Já eram três da manhã quando terminou o trabalho. Um artigo de 20 páginas. Para um colega de trabalho. Coitado, tão atarefado, como ela não o ajudaria? Sentiu uma dor no pescoço, um formigamento que se estendia para os ombros e para o braço. Tendinite. Precisa maneirar no computador. Colocou uma bolsa de água quente nas costas. Verificou o rádio. Ajustado para as cinco e quarenta. Dormiu ao som da TV.
O colega nem agradeceu. “Deixa aí que depois eu olho.” Era sempre assim. Acostumou-se. Deixou café na mesa de todos e sentou-se para ler seus e-mails. O chefe avisou que precisaria que ela ficasse até mais tarde. Nem esperou para ouvir o “sem problemas, o senhor é quem manda”. Era quinta-feira. Ela perderia seu seriado preferido, mas não tinha nada, não. Seria útil no escritório. Havia até comprado comida especial para o gato. Assistiriam juntos, aninhados no edredom novo. Sem problemas.
A irmã mais velha ligou:
- A mãe quer um forno novo. Anda tão deprimida que pensei se...
- Sem problemas. – Interrompeu. – Quanto vai custar?
- Olha, o modelo que ela quer custa 500. – A irmã fez uma pausa. - Dá para parcelar.
- Vou fazer o depósito na tua conta. Olha, no fim de semana...
- Tá bom, vê se não demora. – Cortou a irmã.
Ela sonhava com uma viagem. Para qualquer lugar, bem baratinho. Nunca tirara férias de verdade. Estava guardando dinheiro para isso. A mãe precisava. Não negaria. Fez a transferência pela internet. A tendinite. Tomou um relaxante muscular. Estava cansada. Queria sumir. Na sua terra, quando alguém sumia, diziam que fugira com o Mendola. Nunca diriam isso dela.
Espiou o colega lendo o artigo que ela escrevera. Ele deu um rodopio e um beijo na folha. Ela sorriu. Não teve tempo para degustar a pequena alegria. A irmã do meio, ao telefone, cobrava:
- Olha, tu tens que levar a mãe este final de semana para a casa da tia Margô. A mãe precisa sair. Tu és a única que não tem família para cuidar.
Ela sempre levava. A irmã continuava a gritar:
- Outra coisa: como tu podes depositar a quantia justa para o forno da mãe? Não sabe que banco cobra taxas? Que gasolina é cara para estar por aí?
- Podes deixar que eu mesma levo a mãe para comprar.- Disse, engasgada. -Pede para a mana...
A irmã desligou. Era assim mesmo, apressada. O remédio fez efeito. Deu uma moleza. Foi almoçar, como fazia todas as quintas, na casa da mãe. A empregada pediu-lhe adiantamento. A mãe tinha visita. Uma amiga dos tempos de Rotary. Não, não era sua filha mais velha. Era a mais nova, a raspa do tacho, o restinho. A mãe e a visitante comeram em silêncio. Ela fez de conta. Carne de porco. Era alérgica desde criancinha. Quando a amiga foi ao banheiro, a mãe explodiu:
- Tu não estás pensando em pedir de volta o dinheiro que depositaste na conta da tua irmã, né? Ela me ligou chorando. Assim tu me matas de vergonha.
Não, ela não pediria. Quem precisa viajar? Isso não bastaria. A volta da amiga apaziguou os ânimos da mãe. No caminho para o trabalho, num sinal fechado, espiou para dentro de uma pet shop. Eles tinham siameses. Na gaiola, coitadinhos.
O chefe atolou a todos de trabalho. Estava irritado. Como alguém pode prender aquelas coisas fofas em uma gaiola? Concentrou-se. A dor nas costas voltou. Só faltava mais um restinho. Um resto como ela. Que gente sem coração, pobrezinhos dos siameses. E se eles ficassem sobrando, restando? Será que os sacrificariam? Terminou tudo. Uma colega, atrasadíssima depois de um café demorado, pediu que a ajudasse.
- Não!
O escritório parou. Ouviu-se o bebedouro pingar. Todos olharam para ela. O silêncio fez o chefe sair de sua sala. Ela pegou seu casaco e sua bolsa. O chefe deteve-a:
- E a hora extra?
- Não!
A colega atrasada:
- Ainda temos o que fazer.
- Não!
Parou na pet shop. Só havia mais um gato. Ficou feliz pelos outros. Comprou o raspa do tacho, o restinho. A vendedora perguntou qual seria o nome.
- Mendola. - Fez uma pausa enquanto pagava - Diga a todos que eu fugi com o Mendola.
Adorei! Essa expressão eu ouvi muito quando criança na minha cidade. Acho que eu até a disse muitas vezes. Parabéns!
ResponderExcluirLiane
Sora sora, eu nunca me canso de ler os teus contos. Sempre fico remoendo o conto na cabeça na tentativa de decifrar essas tuas ambiguidades. Isso que faz um conto rico, o leitor gosta de começar a ler, gosta de ler pela segunda vez e ainda gosta de ficar decifrando depois. Pra mim os melhores contos são esses que tem linhas entre as linhas. A parte que eu mais gostei, admito, foi essa: "E se eles ficassem sobrando, restando? Será que os sacrificariam?". No mínimo faz pensar...
ResponderExcluirSoraaaaaaa...teus contos são excelentes...te adoro sempre mais!!!!Bjo da Ana
ResponderExcluirProfessora!
ResponderExcluirQuase tive um "treco" quando li esse conto. Tu nem sabe! Sabe o famoso "Mendola"?Pois é, o avô do marido tinha esse apelido em Taquara, inclusive o pai dele também herdou. E a expressão existiu mesmo, mas as explicações são diversas...hihihi Adoreiii...bjão