terça-feira, 30 de março de 2010

Desconfiança

Como todos os dias, Ana saiu apressada do trabalho. Precisava comprar pão e frutas. Não conseguiu vaga para estacionar o carro em frente ao mercado. Chovia. A sombrinha ficou no banco do carona. Pegou tudo voando. Teve um momento de silenciosa irritação no caixa. Precisava chegar em casa em 10 minutos. Não queria atrasar a babá de seu filho mais uma vez: ela também tinha seus compromissos. Juntou as sacolas e saiu apressada. Mal olhou para atravessar a rua e pegar o carro.


Quando iria abrir o carro, ouviu passos fortes e rápidos. Assustou-se com um homem mal vestido. Vinha em sua direção. Ela jogou a chave de volta na bolsa, foi para a calçada, entrou em uma loja de 1,99. A atendente sorriu:


- Pra senhora?


- Olha lá aquele cara! – disse, apontando para a rua. – Ali, na frente da relojoaria. Eu acho que ele iria me assaltar, eu ia pegar o carro e...


- Olha o tipo do vagabundo! – cortou a atendente. – Vou ligar para a relojoaria. Eles têm telessegurança.


O homem continuava na rua. A chuva engrossara. Ele olhava uma vitrine e outra. Outros sete clientes da loja vieram à porta. Ana sorria amarelo para os elogios à sua perspicácia. Como tivera coragem? Claro que era bandido. Só podia ser bandido. E dos perigosos. Olha lá, na chuva. Jaqueta encardida e Nike Shox. Só podia ser roubado. Vai ver que até matou por esse par de tênis. Quantos rapazes trabalhadores, de família, morrem por causa desses tênis? Ana estava tonta com as conjecturas. Mal conseguia fazer as suas. E se ela tivesse enganada? Com a pressa, poderia ter julgado mal. Não teve coragem de abrir a boca. O tribunal já o condenara: já pensou se ele a levasse junto? E se o seu filho estivesse na cadeirinha? Lembra do caso daquele menino lá no Rio, que foi arrastado por quilômetros? Sim, ela lembrava, não precisava repetir. O carro da telessegurança passou. O homem parou debaixo de uma marquise, em frente à tabacaria. Tentava acender um cigarro. A dona da loja, cuia de chimarrão na mão, resolveu:


- Eu vou é chamar a Brigada. Já está na hora de fechar. Como é que alguém vai sair aqui de dentro?


Ana teve uma tontura. A polícia. Telessegurança tudo bem, não fazem nada mesmo. E se não fosse nada? Se ele fosse apenas feio mesmo? Poderia até ser trabalhador, ter se ralado para comprar o tal tênis. O tênis talvez fosse falsificado, de longe não dá para ver.


- Já estão vindo! – anunciou a lojista.


O tribunal vibrou. Era isso o correto a fazer, pra vagabundo saber que não pode mexer assim, na maior, com gente de bem. Ana olhava para ele. Parecia bem distraído. Talvez esperasse alguém. Ana fez menção de ir embora: a babá, o filho... Uma senhora gorda deteve-a:


- Nem pensar. E se ele for atrás de ti? E quem vai contar para a polícia o que aconteceu?


Como ele iria atrás dela? A pé? Correndo atrás de seu carro 2.0? Não teve coragem de argumentar. Sentiu cheiro de pipoca doce. Nada da polícia. O homem lá, debaixo da marquise. Olhando bem, parecia jovem. A lojista renovou o mate e trouxe umas cadeiras de praia. A atendente trouxe as pipocas. A tabacaria fechou. A relojoaria e o mercado também. Chuva e vento, e raios, e trovões. Quando a bacia de pipocas estava pela metade, a polícia chegou. O homem nem se mexeu. Jogaram-no na viatura, foram embora. Ana foi liberada.


Quando chegou em casa, o filho dormia. Quentinho, agasalhado e perfumado. A casa estava na mais absoluta ordem. A babá nem reclamou do atraso. Ela nunca reclamava. Despediu-se da patroa. Um sorriso tímido ressaltou as rugas:


- Nem me importa a chuva. Só queria que meu guri mais velho ainda me esperasse. A gente combinou de se encontrar  na frente da tabacaria. Hoje ele começa no primeiro emprego de carteira assinada. Garçom de pizzaria. Quero dar a bênção antes de começar. Ontem até fiz um crediário e comprei um tênis novo pra ele fazer bonito lá...

terça-feira, 16 de março de 2010

A tartaruga e a feiticeira - adaptação de uma lenda africana

Contam que isso foi no tempo do era uma vez.


Nkulunkulu não mandava chuva, nem nuvem, nem trovão.


Estava bravo com os homens que ele mesmo fez.


Os animais, coitados, também sofriam com aquela desolação.






Os animais caminhavam em grandes bandos.


Nada de água, frutas ou pasto – os filhotes aos prantos.


Caminhavam léguas e léguas, matas e savanas.


Era um grande sofrimento naquelas terras africanas.






Até que, lá longe, uma grande árvore avistaram:


Carregada de saborosos frutos – logo constataram.


Chegando perto, uma dúvida logo os assaltou:


- Alguém sabe como Nkulunkulu essa fruta nomeou?






Ninguém sabia, ninguém nunca tinha ouvido:


- E se for um fruto proibido?


Se não soubessem o nome


Não poderiam matar a sua fome.






O Grou Azul, esticando as grandes asas, logo se ofereceu:


- Eu perguntarei a Nkulunkulu o nome que ele deu.


Voou até o céu, explicou o sofrimento dos animais.


Nkulunkulu foi logo dando o nome, sem mais:






Mussá, mussá, mussá


Mussangambirá, mussaé.






No caminho de volta, encontrou uma velha feiticeira raivosa


Que, de inveja, começou a cantar em verso e prosa:






Muga, selenga ingambela


Vina, quivina, vinimim.






Com a canção, o grande Grou se atrapalhou:


O nome da fruta na sua mente não vingou.


Muitos outros animais em vão tentaram.


A todos eles os versos da bruxa atrapalharam.






Até que a velha tartaruga se prontificou.


Nenhum bicho no seu sucesso acreditou.


Nkulunkulu também à tartaruga o segredo concedeu.


Quando passou pela bruxa, no seu casco se encolheu.



Não adiantou a bruxa cantar,


Não adiantou no casco tamborilar.


A tartaruga, encolhida, se concentrou


E a fome de todos os bichos aplacou.

UBUNTU





Meus lábios só fazem sentido na tua face;


minha mão só encontra abrigo na tua mão;


meus braços só são braços porque se abrem num caudaloso abraço.


Alegrar-se com a alheia alegria;


entristecer-se com a triste melodia: empatia.


Nossos sonhos são sonhados, suados sob o mesmo sol,


forjados no mesmo ferro, fundidos no mesmo fogo.


O choro ecoado no coro afugenta as lágrimas


- o sal do espírito entretecido com outros espíritos;


o Deus que habita em mim faz morada em ti:


Namastê, Shalom:


Ubuntu!

domingo, 14 de março de 2010

Uma história para pré-adolescentes

Essa é a minha primeira tentativa escrever para pré-adolescentes. O texto que segue já está há bastante tempo no meu computer. Dei uma revisada e lá vai...

Ele...







Eu sei que não deveria invadir a casa de ninguém, ainda mais sob as condições em que me encontrava. Mas achava que ele era meu amigo - ou até mais do que isso... E precisava de mim.



Eu o conheci em uma noite de chuva fina. Eu saía da escola, sempre com o medo das dez e meia da noite. Ele estava encolhido em um canto, escondendo a cabeça sob uma pesada e velha capa. Achei, pela estatura, que era um colega meu. Aproximei-me, oferecendo-lhe carona na minha sombrinha:



- Rafael, vem comigo. Não fica aí te molhando.



Quando terminei de falar, ele revelou aquele rosto branco. Branco demais. Estanquei com o susto. Rapidamente olhei em volta. Ninguém na rua.



- Não sou Rafael, sou Renato, Ana Paula... Ei, não precisa ter medo. Só estou molhado! – disse-me ele, de um jeito simpático e cativante.



Quis disfarçar meu medo: apesar de branquela, ele era bem bonitinho...



- Afinal, você não deve ser medrosa, voltando sozinha da escola a uma hora dessas, nessa escuridão e nessa chuva.



Claro que eu não era medrosa. Claro que eu não era tímida. Mas o que também era claro que não conseguia articular algo inteligente o bastante para dizer a ele. Ofereceu-se para me acompanhar até em casa – que remédio? No caminho, falamos pouco, quero dizer, eu só falei algumas asneiras monossilábicas.



