CARRO NOVO
Para a Vera Winter, que me deu a ideia inicial.
Ela ganhou um carro novo. Novinho em folha. Vermelho flamante! Air bag, essas muitas demais coisas. Ela foi dar a primeira volta. Bem pertinho, como de resto eram todos os lugares naquele distrito. Só ali no consultório do marido, levar uns papéis e voltar. Como se engata a primeira? Automático.
Rua vazia, estacionou bem. As pernas tremiam ao subir as escadas do consultório. Inverno alto, sala de espera cheia. Cumprimentou a todos, sorriu, redundou-se. Beirava à primeira-dama.
No entanto, ao sair do consultório, congelou no primeiro degrau. Fato inédito no distrito, dois outros carros apertavam o seu. Como sairia, com aquela banheirinha flamejante dali?
Mal controlava as pernas ao descer as escadas. Nenhum plano bom o bastante assomava-lhe à mente. Eis que surge, na esquina, um daqueles cidadãos que ela já avistara no consultório do marido. Era boa gente, o jeito sério atestava. Depois, naquele fim-de-mundo-à-esquerda, valiam, ainda, os fios do bigode. Ele tinha muitos.
- Será que o senhor poderia me ajudar? – perguntou a iminente primeira-dama.
O sujeito não disfarçou o espanto. Ajeitou o pala e a boina, pigarreou e respondeu:
- Mas, com orgulho, Dona, seu criado! O que se passa?
A notável senhora explicou que o carro estava com um defeitinho, coisa pouca vinda de fábrica, precisava de ajuda pra tirar dali, sabe como é mulher. Odiou-se por dizer isso. Simone de Bevouir que fosse às favas, era uma emergência.
O homem tirou a boina, cabelo seboso evidenciou-se. A distinta dama arrependeu-se, mas já era tarde: entregou a chave. A quantos dias ele não tomava banho? – Calculou ela. O tosco sujeito tirou o carro em duas manobras. E seguiu com ele. A estupefata senhora acompanhou o carro com os olhos. Não, não poderia gritar. E agora? Enganara-se quanto aos fios do bigode. Nem lá, onde o diabo perdeu as meias, valia essa regra. Fora idiota. Mas certa ingenuidade até lhe faria bem. Isso se não fosse com o carro. Justo o carro. Novo. Flamante.
Polícia. Era o que precisava. Nisso, a secretaria do marido e todos os pacientes da sala de espera desciam as escadas. Grande público para assistir à sua espetacular demonstração de estupidez.
- A senhora está bem? Não lhe fizeram nada?
As pessoas a cercaram. O marido voou escadaria abaixo. O que houve? Como souberam?
- Uma senhora da rua de baixo ligou pro consultório falando que viu um homem mal encarado com o seu carro. Já chamei a polícia.
Ela quis contar, mas não teve tempo. A sirene da polícia. O marido a sacudindo. Metade do distrito comentando a sua palidez. Quem seria o bandido? Quando o Doutor fosse o subprefeito, não haveria mais essas barbaridades ali. Isso é lá coisa que se faça com uma dama tão caridosa?
As vozes clamavam por justiça. A senhora queria contar. A boca secou. A imagem lhe caía bem. Melhor que a boca secasse. Melhor que estivesse pálida. Desmaio não, porque não pode ser fraca demais. Vítima com dignidade é ótimo pra qualquer campanha. Lá no final da rua, um ronco potente de motor. Buzina, buzina abriu alas. Era o flamante. Os dois policiais mandaram o povo se afastar, porque, qualquer coisa, correria bala. Ah, se correria.
O homem parou o carro no meio da rua. Saiu sob mira trêmula dos dois revólveres. O povo, incrédulo, murmurou: “O Guedes, logo o Guedes”.
Sem nada entender, ele se dirigiu à grande dama, e amparada pelo marido e duas enfermeiras:
- Seu carro não tem problema nenhum, não, dona.
Foi quando quatro paisanos o imobilizaram. Chutes, pontapés. De dentro da viatura, o homem berrou:
- O problema é naquela pecinha atrás do volante.
Muito bom!!! Infelizmente eu tenho algumas semelhanças com a personagem do conto, rsrsrsrs!
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