa e entrar pelo pequeno quadrado. O sótão era o seu salão, repleto de pequenos tesouros. Era a princesa regente.
Foi lá que se refugiaram, ela e a mãe, naquele noite. O tio fora visitá-las. A mãe mandou que se arrumasse, que iriam fazer uma longa viagem na Variant. Mal havia separado as roupas sobre a cama, a mãe voltou, mandando que se escondesse. Antes que terminasse a frase, ouviram um estrondo na sala, de porta arrombada, e gritos de “deita, deita”. Pegou a mãe pela mão e ajudou-a a subir no armário. Refugiaram-se no sótão. De lá ouviram os gritos do tio – “não sei, não sei” – urros de dor, passos ameaçadores na escada, barulho de portas. Objetos quebrados. Um carro partindo em alta velocidade Depois, silêncio assustador. O medo de sair. O resgate.
Fechou os olhos mais uma vez, tentando recuperar seu reinado na memória. Nada. O cheiro incômodo, o sol se pondo, as sombras – o medo do vazio – fizeram-na ir até o corredor. Lá havia uma escada...
segunda-feira, 10 de agosto de 2009
Da primeira publicação a gente não esquece
Este texto foi o primeiro que publiquei no Ler é Saber. Foi inspirado no meu querido sobrinho emprestado George, que foi uma criança incrivelmente querida e hj é um adulto incrivelmente fantástico.
Hj, com a Oficina do Assis Brasil, escreveria este texto de uma forma bem diferente. Como há uma memória afetiva atrelada a ele, prefiro não mexer em uma vírgula.
Lá vai:
O menino que não sabia seu nome
O início da confusão
Era um guri que não sabia o seu nome. Ele era daqueles meninos cheios de qualidades. Daqueles que aprontam e os adultos nem conseguem ficar brabos, de tão, tão encantador que era (dizem que continua assim até hoje)... Pois bem, os adultos – sempre eles! – fizeram uma baita confusão na cabecinha do nosso amiguinho. Querem ver?
Seu avô - o mais querido deles, aquele que tinha bolsos mágicos, sempre cheios de balas - quando o via, ia logo dizendo:
- Como vai o meu Indiozinho?
De fato, o guri parecia um indiozinho, com seu cabelo preto, escorrido, quase entrando nos olhos. Ele, muito imaginativo, já saía correndo e dando pinotes, com seu arco-e-flecha imaginário, defendendo-se de onças e – pasmem – de dinossauros! É, nosso amiguinho gostava de misturar as coisas.
Os seus pais ele desistiu de entender desde que estava na barriga da sua mãe.Quando nasceu, cada um chamava de uma coisa diferente: “meu bebê”, “meu gurizão”, “lindinho da titia”, “coisa querida do titio”... Depois, se fazia algo legal, divertido, mas que os pais não gostavam, seu nome era “Peste”, “Capeta”, “Danadinho”. Quando cantava direitinho para as visitas as musiquinhas que a mãe lhe ensinava, seu nome mudava para “Geniozinho”, “Querido”, “Fofinho”. Vá entender esses adultos....
O nome de que mais gostava
Um dos nomes do qual ele mais gostava era o que a avó alemã da namorada do tio lhe deu, que era Rétsie... Vejam só o que ele pensava disso:
“Aquela vovozinha é muito tri” – pensava ele. “Ela sempre faz aquele bolo gostoso que os grandes teimam em chamar de cuca. Credo, Cuca é a bruxa do Sítio, não essa coisa boa, com cobertura gostosa. Bolo é bolo, Cuca é bruxa. Quando a minha futura tia me leva embora, a vovozinha coloca um chocolate no meu bolso escondida, que é para os outros grandões não me xingarem, pois como muito doce. Daí ela pisca o olho pra mim, me dá um beijo e diz ‘Tchau, Rétsie, volta logo’. Legal, adoro ser o Rétsie. O meu tio disse que Rétsie não é nome, que significa coraçãozinho em português. Deve ser outra das pegadinhas que ele me apronta.”
Na escolinha de natação
Um dia, a mãe do nosso confuso amiguinho o matriculou na escolinha de natação. Ora, ele já estava com quase cinco anos, quase entrando na escolinha, já era bem grande, tinha que saber nadar. Ele ficou muito ansioso para ir, pois adorava água, mas achava que já sabia nadar, pois era o Indiozinho Peste Geniozinho Fofinho Rétsie e índios sabem nadar desde que nascem.
