domingo, 6 de setembro de 2009

Feliz aniversário

Dois soldados conduziram-na até um cubículo. Pediram que aguardasse. Como não o faria? Trancaram-na. Nenhuma janela. Uma lâmpada fraca pendia por um fio. As paredes sem pintura vertiam água. Frio úmido no calor de dezembro.
Havia três cadeiras e uma mesa minúscula. Em um canto, fios, meia dúzia de pregos, uma bacia e uma marreta. No outro, um camundongo morto. Baratas aqui e ali. A umidade do chão chegou aos seus pés, desprotegidos nas sandálias de couro. Estava com o estômago embrulhado: o cheiro de mofo, do camundongo putrefato. O balanço da Veraneio que a trouxera até ali. O medo. Tinha consciência da sua grande boca. Justo naquele dia. Sexta-feira, 13 ̶ seu aniversário. Estava conformada no seu plantão quando apareceram os soldados.
Sentou. Suava frio. Levou a mão aos olhos. A maquiagem borrou. Custou caro aquele delineador da Max Factor. Meia hora na frente do espelho, copiando a maquiagem da garota da capa da revista O Cruzeiro para quê? Para ser levada em um camburão cheio de milicos? Para ser uma encarceirada mais bonita? Não haveria de ser nada grave. Nunca se envolvera em movimento algum. Mantivera distância de passeatas, greves, reivindicações. Achava tudo isso uma bobagem improdutiva. Antipatizava com os ditos “subversivos”. Não queria saber dos problemas alheios. Os outros também nada sabiam sobre sua vida. Não era de seu feitio bancar a simpática. Muito menos a heroína. Se quisessem nomes, falaria qualquer um. Talvez daquele vizinho chato, se soubesse. Ou do colega insuportável.
Sua espera não tinha fim. Chaveada. Silêncio. Sem noção de tempo. Sentia falta de ar. A lâmpada piscou duas vezes. Bateu na porta, gritou. Ninguém. A lâmpada apagou. As baratas! Como se defenderia delas no escuro? Esmurrou, chutou a porta. Tateando, subiu na mesa. Não conseguiu ficar de pé. Tremia. A porta abriu-se.
̶ Ainda tens medo de escuro, senhorita? ̶ Perguntou o oficial, adentrando o cubículo.
Ela desceu da mesa. Ajeitou as roupas e o cabelo. O oficial pegou-a pelo braço, fazendo sentar. Outro oficial chegou. Era mais velho e cheio de condecorações. Trazia um envelope grande e uma pasta. Colocou papéis sobre a mesa e uma caneta. Ordenou, ríspido:
̶ Assine!
Eram prontuários preenchidos. Certidões de óbito. No carimbo, seu nome verdadeiro, antecedido de “Dra”. Corou. Suas mãos tremiam. Engasgada, disse:
̶ Há um engano aqui. Sou enfermeira. Não posso assinar.
O oficial mais velho entregou-lhe o envelope, dizendo, jocoso:
̶ Agora é. Basta colaborar para a ordem e para o progresso da nação. Ou preferes ver os cadáveres para verificar se o laudo está correto, doutora? Ou que todos saibam de onde vens?
Os oficiais riram. Ela abriu o envelope. Um diploma de Medicina com seu nome de batismo.
̶ A nação tem muitos colaboradores. ̶ Comentou o condecorado.
̶ Assine! ̶ Ordenou o mais jovem.
Obedeceu sem erguer os olhos. Sua letra saiu tremida. Os oficiais conferiram as assinaturas. Com ar de deboche, o condecorado disse:
̶ Até amanhã!
O mais novo, rindo, falou:
̶ A propósito, feliz aniversário, dou-to-ra.

2 comentários:

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  2. "Nunca se envolvera em movimento algum. Mantivera distância de passeatas, greves, reivindicações. Achava tudo isso uma bobagem improdutiva. Antipatizava com os ditos 'subversivos'. Não queria saber dos problemas alheios. Os outros também nada sabiam sobre sua vida. Não era de seu feitio bancar a simpática. Muito menos a heroína. Se quisessem nomes, falaria qualquer um. Talvez daquele vizinho chato, se soubesse. Ou do colega insuportável."

    Bem construído, gostei deste trecho.
    Sobre a trama: sim, tem vigor - confesso que fiquei revoltado com a canalhice dos soldados.
    Corrupção, repressão, abuso de poder varrendo a sujeira para debaixo da burocracia documental.
    Certamente há aí o fractal de algo que possa vir a ser desdobrado.

    Abraço.

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