quarta-feira, 21 de setembro de 2011

quinta-feira, 15 de setembro de 2011

Além do bem e do mal

Ana não queria fazer tudo aquilo. Era preciso. Desgostava, já era mecânico, brilho fosco. No entanto, brilho. Diziam, pelo menos. Era preciso cumprir as muitas tarefas, todas muito sérias, todas de alta responsabilidade para uma mulher. Entende? Chegara até ali, tanto custo, tanta entrega. Que fizesse jus às concessões. Dela e dos outros.

O peso do necessário esmagava suas vontades. O resto de rebeldia caía-lhe sob as orelhas, no cabelo que não usava lisos, como deveria. Ao resto todo aderiu. Civilizou seus gostos por cores, cheiros, texturas. Fantasiava-se à altura do espetáculo, a mulher do alto cargo. Os calos que doíam não eram os dos pés encolhidos nos sapatos de saltos. Aprendera e desaprendera coisas diversas, todas na ordem do parecer. Porque o ser, antes, lhe transbordava, anacrônico, feliz demais, colorido demais, barulhento demais. Cortou as palavras, as cores. Engolia os amargos por doces; os ácidos por suaves. O delicado não calejava sob o disfarce, saudoso de passear ao sol.

Um dia, era sábado. Os sons e odores da casa vizinha. Nunca mais foi na sua. Abriu a cortina. Teve coragem: escancarou a janela. Os sabiás não cantavam no tom do teclado do computador. O céu azul não combinava com as pastas pretas. O sol quente e o vento fresco não conheciam o significado de ar-condicionado.

Num entanto de rebeldia, desligou o computador. Era a rainha no seu trono de escritório. Foi ao armário velho do fundo da garagem. Desceu caixas e caixas. Pegou agulhas de tricô. Examinou, desentortou seus cetros. Lãs, restos de outras épocas, lembranças felizes de tempos desformatados. Voltou ao escritório doméstico e escondeu-se sob a janela aberta. Ana deu uma laçada. Ainda lembrava tanto... As meias, os casaquinhos... Era tempo de tecer com outras linhas.

terça-feira, 13 de setembro de 2011

Humano, demasiado humano

Ana mortificava-se cada vez que as pessoas diziam aquilo. "Sensível  - e demais". Ela sabia que os outros sabiam. Não era uma simples questão de sentir. As muitas coisas perversas estavam lá, gritantes, pulsantes. Todos viam. Apenas se encarregavam de ver a medida do que lhes interessava. Para suportar a dor. Para sobreviver à máquina de moer gente. Para manter os conchavos.
Ana negava-se a não ver. Não poderia perder-se de si mesma. Não suportaria ver-se escorrendo entre os dedos. Nem a si nem às que foram antes dela. Vivia no limite do suportável. Esticava-se, mas a sua integridade não era tão elástica como outras por aí.
Comprou briga. Peitou os monstros amarelos. O eles que engoliram, devoraram, fartaram-se não era ela. Eram seus restos mundanos.
Iluminou-se.
 Devorada, balança os ombros: fazer o quê, se há quem prefira não admitir aquilo que apenas se insinua, mas está lá, (pre)potente, incólume, nutrido de covardia e de hipocrisia?
Os monstros amarelos continuam lá. Já não fazem diferença.
Ana venceu . Ainda que muitos achem que perdeu. Tanto faz, para ela. Tem o sorriso confiante de quem se negou à alimentação de algo que não era vegetal nem animal. Apenas humano, demasiado humano.

sexta-feira, 2 de setembro de 2011

Ecce homo

Ecce homo


Os livros pesavam. Não mais que todas as tarefas inconclusas. Pressa, ela tinha muita. Havia fila para retirada dos livros. Ana nunca vira isso antes naquele horário. Duas pessoas na frente nem chega a ser fila, consolava-se. Seria rapidinho. Meio-dia, só um atendente para retirada e outro para a devolução. Se ela soubesse usar o tal terminal de autoatendimento. Aquilo não era banco! Ou era? De certas duas formas. Mas que muvuca era aquela? Por que aquelas duas não saíam da frente do balcão? O atendente só balançava a cabeça. Ana apurou o ouvido:

- Mas, Tio, eu preciso do livro. Tu não entendes?

A moça falou “preciso” esticando o “i” e flexionando as pernas. Ana reparou no casaco da moça. Lindo. O rapaz da frente desistiu:

- Eu larguei aquelas duas. – Disse o moço para Ana.

