A Cuca estava nervosíssima. Era preciso fazer alguma coisa. A data fatídica estava chegando. Pensou, pensou. Pegou papel e carvão. Enviou o seguinte caldeirãorograma:
CONVOCAÇÃO
Reunião em Brasília, no Congresso Nacional, em 30 de outubro, meia noite.
Assunto: Halloween, perigo iminente.
Maleficamente,
Dona Cuca
Rainha Suprema da AMACB
Do lado de lá do caldeirão, receberam a convocação todos os associados da Associação Brasileira de Monstros Assustadores de Crianças do Brasil: a Mula-sem-cabeça, o Caipora, o Bicho Papão, o Velho do Saco, o Saci, o Boitatá... No entanto, a correspondência demorou mais para chegar a alguns parentes – a Boiúna, o Cabeça de Cuia, o Cãoera, o Cumacanga, o Mapinguari... Afinal, cruzar o país, do Capoeirão dos Tucanos até a Amazônia, não é café com bolinho nem para caldeirãorogramas...
Na data e no horário marcados, todos estavam lá. Não precisaram utilizar seus poderes mágicos para entrar no prédio do Congresso Nacional: os guardas dormiam. Soninho tão bom que nem se mexeram com as risadas da Cuca, lembrando de um certo Major do Reino das Águas Claras...
Todos os que conseguiam sentar abancaram-se nas cadeiras estofadas. Boitatá, Boiúna e Cobra Norato rastejavam no carpete macio – quase tão bom quanto um leito de folhas fofinhas. Batiam o maior papo, contando as novidades de suas terras. Foi então que a Cuca conclamou:
- Vamos abrir os trabalhos cantando nosso hino.
Monstros e bruxas se puseram em posição de sentido. Claro, cada um do seu jeito de respeitar. Com lágrimas de emoção, cantaram:
Nana, neném
Que a Cuca vai pegar
Todos achavam muito justo mencionar sua rainha no hino. E não suportavam a insinuação que estariam copiando a homenagem do hino da Inglaterra.
A cantoria continuava:
Papai foi na roça
Mamãe foi visitar.
Que bicho é aquele
Que está em cima do telhado...
A essa altura do hino, a confusão sempre se armava em todas as assembleias da AMACB. Todos gritavam seu nome:
- Sou eu, Bicho Papão, o Tutu!
- Não, sou eu, o Papa-figo...
A falação só parou quando a Cuca deu um basta:
- Isso é sério, gente, quero dizer, monstros, bruxas e assemelhados. Estamos na véspera de mais um Halloween e...
- ... E nem nos convidaram, né, prima? – Riu-se a Iara.
O Saci interveio:
- Sem brincadeirinhas, primas! O fato é que as crianças não têm mais medo da gente. Algumas sequer sabem que existimos...
O Mapinguari, com suas três bocas, esquentou-se:
- Ora, Saci, quem é você para reclamar? Você é da classe dos privilegiados! Seu Lobato te retratou. Até símbolo de time de futebol virou. Eu que sou do Centro-Oeste nem apareço...
- Nem eu que sou do Sul – atalhou o Negrinho do Pastoreio. – As crianças só tomam conhecimento da minha existência quando estão lá pela quarta série e não acreditam em mais nada. E eu não quero assustar como vocês...
A Cuca enfureceu-se:
- Acreditam mais naquele bruxinho feito de meia tigela de mentiras do Harry Potter do que em mim, que sou de verdade.
Todos aplaudiram a sua Rainha. Cumacanga, ajeitando sua cabeça para não pôr mais fogo ainda na discussão, completou:
- Olhem bem para mim! Não sou mais assustadora do que o Jason ou qualquer monstro de mentira dos filmes de Hollywood? E as crianças nem me conhecem...
- Bem, filhinha, se você é feia, fazer o quê? – emendou a Cuca. – Eu sou linda, apesar dessa maledicência de que tenho cara de jacaré... Vocês não acham, meus súditos?
Silêncio total. Ninguém discordou da Cuca: eram monstros e assombrações, não loucos fugidos de hospício. A Mula-sem-cabeça, que não tinha cabeça mas era muito sensata, arrematou:
- O fato é que as crianças não têm medo mais de nada. Acham que podem fazer o que querem e não vão ter castigo. Estão ficando mais capetas do que o Saci Pererê...
- E eu não admito concorrência desleal! – Gritou o Saci.
A discussão acirrou-se. Entre planos e mais planos, não notaram que alguém os observava, até que um flash mais forte chamou-lhes a atenção.
- Juro que a minha cabeça está no lugarzinho! – Apressou-se Cumacanga.
O Saci, sempre bem esperto, apontou para um cantinho da sala:
- Olha lá, atrás da cortina! Um repórter!
Os olhos da Cuca brilharam:
- Essa é a nossa grande oportunidade! Tragam o reporterzinho aqui!
O repórter foi até a Cuca sem ninguém precisar levar. O Bicho Papão tentava explicar:
- Estamos aqui reunidos para achar uma saída para nossos maiores problemas: a concorrência com os monstros de Hollywood e a falta de crença das crianças.
O repórter abriu um sorriso:
- Então vamos documentar esse momento!
Os monstros e assemelhados acotovelavam-se – isto é, quem tinha cotovelos - para sair nas fotos. A Cuca até entregou ao repórter uma carta de intenções, em que explicava tudinho, tim-tim por tim-tim. A reunião terminara em grande estilo.
No dia seguinte, os monstros, hospedados nos telhados do Papa-figo, esperavam pelos jornais. A Cuca se imaginava na capa, em foto de meia página. Quando o jornal chegou, pelas mãos furadas do Saci... nada de capa. Nem de contracapa. Só uma notinha bem pequena: “Congressistas vestem-se de seres do folclore nacional às vésperas do Halloween.”
Triste, o Tutu constatou:
- Não se faz mais sensacionalismo como antigamente!
Parabéns pelo blog e pelo livro professora. O primeiro é ótimo, o outro ainda não tive oportunidade de ler, mas estou curioso para fazê-lo!
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