- Então te deixo aqui. Vê se não fica dando confiança assim para estranhos como eu, tá? - disse-me ele, sorrindo do seu jeito, com os lábios unidos.



Balbuciei qualquer besteira e entrei correndo em casa. De onde veio aquele Renato que nunca vi mais branco e sedutor? Só podia ser novo na cidade. Ali todos nos conhecíamos...Depois, antes de dormir, fiquei repassando o acontecido e dei-me conta de que ele já sabia o meu nome. Será que alguém ... deixa assim.



Dormi mal, acordei com muita sede, como se tivesse tomado um porre. Logo eu... Estava distraída, não conseguia me concentrar no trabalho, muito menos nas bobagens das aulas de gramática. Na saída da aula, esperei meus colegas tomarem certa distância. Minha intuição se confirmou: ele estava no mesmo lugar.



Noite após noite, encontrávamo-nos na saída da aula. Sabia tão pouco sobre ele. Apenas onde morava, os pais eram muito ocupados, pesquisadores, morou em vários lugares do mundo. Conversávamos sobre música, filosofia, poesia ... ou ficávamos calados, contemplando a Lua. Queria beijá-lo, ou melhor, queria, desejava que ele me beijasse – mas isso não acontecia. Só me olhava no fundo dos olhos e era como se eu saísse do ar por breves instantes e voltasse com muita, mas muita sede de sei-lá-o-quê, como naquele primeiro dia.



Uma noite dessas, ele não apareceu. Ventava, ventava muito. Eu andava a esmo, tentando entender o porquê de sua falta. Meus passos me guiaram até a velha casa onde ele morava. Muita fumaça saía lá de dentro. E se ele estivesse desmaiado? Juntei meus caquinhos de coragem e derrubei, com muita facilidade, a velha porta carcomida por cupins. Na sala, um único móvel: uma poltrona enorme e antiga, na qual ele estava sentado. Ao fundo, o fogo já estava adiantado. Apavorada, gritei:



- Vamos, Renato, saia daí! O fogo!



- Tarde demais. – Respondeu sem pressa.



- Tarde por quê? Ainda dá tempo. E os seus pais? Camos ajudá-los!



Ele, calmo, aproximou-se de mim. Estava com uma capa, mas, desta vez, novinha em folha. Abraçou-me e envolveu-me com a capa. Por cima de seu ombro, eu via, apavorada, o fogo se aproximando.



- Não há pais. Não há Renato. Só o renascido. Lestat, lembra? É tarde demais, porque, também nesta existência, apaixonei-me pela minha presa. Pela sétima vez, te amei. Agora posso me libertar da minha maldição de vampiro. Serei devorado pelas chamas e renascerei, livre. Venha comigo! – Disse, sorrindo com a boca aberta pela primeira vez, exibindo os caninos brancos.



Era como se cenas de um filme antigo rodassem em minha memória. Vagas lembranças em preto-e-branco de lugares distantes assombraram-me. Nós já nos conhecíamos. Ele lia meus pensamentos. Quando me olhava no fundo dos olhos... O tempo fora do ar. A sede. O fato de já saber meu nome. Tudo explicado.



Quis desvencilhar-me de seus braços, quis desviar o olhar. Mas ele segurou-me firme, com uma das mãos segurando meu rosto em sua direção.



Acordei-me horas depois, na sala de emergência do hospital. Os médicos murmuravam qualquer coisa como “não é possível”, “mas ela estava toda queimada”. Uma enfermeira olhou-me com tamanha compaixão que criei coragem de perguntar por Lestat, ou Renato.



- Não havia mais ninguém naquela casa. Ela está abandonada há anos. O que uma mocinha como você estava fazendo lá?



Fingi que estava sonolenta. Não podia responder. Mais e mais médicos em minha volta. Parecia que estavam muito admirados. Um deles ordenou à enfermeira que me preparasse para os exames. Quando viraram as costas, fugi pela janela.