Ana ficou feliz: um a menos. Coitado, se estressou. Esses jovens... Como se ela não tivesse zilhões de trabalhos para corrigir, aula para preparar, capítulo da tese para terminar. Ana deu um passo a frente. A moça remexeu-se toda. Ana pôde ver a marca do jeans. Dolce&Gabana. Ana sabia. Sabia bem. Ana esquecera de pegar aquele livro do Nietsche. Azar. Seguiria as próprias ideias. Riu-se. Sempre fora a Ana inteligente; a irmã, a Ana bonita. A acompanhante da mocinha enrubescia, enrubescia. A mocinha insistia, insistia...

- Mas Tio, não vê que...

Ana não queria irritar-se. O atendente, pela décima vez, explicava que fila de espera era fila de espera. Por que ela não comprava o livro? Será que não podia comprar? Não, aquelas não eram roupas de brechó. Bem, poderiam ser emprestadas. Mas o cabelinho loiro fabricado no capricho não. Coisa de salão chique. Também ninguém empresta sapato, deforma. Ana sabia. De ouvir falar. Entrara ouvidos adentro no seu antigo emprego. Mesmo que não quisesse. Mesmo que não fosse ser do mesmo mundinho.Tantas e tantas vezes!

O outro rapaz que estava na fila também desistiu. Ana sentiu-se aliviada. Menos dois. Esses jovens não têm paciência pra nada.

O atendente gastara os argmuentos. A moça apelava para o charme.

- Mas, olha só, quem vai saber, né, Tio? Hoje já é quarta, faz meu fíndi mais feliz, please...

O cabelo brilhava. Só se fosse filha de cabeleireira. Ou se tivesse pegado as roupas da patroa. Mas aquele jeitinho era de moça mimada. Ana sabia. Sabia bem.

Formava-se uma pequena fila atrás de Ana. Cinco pessoas. Ana sentia-se bem em estar na frente. Súbito, gostou da mocinha, embora não o soubesse. Devia a ela seus instantes de glória, intuiu. Ana não sabia. Sabia mal. Finalmente, era a primeira em algo. Que a mocinha pudesse comprar o livro! Que propusesse burlar o regulamento! Que usasse o jeitinho! Ana era a primeira - da fila, mas a primeira. Jamais sairia dali para buscar o livro do Nietsche.

A amiga ao lado interveio:

- Eu vi esse livro lá na Fnac por...

- Tu tá doida, né? Capaz que vou gastar dinheiro em porcaria de livro. – Interrompeu, irada, a moça. – Só tu mesma pra ter um teto desses.

A amiga sorriu roxo. Outro atendente chegou.

- Próxima!

Ana era a próxima. Não desgrudava os olhos de sua heroína. Aquela menina seguia suas próprias ideias.

- Carteirinha, por favor.

Ana entregou, automática. A mocinha continuava, agora sem a amiga ao lado e para um supervisor. Ele balançava a cabeça negativamente.

- Senha, por favor.

Ana contemplava, absorta. Aquela menina seguia suas ideias. Nunca ouvira tão brilhante argumentação. Vai ver que o livro teria uma finalidade...

- Sua senha, senhora, por gentileza.

Ana digitou.

- Pronto. Próximo.

Ana teria que sair dali. Pegou os livros. Passou o cartão do lado errado da roleta. O monitor teve de ajudá-la. Vergonha. Caminhava devagar. Não conseguiria terminar todas as tarefas mesmo. Segurava à força aquele gostinho ácido de contentamento desordenado. Pagou o estacionamento. Arrastava-se. Uma lufada de frescor e perfume. Era a mocinha. Zunindo para um C4 vermelho. Colocou a pasta, os livros sobre o capô. Procurava algo na bolsa. Ana foi se aproximando. A mocinha bateu com a bolsa na pilha de coisas sobre o capô. Tudo se espalhou no chão. Ana correu para ajudar. A moça foi mais rápida. Recolheu tudo, jogou-se no carro. Havia um livro no chão. A moça ligou o carro. Ana recolheu o livro. Grande, pesado e velho. A mocinha freou a tempo de não atropelar Ana. Abriu o vidro e gritou:

- Tá maluca, dona?

Ana olhou o título: “Ecce homo”. Mostrou o livro pra mocinha:

- É seu?

A mocinha falou:

- Pirou que vou ler essa velharia. Pega pra ti ou joga no lixo.

E saiu queimando pneus.