A mãe o levou de carro até a escolinha. Chegando lá, ela disse:
- Vai lá e arrasa, Netuno!
“Netuno, agora meu nome é Netuno. Mais um! Netuno Indiozinho Peste Geniozinho Fofinho Rétsie ... Vou demorar mais do que as outras crianças para aprender a escrever meu nome, é muito comprido...Pelo menos assim vão achar que eu sou burro e vão tirar o Geniozinho dessa lista ... Que bom, menos um.” – pensou ele.
Antes de cair na piscina, porém, precisou fazer um tal de “exame médico”. A mãe, como sempre distraída, conversando com a mãe de um outro menino, deixou que ele entrasse sozinho na salinha do médico, que lhe pareceu bem velhinho e brabo. O doutor, todo apressado, logo foi perguntando:
- Qual é o seu nome?
- Netuno.
O médico engoliu em seco a risada. “Esses pais de hoje, cada nome que colocam nos filhos” – pensou ele, abanando a cabeça. Após, chamou a secretária pelo interfone:
- Dona Rosa, a senhora não me mandou nenhuma ficha com o nome de Netuno.
O menininho interveio:
- Então procura Indiozinho, tio.
- O quê?
- É, Indiozinho. Ou Peste. Ou Geniozinho. Também tem Fofinho. Ou o mais legal de todos, Rétsie.
- Não estou entendendo o que está acontecendo aqui.
Nesse instante, chegou a secretária e disse:
- Não tem nenhum Netuno, não, doutor. Hoje só virão o Lucas, o Diego, a Luana, o Caio, a Débora e o George, que é esse daí.
- Entendo. Cadê a mãe desse guri? Mocinho, acho que o senhor mentiu pra mim. Que feio ... Teu nome então é George, não é?
- Não é não. Nunca ouvi esse nome. Hoje mesmo minha mãe me chamou de Netuno. E antes eu me chamava só...
- Tá, tá, sei, aquele monte de nomes ... Temos uma grande confusão aqui. Dona Rosa, chama a mãe dele, por favor.
A mãe, o médico e a secretária tentaram explicar que aqueles nomes todos não eram nomes de verdade. Eram apelidos carinhosos. “Falaram tanto, tanto, tanto... Tive que concordar. George, como um tal de George Washington, presidente dos Estados Unidos, que eu não faço a mínima idéia do que isso signifique. Ou como um tal George Orwell, um escritor, um cara que tinha muitas idéias. Ah, disso eu gostei. Idéias não me faltam ...”, pensou o nosso quase conformado amiguinho.
Meses depois ...
Na praia, George conheceu uma nova amiguinha. Tão lindinha, tão esperta, fazia os castelos de areia mais bonitos do mundo... Então ele perguntou o nome dela. Ela respondeu:
- Meu nome é Kitiele, mas pode me chamar de Kiti.
Ele, sem pestanejar disparou:
- Meu nome é George, mas tu podes me chamar de Namorado.
Hj, com a Oficina do Assis Brasil, escreveria este texto de uma forma bem diferente. Como há uma memória afetiva atrelada a ele, prefiro não mexer em uma vírgula.
Lá vai:
O menino que não sabia seu nome
O início da confusão
Era um guri que não sabia o seu nome. Ele era daqueles meninos cheios de qualidades. Daqueles que aprontam e os adultos nem conseguem ficar brabos, de tão, tão encantador que era (dizem que continua assim até hoje)... Pois bem, os adultos – sempre eles! – fizeram uma baita confusão na cabecinha do nosso amiguinho. Querem ver?
Seu avô - o mais querido deles, aquele que tinha bolsos mágicos, sempre cheios de balas - quando o via, ia logo dizendo:
- Como vai o meu Indiozinho?
De fato, o guri parecia um indiozinho, com seu cabelo preto, escorrido, quase entrando nos olhos. Ele, muito imaginativo, já saía correndo e dando pinotes, com seu arco-e-flecha imaginário, defendendo-se de onças e – pasmem – de dinossauros! É, nosso amiguinho gostava de misturar as coisas.
