domingo, 13 de setembro de 2009

Cacos

Saiu da missa resolvida. Não passaria mais um domingo à tarde sozinha. Tivera filhos, marido. Tinha suas qualidades. Admitia: faltava-lhe entusiasmo. Iniciativa. Deixara as coisas chegarem naquele pé. Cada um para seu lado, cuidando das suas coisas. Dos seus interesses. Sem elos.

Entrou no supermercado com uma pressa antiga. O carrinho voava pelos corredores. Na fila do caixa, ligou para a filha mais velha. Fora de área. Para a filha do meio. Desligado. Para a mais nova. Nada. Ainda era cedo para os jovens.

O marido assistia à corrida de Fórmula 1 na sala. De pijamas. Ela levou-lhe o almoço comprado pronto. Na bandeja. Ele estranhou. Esboçou um sorriso. Meio-dia. Tentou mais uma vez falar com as filhas. Deixou recados nas caixas postais.

Bolo. Bateu claras em neve. A delicadeza da textura lembrou-lhe o seu vestido de noiva. As gemas. Com açúcar. Recordou-se das gemadas que fazia para a filha mais velha. Prematura, sempre foi fraquinha. Penerou a farinha. O pó fininho caindo na bacia. Areia branca. Férias em Garopaba. As crianças felizes. O marido, a amante, o flagra, o escândalo. Chocolate em pó. Carinhas lambuzadas, orelhinhas de coelho. Parentes incomodando nas datas festivas. A sogra, a cobra. Leite morno. Peitos fartos, mamadeiras. Noites sem dormir. Fermento. Calças curtas. A roupa da mais velha na mais nova. Orçamento apertado. Trabalho, trabalho, filhas largadas. A fôrma. De coração. Aperto no peito, expediente até mais tarde, filha doente. O forno quente. Abraços no dia das mães. E se o bolo solasse? E se elas não viessem?

O cheiro do bolo animou-a. Preparou brigadeiros. Festas de aniversário. Crianças barulhentas. Balões estourados. Ligou novamente. A mais nova atendeu. Sim, mais tarde ela iria, sem problema. Bolinhas de polvilho. Lanches das tardes chuvosas. Lições de casa bem feitas. Ela arrumou a mesa. Estreias: a porcelana herdada, a toalha que ela mesma bordara, flores colhidas no impecável jardim. A jarra com suco. O adoçante para a mais velha. O pão integral para a filha do meio. Iogurte para os bebês. Queijo branco para a mais nova. Uma xícara de café solúvel, três de açúcar, uma de Nescau, um quarto de água fria batidos no processador. Só esperaria as filhas chegarem. Duas colheres em cada xícara. Um beijo em cada uma antes de irem para escola. Leite quente vertido por cima. Cobrir as filhas no meio da noite. Será que elas ainda gostavam disso?

Tudo pronto. Ouviu os roncos vindos da sala. Na TV, bailarinas mal vestidas dançavam ao som de uma música popular. Hora de desligar, hora de acordar. As crianças estavam chegando. E se não chegassem?

A campainha tocou. As filhas chegaram com as netas. Ao mesmo tempo. Não juntas. Estranharam-se. As rugas. As cores dos cabelos. As meninas crescidas. Onde estavam aqueles bebês? O abraço desajeitado. Cheiro do passado. O beijo no ar. Os olhares desencontrados. Velhos chavões. As crianças brincavam. A mãe convidou-as para o café.

Ela tremia. Silêncio das coisas não ditas. E se elas não gostassem? Derramou um pouco de leite. A mais velha foi ajudar. As mãos se encontraram. Os olhos. Reconheceram-se. Abraçaram-se A leiteira de porcelana escorregou da mão. As outras duas correram em socorro. Juntaram-se ao calor do abraço. O barulho trouxe o pai à sala de jantar. Era hora de juntarem todos os cacos.

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