terça-feira, 9 de março de 2010

Reação

   Ela saiu do trabalho mais cedo. Jogou os sapatos longe e colocou um dos CDs que surrupiara. Vivaldi greatest hits. Leu o título e abanou a cabeça. Programou o aparelho para repetir uma faixa de Summer, com movimento Allegro. Foi ao quarto e separou um vestido vermelho.Ainda estava com a etiqueta do preço. Os sapatos, a lingerie, o colar, os brincos - tirou tudo das sacolas que trouxera da rua. Escolheu um perfume floral e frutado, com notas cítricas para quebrar uma possível doçura excessiva. Começou a arrumar tudo sobre a cama e avistou, na cabeceira, o aparelho celular dele. Sorriu. Pegou. Colocou de volta.


    Enquanto a banheira enchia, foi até o jardim. Colheu algumas plantas: sete flores de lavanda, três galhos de alecrim, sete inflorescências de manjericão. Olhou em volta, espiou o pátio vizinho. Pulou o muro: mais três galhos de arruda, sete rosas, três folhas de guiné e três galhos de milefólio. Voltou com a colheita escondida debaixo da blusa. Cantarolava. Passou pela cozinha, pegou um pote de mel, sete cravos-da-índia e três pauzinhos de canela. Jogou tudo na banheira. Mexeu a mistura com o escovão e falou algumas palavras. Olhando no espelho, foi despindo-se devagar. Acendeu uma vela branca e outra rosa. Mergulhou na poção, acomodou-se, fechou os olhos e sorriu.


     Concluído o ritual, foi ao quarto vestir-se. Sorria. O celular esquecido sinalizou o recebimento de mensagem. Ela deu um passo na direção do objeto. Estaqueou. Acentuou os pés-de-galinha em volta dos olhos. Tomou o aparelho, apertou vários botões até que parou na mensagem recebida. Suas mãos tremiam. Ficou olhando para o visor, embaçado pelo suor dos dedos. Pressionou mais algumas teclas. Leu outras mensagens. A toalha em que se enrolara escorregou pelo seu corpo. Com a expressão abobalhada, caiu, pesada, sobre a cama. Seu rosto avermelhou-se. Soluçou, chorou e gritou palavrões. Apagou a mensagem recebida. Tombou na cama, nua, em posição fetal. Perdeu-se no tempo. Levantou-se, com o rosto em brasas, guardou o vestido vermelho, procurando desamassá-lo com as mãos. Depositou o celular no lugar.     Socou as ervas recolhidas da banheira no cesto de lixo. Vestiu um surrado pijama preto. Desligou o som e as luzes. Desabou no chão da sala, soluçando. Foi até a cozinha arrastando-se, remexeu gavetas, prateleiras, bateu a porta da geladeira. Com um vidro de doce de leite nas mãos, sentou-se no tapete, escorou-se na pia e lambuzou-se. Chorou. Ergueu-se, foi até o porão, abriu um baú. Do fundo falso, tirou uma pistola calibre 22. Verificou a munição e devolveu-a. Soluçou mais um pouco. Voltou à sala, estirando-se em decúbito ventral. No fim de meia hora ou mais de imobilidade no piso frio, levantou a cabeça, limpou o nariz com uma das mangas e os olhos com a outra. Cambaleando, subiu a escada que levava ao sótão. De uma caixa, tirou uns óculos de sol enormes e muito escuros. De outra, uma peruca que uma paciente usara durante a quimioterapia e que ela “pegara” de lembrança. Por fim, vestiu um sobretudo preto que também pertencera a algum ex-paciente, outro souvenir que ela escondera.


   Foi até a garagem e pegou a chave do carro preferido dele – aquele que usava só em ocasiões especiais. Fez roncar alto o motor. Saiu espichando as marchas. Dirigiu-se à rodovia mais próxima – o paraíso dos controladores eletrônicos de velocidade. O velocímetro marcava 140, 160 quilômetros por hora; as placas de sinalização, 50, 60 ou 80. A cada radar ultrapassado, um urro abafava Die Walküre. A certa altura, os controladores rarearam. Entrou em uma estrada vicinal, parou em um lugar ermo, jogou seus acessórios em um córrego e fez meia-volta.


   Estacionou a relíquia na garagem. Escolheu um vestido floreado, prendeu os cabelos. Ligou o rádio da cozinha em uma estação pop. Colocou um avental que combinava com a cortina. “Chocolate” foi a palavra que escreveu na lista de compras pendurada na porta do freezer. Separou alguns legumes e começou a cozinhar. Quando o carro dele entrou no pátio, o consomé estava quase pronto. Do bolso do avental, ela tirou uma cartela de remédios – ainda havia três comprimidos.

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