terça-feira, 29 de março de 2016

De volta à casa da Vovó Sinistra

Os primos João Pedro e Gabriela estavam eufóricos: passariam a noite na casa da avó. Isso, por si só, já seria bom, mas tinha mais: aquela Vovó era a mais radical e sinistra que uma criança poderia ter.
As mães de ambas as crianças chegaram ao mesmo tempo à casa da Vovó. Só as largaram lá e saíram apressadas. João Pedro e Gabriela adentraram juntos aquele lindo e original sobrado roxo com bolinhas amarelas.  Logo chamaram:
- Vovó, seus netinhos chegaram! – anunciou Gabriela.
- Vovó, estou com fome de pizza! – avisou João Pedro.
As crianças continuaram chamando pela Vovó, mas nada de ela aparecer. Por onde andaria?  Foram andando pela casa. Na chão da cozinha, encontraram o seguinte aviso escrito com sal:
SE QUISEREM VER A VOVÓ DE NOVO, TERÃO QUE DESCOBRIR QUEM ELA É.
A PRIMEIRA PISTA ESTÁ NA BOCA DAQUELE QUE NÃO LAVA O PÉ.

Gabriela resmungou um “era só o que faltava”. João Pedro animou-se: era uma caçada. Mas logo depois pensou alto:
- E se a vovó estiver correndo perigo, prima?
- Tá bom, mas depois eu quero uma fatia a mais da pizza de quatro queijos – disse a menina, disfarçando a preocupação. – Por onde começamos?
- Quem é que não lava o pé? O sapo, naquela música boba. Mas onde tem sapo aqui?
Gabriela apontou para cima: em uma prateleira alta, havia uma coleção de sapos. Sapos de barro, de porcelana, de ferro, de vidro, de cristal...
Com ajuda de uma escada, João Pedro examinou a coleção. Na boca de um sapo, havia um papelzinho enrolado. Dentro dele, estava escrito o seguinte:
QUEM É A AVÓ VOCÊS PRECISAM SABER
E DE SEUS GOSTOS DEVEM ENTENDER
OUÇAM A MÚSICA LINDA DE DOER
UMA BRASA, MORA, DE ENLOUQUECER.

- Vamos fuçar naqueles discos da vovó – sugeriu João Pedro.
- Aqueles que ela chama de Vinícius? – perguntou Gabriela.
João Pedro teve um acesso de riso: não era Vinícius. Era vinil. A vó também chamava de bolachões. O que a dupla não entendeu era onde entrava a brasa e onde ela morava.
Junto aos discos – do Roberto Carlos, da Vanderleia, do Renato e seus Blue Caps, entre outros –, havia uma caixa de madeira, fechada com um cadeado de combinação de números. Nele, havia uma etiqueta colada, na qual se lia: A SENHA É O ANO DE NASCIMENTO DA VOVÓ.
E agora? Como descobrir? João Pedro teve uma ideia:
- Prima, com que idade as meninas casam e têm bebês?
- Na idade que quiserem, ué. Que pergunta mais boba.
- Tá, mas mais ou menos...
Discutiram, discutiram. Chegaram à conclusão de que, se as mães os tiveram com cerca de 30 anos, e agora a mais velha delas tinha 40... 30 mais 40 é igual a 70. Se a avó tinha 70, a conta era 2016 menos 70, o que dava... 1946. Colocaram o número. Não deu certo. Tentaram 1945. O cadeado abriu.
Dentro da caixa, havia uma coisa muito esquisita, de plástico, retangular, com dois furos pelos quais passava uma espécie de fita marrom. Era mais ou menos assim:
Ilustração de fita K7  com a escrita: “ouça-me se for capaz”.
                Como ouvir aquilo? Gabriela balançou o objeto, colocou perto do ouvido. Deveria haver um aparelho para encaixar aqueles dois buracos. Mas onde?
                - Que tal aquele? —perguntou João Pedro, apontando para um aparelho retangular com uma tampa móvel. — Tem uma tecla escrito “play”.
                Abriram a tampa, fizeram os devidos encaixes e apertaram o play. Do aparelho saiu a voz nada melodiosa da avó, que cantava:
Netinhos queridos, do meu coração,
A próxima pista está no porão
É de iluminar
Cuidado para não incendiar
Não é lâmpada, não é da cidade,
É de querosene, não de eletricidade.

                E o medo de ir àquele porão? O que se faria com ele? De conta que não existia, ué! As crianças desceram ao porão, mas, claro, ligaram as luzes. Eram tantas coisas diferentes lá: até identificaram uma máquina de escrever, igual à que viram no museu naquela visita com a escola. Mas o que seria aquele objeto de iluminar? Gabriela não tinha certeza, mas só poderia ser aquele de vidro, já que tinha um papel roxo dentro dele. Bingo: acharam mais uma pista, que, em letras prateadas, dizia:
Slacks, brim coringas, japonas:
Só os nomes é que são cafonas.
Bata, redingote, carpim:
Todo mundo chamava assim.
É lá que devem procurar por mim.
               
Procurar onde? O que queriam dizer aquelas palavras? Os primos pensaram, pensaram. Lembraram que “cafona” quer dizer brega: já viram isso em uma aula. O que a vovó tinha de mais brega eram roupas. E bem na frente deles havia um enorme baú. Só poderia ser de roupas velhas. Tentaram arrastá-lo para perto da claridade das lâmpadas, contudo pesava demais. Abriram ali mesmo: será que havia outra pista? Tiraram blusas, vestidos – tudo muito colorido e floreado. A cara da vovó! Mas algo se mexeu e gemeu:
- Uhuuuuuuuuuu!
Os primos sentiram um clarão no rosto, que os cegou por um instante. Recobrada a visão, viram a Vovó saindo do baú, rindo e conferindo no seu celular, de última geração, a foto da cara assustada dos netos, anunciando:

- Essa vai para o álbum de família!

Um comentário:

  1. Adorei (claro)! Principalmente o "ouça-me se for capaz!". Estava divagando sobre quantas mudanças ocorreram nessas últimas décadas e que hoje as crianças não entendem nem conseguem compreender sua utilidade.
    Texto excelente!

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