Os seus pais ele desistiu de entender desde que estava na barriga da sua mãe.Quando nasceu, cada um chamava de uma coisa diferente: “meu bebê”, “meu gurizão”, “lindinho da titia”, “coisa querida do titio”... Depois, se fazia algo legal, divertido, mas que os pais não gostavam, seu nome era “Peste”, “Capeta”, “Danadinho”. Quando cantava direitinho para as visitas as musiquinhas que a mãe lhe ensinava, seu nome mudava para “Geniozinho”, “Querido”, “Fofinho”. Vá entender esses adultos....
O nome de que mais gostava
Um dos nomes do qual ele mais gostava era o que a avó alemã da namorada do tio lhe deu, que era Rétsie... Vejam só o que ele pensava disso:
“Aquela vovozinha é muito tri” – pensava ele. “Ela sempre faz aquele bolo gostoso que os grandes teimam em chamar de cuca. Credo, Cuca é a bruxa do Sítio, não essa coisa boa, com cobertura gostosa. Bolo é bolo, Cuca é bruxa. Quando a minha futura tia me leva embora, a vovozinha coloca um chocolate no meu bolso escondida, que é para os outros grandões não me xingarem, pois como muito doce. Daí ela pisca o olho pra mim, me dá um beijo e diz ‘Tchau, Rétsie, volta logo’. Legal, adoro ser o Rétsie. O meu tio disse que Rétsie não é nome, que significa coraçãozinho em português. Deve ser outra das pegadinhas que ele me apronta.”
Na escolinha de natação
Um dia, a mãe do nosso confuso amiguinho o matriculou na escolinha de natação. Ora, ele já estava com quase cinco anos, quase entrando na escolinha, já era bem grande, tinha que saber nadar. Ele ficou muito ansioso para ir, pois adorava água, mas achava que já sabia nadar, pois era o Indiozinho Peste Geniozinho Fofinho Rétsie e índios sabem nadar desde que nascem.
A mãe o levou de carro até a escolinha. Chegando lá, ela disse:
- Vai lá e arrasa, Netuno!
“Netuno, agora meu nome é Netuno. Mais um! Netuno Indiozinho Peste Geniozinho Fofinho Rétsie ... Vou demorar mais do que as outras crianças para aprender a escrever meu nome, é muito comprido...Pelo menos assim vão achar que eu sou burro e vão tirar o Geniozinho dessa lista ... Que bom, menos um.” – pensou ele.
Antes de cair na piscina, porém, precisou fazer um tal de “exame médico”. A mãe, como sempre distraída, conversando com a mãe de um outro menino, deixou que ele entrasse sozinho na salinha do médico, que lhe pareceu bem velhinho e brabo. O doutor, todo apressado, logo foi perguntando:
- Qual é o seu nome?
- Netuno.
O médico engoliu em seco a risada. “Esses pais de hoje, cada nome que colocam nos filhos” – pensou ele, abanando a cabeça. Após, chamou a secretária pelo interfone:
- Dona Rosa, a senhora não me mandou nenhuma ficha com o nome de Netuno.
O menininho interveio:
- Então procura Indiozinho, tio.
- O quê?
- É, Indiozinho. Ou Peste. Ou Geniozinho. Também tem Fofinho. Ou o mais legal de todos, Rétsie.
- Não estou entendendo o que está acontecendo aqui.
Nesse instante, chegou a secretária e disse:
- Não tem nenhum Netuno, não, doutor. Hoje só virão o Lucas, o Diego, a Luana, o Caio, a Débora e o George, que é esse daí.
- Entendo. Cadê a mãe desse guri? Mocinho, acho que o senhor mentiu pra mim. Que feio ... Teu nome então é George, não é?
- Não é não. Nunca ouvi esse nome. Hoje mesmo minha mãe me chamou de Netuno. E antes eu me chamava só...
- Tá, tá, sei, aquele monte de nomes ... Temos uma grande confusão aqui. Dona Rosa, chama a mãe dele, por favor.
A mãe, o médico e a secretária tentaram explicar que aqueles nomes todos não eram nomes de verdade. Eram apelidos carinhosos. “Falaram tanto, tanto, tanto... Tive que concordar. George, como um tal de George Washington, presidente dos Estados Unidos, que eu não faço a mínima idéia do que isso signifique. Ou como um tal George Orwell, um escritor, um cara que tinha muitas idéias. Ah, disso eu gostei. Idéias não me faltam ...”, pensou o nosso quase conformado amiguinho.
Meses depois ...
