domingo, 25 de julho de 2010

Há quanto tempo não é abril?

- Há quanto tempo não é abril?


- Nem sei que dia é hoje.

- O que está fazendo?

-Parece que é o de sempre.

- Desempreterenanente.

- Isso mesmo. Digita’í...

...

- Por que abril?

- O quê?

- Abril. Por quê?

- Sei lá. Gosto desse nome.

- Cada louco...

- Abril não é frio nem quente.

- Ah, tá. E faz diferença? Sempre no ar-condicionado...

- Mas se eu quiser passear...

- Conta outra... Olha a tela, tá errada a senha.

- Arrumo num instantim. É, mas eu posso querer.

- Juuuura!

- Posso ou não pode?

- Sabe que não. Ninguém tem querer.

- Eu não sou escravo.

- Hoje você está hilário, meu! Para de teclar para ver...

- Quando termina o expediente posso ir para onde eu quiser. Posso passear, portanto.

- E daí pega uma gripe, não vem trabalhar, está na rua.

- Atestado médico...

- Não impede demissão. Lembra da loira do computador 09?

- Mas ela era fraca, não aguentou a tendinite. Eu aguento gripe. E cansaço.

- Ssshiiii! Supervisor tá na área...

...

- Você ainda não respondeu.

- Responder o quê?

- Há quanto tempo não é abril?

- Sei lá... Nem sei que mês é agora. Joga no Google.

- O supervisor me mata se me pegar trocando a tela.

- Viu?

- O quê?

- Escravidão.

- É medo.

- Dá no mesmo.

- Então por que não cai fora?

- Porque sou escravo.

- Tá sonhando.

- Sonhando? Não sou eu que fico perguntando “há quanto tempo não é abril?”, “há quanto tempo não é abril?”, “há quanto tempo não é abril?”...

- Ssshhhh...

- Pois sim... “Há quanto tempo não é abril?”, “há quanto tempo não é abril?”...

Passos fortes. Os dois sentem um peso nas costas. A sombra fala:

- Os dois para minha sala agora.

A sala. Aquela que fica no alto das escadas. Toda envidraçada, de modo a quem está lá dentro ver o que se passa lá embaixo, mas os que estão lá embaixo apenas supõem o que se passa lá em cima. Os dois sobem e sabem por quê. Quem mandou conversar? O aparelho fonador, como de resto todo o corpo e o que houver de habilidades mentais, das 8h às 12h e das 13h às 17h, deve ser de uso único do empregador. Eles sabiam.

Quando a porta se abre, surpresa: há janelas na sala do alto da escada. E plantas nos cantos. E porta-retratos sobre as mesas. Pessoas trabalhando lá, muitas pessoas. E aquelas roupas? Ninguém de uniforme. Uma moça lhes sorri, oferece-lhe lugar para sentar, um café e abre as cortinas. O céu é cinza, mas é o céu. A voz da sombra, já não tão sombria, chama-lhes:

- Quem ainda quer saber há quanto tempo não é abril?

- Ninguém, não, senhor... – respondeu um deles.

- Eu ainda quero. Eu sempre quis. O meu amigo aqui nada tem a ver com isso.

- Já sabia disso. Seu amigo está dispensado.

O amigo some no vão da porta que leva às escadas. A sombra continua:

- Quanto ao senhor, aqui estão os papéis de sua demissão. Fique tranquilo que lhe pagaremos todos os seus direitos e o encaminharemos para uma assistência de recolocação. Assine, por favor, nessa linha pontilhada.

Ele assina. Olha a data logo acima de seu nome. 29 de abril.

Sai correndo na manhã cinza e fria. Não importa o futuro. Tem algo de abril só para ele.

4 comentários:

  1. Luh!
    Que texto significativo nesta oscilante manhã de domingo.Todos temos um abril em nossas vidas e,às vezes, não sabemos qual é ele.
    Beijão
    Juh

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  2. É sora Luh, todos tem o seu abril, achei ótimo esse texto!!
    um beijo, Ruan

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  3. Louquinho sim, mas muito legal. Ideia maravilhosa. E quem dera se fosse abril mesmo! ;)

    Beijocas, Jú

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  4. Por que eu me sinto como se estivesse em um dos compartimentos dos computadores? Digita aí, vai, Luh: Gostei muito!!!

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