Hoje, continuo com uma sede tremenda. Mas já sei o que a sacia. O meu nome, depende. Hoje é Natasha. Amanhã, não sei. Quem sabe nós nos encontraremos na próxima esquina?

terça-feira, 9 de março de 2010

Reação

   Ela saiu do trabalho mais cedo. Jogou os sapatos longe e colocou um dos CDs que surrupiara. Vivaldi greatest hits. Leu o título e abanou a cabeça. Programou o aparelho para repetir uma faixa de Summer, com movimento Allegro. Foi ao quarto e separou um vestido vermelho.Ainda estava com a etiqueta do preço. Os sapatos, a lingerie, o colar, os brincos - tirou tudo das sacolas que trouxera da rua. Escolheu um perfume floral e frutado, com notas cítricas para quebrar uma possível doçura excessiva. Começou a arrumar tudo sobre a cama e avistou, na cabeceira, o aparelho celular dele. Sorriu. Pegou. Colocou de volta.


    Enquanto a banheira enchia, foi até o jardim. Colheu algumas plantas: sete flores de lavanda, três galhos de alecrim, sete inflorescências de manjericão. Olhou em volta, espiou o pátio vizinho. Pulou o muro: mais três galhos de arruda, sete rosas, três folhas de guiné e três galhos de milefólio. Voltou com a colheita escondida debaixo da blusa. Cantarolava. Passou pela cozinha, pegou um pote de mel, sete cravos-da-índia e três pauzinhos de canela. Jogou tudo na banheira. Mexeu a mistura com o escovão e falou algumas palavras. Olhando no espelho, foi despindo-se devagar. Acendeu uma vela branca e outra rosa. Mergulhou na poção, acomodou-se, fechou os olhos e sorriu.


     Concluído o ritual, foi ao quarto vestir-se. Sorria. O celular esquecido sinalizou o recebimento de mensagem. Ela deu um passo na direção do objeto. Estaqueou. Acentuou os pés-de-galinha em volta dos olhos. Tomou o aparelho, apertou vários botões até que parou na mensagem recebida. Suas mãos tremiam. Ficou olhando para o visor, embaçado pelo suor dos dedos. Pressionou mais algumas teclas. Leu outras mensagens. A toalha em que se enrolara escorregou pelo seu corpo. Com a expressão abobalhada, caiu, pesada, sobre a cama. Seu rosto avermelhou-se. Soluçou, chorou e gritou palavrões. Apagou a mensagem recebida. Tombou na cama, nua, em posição fetal. Perdeu-se no tempo. Levantou-se, com o rosto em brasas, guardou o vestido vermelho, procurando desamassá-lo com as mãos. Depositou o celular no lugar.     Socou as ervas recolhidas da banheira no cesto de lixo. Vestiu um surrado pijama preto. Desligou o som e as luzes. Desabou no chão da sala, soluçando. Foi até a cozinha arrastando-se, remexeu gavetas, prateleiras, bateu a porta da geladeira. Com um vidro de doce de leite nas mãos, sentou-se no tapete, escorou-se na pia e lambuzou-se. Chorou. Ergueu-se, foi até o porão, abriu um baú. Do fundo falso, tirou uma pistola calibre 22. Verificou a munição e devolveu-a. Soluçou mais um pouco. Voltou à sala, estirando-se em decúbito ventral. No fim de meia hora ou mais de imobilidade no piso frio, levantou a cabeça, limpou o nariz com uma das mangas e os olhos com a outra. Cambaleando, subiu a escada que levava ao sótão. De uma caixa, tirou uns óculos de sol enormes e muito escuros. De outra, uma peruca que uma paciente usara durante a quimioterapia e que ela “pegara” de lembrança. Por fim, vestiu um sobretudo preto que também pertencera a algum ex-paciente, outro souvenir que ela escondera.


   Foi até a garagem e pegou a chave do carro preferido dele – aquele que usava só em ocasiões especiais. Fez roncar alto o motor. Saiu espichando as marchas. Dirigiu-se à rodovia mais próxima – o paraíso dos controladores eletrônicos de velocidade. O velocímetro marcava 140, 160 quilômetros por hora; as placas de sinalização, 50, 60 ou 80. A cada radar ultrapassado, um urro abafava Die Walküre. A certa altura, os controladores rarearam. Entrou em uma estrada vicinal, parou em um lugar ermo, jogou seus acessórios em um córrego e fez meia-volta.


   Estacionou a relíquia na garagem. Escolheu um vestido floreado, prendeu os cabelos. Ligou o rádio da cozinha em uma estação pop. Colocou um avental que combinava com a cortina. “Chocolate” foi a palavra que escreveu na lista de compras pendurada na porta do freezer. Separou alguns legumes e começou a cozinhar. Quando o carro dele entrou no pátio, o consomé estava quase pronto. Do bolso do avental, ela tirou uma cartela de remédios – ainda havia três comprimidos.

quarta-feira, 3 de março de 2010

Perseguição

Ela deixou a pasta com as fotos e os documentos sobre a cama - arremate perfeito para seu plano. Bateu com força a porta do quarto do hotel. Sequer cuidou para não tropeçar ou escorregar nos degraus desgastados. Na calçada, cruzou com um senhor de terno escuro. Ele andava a passos rápidos. Dois rapazes tentavam acompanhá-lo. Ela ajeitou o lenço na cabeça. Relaxou os ombros. A polícia faria o previsto. Ajeitou as alças da bolsa pesada, apalpou-a e prosseguiu. Se os seus aliados não cumprissem o trato, as joias dar-lhe-iam o futuro.




Precisaria andar mais quatro quadras até chegar ao local combinado. Levariam, segura, de volta ao Brasil. Dar-lhe-iam documentos novos. Viaturas da polícia, ambulância, carro de bombeiros passaram por ela. O barulho infernal das sirenes não a afetou. Embalava-se nos seus novos planos. De longe, avistou uma confusão. Fumaça, pessoas em volta, policiais tentando isolar o local. As pernas tremeram com a hipótese que lhe veio à mente. E se fosse com eles? Apressou o passo. Duas vans da imprensa local passaram voando. Era coisa grande.


Andava na contramão. As pessoas batiam nela sem pedir desculpas. A bolsa pesada e o salto alto atrasavam-lhe o ritmo. A respiração, ofegante, dificultada pelo cheiro de gasolina e de fumaça. Um passante derrubou-a para dentro de um bar. Caiu de joelhos à porta. O garçom ajudou-a. Aconselhou-a a mudar de direção, pois logo em frente houvera um atentado. Dizem que foram os neonazistas. Ela não vira? Explodiram um carro. Ela disfarçou seu pânico, pedindo uma água. Alguém colocou a mão em seu ombro. Não reconheceu o homem que pegou o seu braço e pediu que o acompanhasse.


Caminharam em silêncio alguns instantes. Ele disse que não temesse. Estava tudo bem. Ela segurava firme a sua bolsa. Longe da confusão, um carro os aguardava. Reconheceu o motorista. Aliviou-se. Entraram no carro. O motorista falou:


 - Conhece a expressão “boi de piranha”?- riu-se. - Foi o que fizemos.


Os dois homens riam. Ela entendeu a estratégia. Pegaram o carro errado.


- Por isso perderam a Guerra. - Divertia-se o outro - Fizeram, literalmente, uma cortina de fumaça para ti.


Partiram. Ela encostou a cabeça no banco do carro. Os joelhos doíam. As pernas continuavam bambas. Alcançaram-lhe uma pasta com seus novos documentos. Renata Grimbald. Riu com a brincadeira do nome. O motorista falou:


- Amanhã teu nome aparecerá como vítima em todos os jornais. A Norma já era...


Queria perguntar de onde tiraram o corpo que ficara em seu lugar. Um carro cortando-lhes a frente suspendeu a pergunta. Outro carro os perseguia. Pegaram a rodovia em alta velocidade. Perseguição. Tiros. Andavam em zigue-zague. Os perseguidores encostavam. Em frente, uma barreira policial.


Pararam. Seus perseguidores furaram a barreira. Duas viaturas foram atrás. Um dos policiais falou com o motorista:


- Estão a salvo agora, chefe. Foi por um triz.


O policial deu duas batidas de leve na lataria. Prosseguiram. Ela tinha o susto nos olhos. Não imaginava a dimensão da encrenca em que se metera. Só queria se dar bem...


Mais adiante, os policiais tiravam os perseguidores do carro capotado. O sangue cobria parte da careca de um deles. Pararam. Ela ficou no carro. Um dos perseguidores escapou e foi ao encontro dela. Com o rosto transfigurado de ódio, bateu no vidro, gritando:


- Nós vamos te pegar nem que seja no inferno!