terça-feira, 19 de julho de 2011

Ana não se concentrava em sua leitura. Mas quem não notaria aquele grupo? Ana lutava para tirar os olhos delas, as espetaculosas. Abrigos de ginástica, adereços nos cabelos surrupiados das netas, um ou outro botox e aqueles estranhos lenços amarelos em todos os pescoços, embora amarrados das mais diversas e bizarras maneiras. Para onde iriam? O fragmento de conversa que Ana conseguiu escutar não foi muito elucidativo:


- Por que medo de avião? – riu-se, teatral, uma das viajantes.- Bem capaz...Se o avião cair, já pensou na comoção nacional?

Ela não ouviu a resposta da interlocutora. Um grupo formava-se em torno da insólita palestrante. Ela prosseguiu:

- Já pensou? Nossos nomes em todos os noticiários, o jornal nacional terminando em silêncio em nossa homenagem, as alegres senhoras da melhor idade?

Outra completou o raciocínio:

- Bem melhor do que morrer atropelada na esquina de casa...

- ... ou de doença ruim em leito de hospital.- retomou a palestrante.

Ana riu-se: só faltava agora uma delas puxar um protesto contra as fraldas geriátricas.

- Imagina: tu morres e ninguém fica sabendo...

O burburinho consensual do grupo dos lenços amarelos provocou um calafrio em Ana: estariam elas torcendo que o avião caísse? Ana dispensava aquela fama. Que Deus a livrasse que o grupo estivesse no mesmo voo que ela.

- Minha irmã morreria de inveja de ver meu nome na TV.

Não, isso já era demais para Ana. Colocou os fones de ouvido e retomou a leitura. Aumentou o volume da música até o limite do suportável. Vez que outra, erguia os olhos para o grupo. Até que debandaram. Foram-se. Fila de embarque prioritário: Ana também um dia quer chegar lá.

Ana tirou os fones. Foi ao banheiro. Anunciava-se a última chamada para o embarque do voo 1938 da Gol com destino a Belo Horizonte e demais escalas no portão 6. O voo delas, só poderia. 1938. Devem ter nascido nesse ano, pouco antes, pouco depois. E que belo horizonte pintaram na sala de embarque... Ana gostou da associação que fizera. Precisava escrever isso. Foi quando anunciaram:

- Sra. Ana Maria de Souza, queira se apresentar ao funcionário da Gol no portão 6.

Não entendeu: como assim, apresentar-se ao funcionário? Seu voo era só dali a meia hora. Não, não era: conferiu o cartão de embarque, estava enganada. Era o voo delas. A voz do além repetiu:

- Sra. Ana Maria de Souza, queira se apresentar ao funcionário da Gol no portão 6.

Ora, Ana Maria de Souza. Há muitas anas marias de Souza. Ela era a Ana da Dona Maria e do seu José. Mas, havendo muitas anas filhas de marias e josés, era a mulher do João e a mãe da Kammilly e da Kettlyn.

A voz insistia. Ela encarregou-se de não ouvir. Era o voo delas. Não o dela. Não era mulher de coisas dessa natureza, de medrar e de dissimular. Em todo caso e no caso todo, arrumou desculpa quando chegou em casa. Qualquer uma poderia ser anamariadesouza. Ninguém poderia ser ela mesma. Era a parte que lhe cabia nesse latifúndio.

Um comentário:

  1. É isso aí, por via das dúvidas, melhor seguir a intuição feminina. Ela nunca falha!

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