Na praia, George conheceu uma nova amiguinha. Tão lindinha, tão esperta, fazia os castelos de areia mais bonitos do mundo... Então ele perguntou o nome dela. Ela respondeu:
- Meu nome é Kitiele, mas pode me chamar de Kiti.
Ele, sem pestanejar disparou:
- Meu nome é George, mas tu podes me chamar de Namorado.
A Babel do Gabriel
Este texto foi criado especialmente para o Ler é Saber (agosto/09). A última estrofe não consta no fascículo.
A Babel do Gabriel
Uma vez era o Gabriel, um menino serelepe.
Aprontava, aprontava
A profe nem xingava!
E quem poderia ?
Aqueles olhos azuis a brilhar
Feito os da Oma Maria...
Aquele jeito de com as mãos falar
Igualzinho ao Nono Giuseppe.
Gabriel era todo charmoso
Com as palavras, muito habilidoso.
Dizem que tirava as suas ideias mirabolantes
De livros e livros que tinha nas estantes.
Ganhava-os de presente da Sarah e do Samuel, seus dindos,
Aqueles que o levavam à sinagoga aos domingos.
Gabriel era muito inventivo,
Nem precisava de incentivo!
Só não sabia como iria usar
Duas camisetas que acabara de ganhar:
Uma do Grêmio e outra do Internacional.
Encontrou-se em um dilema existencial.
Correu e acendeu uma vela para o Negrinho do Pastoreio:
Que ajudasse a encontrar a solução perdida sem receio!
Foi com a Dinda buscar ajuda no terreiro,
Santos e entidades a dar o palpite certeiro.
Embalado pelos tambores teve uma ideia genial
Uma grande festa era essencial.
A família em dia de festa se encontrou
Polca, samba, vanerão: todo ritmo se escutou.
Sashimi com chimarrão, churrasco com angu,
Quindim, ambrosia, grôstoli, sagu,
Tudo para esperar o momento da grande revelação:
O time que de Gabriel conquistou o coração.
Por uns instantes o menino sumiu.
A maior surpresa foi o que surgiu:
Metade alvi-rubra, metade tricolor azul anil
A camisa trazia no centro a bandeira do Brasil.
O Intergremionacional estava criado
Por um guri pra lá de levado.
Na Babel do Gabriel não existia a palavra divisão.
Não sabia o que era chimango nem maragato;
Orgulho, para ele, era algo muito abstrato.
Mas quando o 20 de setembro chegava,
Em botas e bombacha se aprumava,
Encilhando seu imaginário cavalo Alazão.
A Babel do Gabriel
Uma vez era o Gabriel, um menino serelepe.
Aprontava, aprontava
A profe nem xingava!
E quem poderia ?
Aqueles olhos azuis a brilhar
Feito os da Oma Maria...
Aquele jeito de com as mãos falar
Igualzinho ao Nono Giuseppe.
Gabriel era todo charmoso
Com as palavras, muito habilidoso.
Dizem que tirava as suas ideias mirabolantes
De livros e livros que tinha nas estantes.
Ganhava-os de presente da Sarah e do Samuel, seus dindos,
Aqueles que o levavam à sinagoga aos domingos.
Gabriel era muito inventivo,
Nem precisava de incentivo!
Só não sabia como iria usar
Duas camisetas que acabara de ganhar:
Uma do Grêmio e outra do Internacional.
Encontrou-se em um dilema existencial.
Correu e acendeu uma vela para o Negrinho do Pastoreio:
Que ajudasse a encontrar a solução perdida sem receio!
Foi com a Dinda buscar ajuda no terreiro,
Santos e entidades a dar o palpite certeiro.
Embalado pelos tambores teve uma ideia genial
Uma grande festa era essencial.
A família em dia de festa se encontrou
Polca, samba, vanerão: todo ritmo se escutou.
Sashimi com chimarrão, churrasco com angu,
Quindim, ambrosia, grôstoli, sagu,
Tudo para esperar o momento da grande revelação:
O time que de Gabriel conquistou o coração.
Por uns instantes o menino sumiu.
A maior surpresa foi o que surgiu:
Metade alvi-rubra, metade tricolor azul anil
A camisa trazia no centro a bandeira do Brasil.
O Intergremionacional estava criado
Por um guri pra lá de levado.
Na Babel do Gabriel não existia a palavra divisão.
Não sabia o que era chimango nem maragato;
Orgulho, para ele, era algo muito abstrato.
Mas quando o 20 de setembro chegava,
Em botas e bombacha se aprumava,
Encilhando seu imaginário cavalo Alazão.
O namorado da Joaninha
Este texto foi criado especialmente para o João Pedro. Achei uma joaninha em cima da minha impressora e a levei para ele. Foi uma festa!!!
O namorado da Joaninha
Uma borboleta sabor leite,
Um cachorro sabor baunilha,
Um gato só para enfeite,
Um ninho de sabiás na forquilha:
Esse era o zoológico do João
- seus bichinhos do jardim!
Tinha também um leão
Feito de barro e capim!
Um dia, uma joaninha – que surpresa!
Vermelhinha, pingada de preto nas asinhas.
Um bichinho pequenino sabor framboesa
Pousou nas folhagens verdinhas.
“ - Que bicho é esse?” – o menino perguntou.
Nunca vira coisa tão bonita e curiosa.
“- Joaninha” - a mamãe ao menino apresentou.
O bichinho perdia-se nas pétalas de uma rosa.
Na palma da mão esquerda do João
O bichinho passeou, fez cocegazinha.
Caminho direto para o coração:
Ela era sua namoradinha.
“- Posso me casar com ela?”
Foi o que o guri perguntou.
A mãe deu uma risada amarela.
Meio sem jeito, logo falou:
“- Gente com gente se casa;
Joaninha não se casa não.
Já viu menino com asa?
Já viu joaninha no salão?”
João nem se importou: estava apaixonado.
Tão quietinha, tão delicada, tão indefesa:
Faz-de-conta que era seu príncipe-namorado,
Faz-de-conta que ela era uma encantada princesa.
A mãe não sabia
Da bruxa malvada,
Da negra magia
Que atingiu sua amada.
Uma bruxa muito malvada
Transformou a princesa em joaninha
Ela precisava ser beijada
Para ser sua namoradinha.
João seus lábios aproximou
Do frágil animalzinho.
A joaninha com paixão beijou,
Bateu forte seu coraçãozinho.
Eis que a coisa mais maravilhosa aconteceu:
Do outro lado do muro alguém apareceu.
“-Olá, eu sou a Joana, sua nova vizinha!”
Será ela a sua princezinha?
O namorado da Joaninha
Uma borboleta sabor leite,
Um cachorro sabor baunilha,
Um gato só para enfeite,
Um ninho de sabiás na forquilha:
Esse era o zoológico do João
- seus bichinhos do jardim!
Tinha também um leão
Feito de barro e capim!
Um dia, uma joaninha – que surpresa!
Vermelhinha, pingada de preto nas asinhas.
Um bichinho pequenino sabor framboesa
Pousou nas folhagens verdinhas.
“ - Que bicho é esse?” – o menino perguntou.
Nunca vira coisa tão bonita e curiosa.
“- Joaninha” - a mamãe ao menino apresentou.
O bichinho perdia-se nas pétalas de uma rosa.
Na palma da mão esquerda do João
O bichinho passeou, fez cocegazinha.
Caminho direto para o coração:
Ela era sua namoradinha.
“- Posso me casar com ela?”
Foi o que o guri perguntou.
A mãe deu uma risada amarela.
Meio sem jeito, logo falou:
“- Gente com gente se casa;
Joaninha não se casa não.
Já viu menino com asa?
Já viu joaninha no salão?”
João nem se importou: estava apaixonado.
Tão quietinha, tão delicada, tão indefesa:
Faz-de-conta que era seu príncipe-namorado,
Faz-de-conta que ela era uma encantada princesa.
A mãe não sabia
Da bruxa malvada,
Da negra magia
Que atingiu sua amada.
Uma bruxa muito malvada
Transformou a princesa em joaninha
Ela precisava ser beijada
Para ser sua namoradinha.
João seus lábios aproximou
Do frágil animalzinho.
A joaninha com paixão beijou,
Bateu forte seu coraçãozinho.
Eis que a coisa mais maravilhosa aconteceu:
Do outro lado do muro alguém apareceu.
“-Olá, eu sou a Joana, sua nova vizinha!”
Será ela a sua princezinha?
Primeira postagem
Essa onda de gripe A, com a consequente suspensão das aulas, e a falta de vontade de fazer o que me poderia ser mais útil daqui a duas semanas fizeram-me, finalmente, criar meu blog. Não sei se vou saber usá-lo, mas...
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