quinta-feira, 15 de setembro de 2011

Além do bem e do mal

Ana não queria fazer tudo aquilo. Era preciso. Desgostava, já era mecânico, brilho fosco. No entanto, brilho. Diziam, pelo menos. Era preciso cumprir as muitas tarefas, todas muito sérias, todas de alta responsabilidade para uma mulher. Entende? Chegara até ali, tanto custo, tanta entrega. Que fizesse jus às concessões. Dela e dos outros.

O peso do necessário esmagava suas vontades. O resto de rebeldia caía-lhe sob as orelhas, no cabelo que não usava lisos, como deveria. Ao resto todo aderiu. Civilizou seus gostos por cores, cheiros, texturas. Fantasiava-se à altura do espetáculo, a mulher do alto cargo. Os calos que doíam não eram os dos pés encolhidos nos sapatos de saltos. Aprendera e desaprendera coisas diversas, todas na ordem do parecer. Porque o ser, antes, lhe transbordava, anacrônico, feliz demais, colorido demais, barulhento demais. Cortou as palavras, as cores. Engolia os amargos por doces; os ácidos por suaves. O delicado não calejava sob o disfarce, saudoso de passear ao sol.

Um dia, era sábado. Os sons e odores da casa vizinha. Nunca mais foi na sua. Abriu a cortina. Teve coragem: escancarou a janela. Os sabiás não cantavam no tom do teclado do computador. O céu azul não combinava com as pastas pretas. O sol quente e o vento fresco não conheciam o significado de ar-condicionado.

Num entanto de rebeldia, desligou o computador. Era a rainha no seu trono de escritório. Foi ao armário velho do fundo da garagem. Desceu caixas e caixas. Pegou agulhas de tricô. Examinou, desentortou seus cetros. Lãs, restos de outras épocas, lembranças felizes de tempos desformatados. Voltou ao escritório doméstico e escondeu-se sob a janela aberta. Ana deu uma laçada. Ainda lembrava tanto... As meias, os casaquinhos... Era tempo de tecer com outras linhas.

Um comentário: