Juntei a proposta da Oficina (terminar com a frase do Camões: "Para tão longo amor, tão curta vida.” ) com a história que meu aluno Elemar, de TL II, contou em aula - algo parecido realmente ocorreu. Deu no seguinte:
O capítulo das maçãs
Era no tempo em que frutas davam em árvores do seu próprio quintal, ou – muito melhor – do quintal do vizinho. Em São José do Cedro, fruta que dava era caqui, laranja, goiaba. E bergamota – coisa de se comer na hora em que se tira do pé, sob o sol tímido de julho no Sul. Bom pra cortar a gripe, diziam as avós.
O tempo assim se ia, no devagar-depressa da troca das safras. Bom mesmo era achar um pé temporão de qualquer coisa. Sabor de saudade.
Para os meninos, tinha escola. Pouca, que o serviço na roça era muito. Vencia-se a cartilha ou talvez um pouco mais, mas só para aqueles que tinham tutano. Era caso do Lúcio. O piá tinha mania de perguntador, de engasgar os tios e corar as tias. Aprendera a juntar as letras na folhinha da venda do Seu Beckenkamp e no Almanaque Sadol.
Na escola, essa tal de cartilha encucou o menino. Havia umas coisas que ele não entendia. Dizia que o Ivo viu a uva. Seu tio era o Ivo, e na casa dele não havia uva. Onde vira então? Na primeira oportunidade, não se sofreu:
- Tio, o senhor já viu uva?
- Olha, aqui no Cedro não. Que história é essa?
- O livro da escola diz que “Ivo viu a uva”. É mentira, né?
O tio engasgou. Ele não tivera escola, mas se está no livro é certo. É outro Ivo. Com certeza é de outro Ivo que estão falando. Quem haveria de conhecê-lo? Ele, um colono.
Lúcio deixou por isso mesmo. A desconfiança no livro aumentava. Havia também uma tal de maçã. A professora ordenou à classe um desenho. Era lição de casa. Ele nunca vira maçã. Escutara na missa que era fruta de Adão e Eva. Imaginou-a vermelha. Uma bergamota vermelha foi o que desenhou. A professora reclamou que aquela maçã estava muito esquisita. Falta de capricho! Sem recreio por uma semana.
O menino cismou com aquela tal de maçã. Precisava ver uma. Pegá-la, cheirá-la, mordê-la. Escreveu seu desejo em uma plaquinha de madeira. Depositou-a ao pé do cedro. Não custava: se o povo dizia que dava certo...
O castigo passou, o ano findou, o tempo de escola esgotava-se. Não esquecia do pedido. A plaquinha ao pé da árvore já fora soterrada por outras tantas. “O povo é pouco; os desejos são muitos.” – pensava ele. Como poderiam querer tantas coisas? Ele só queria a maçã.
Em um domingo de veranico de maio, Lúcio foi às escondidas tomar banho de rio. A correnteza estava forte demais. Não teve coragem de entrar. Sentou-se em uma pedra. Se tivesse a força daquele rio para ir-se embora dali... Não queria mais ficar à margem de seu desejo. Procurava uma motivação forte. Precisava de algo que o inundasse de coragem. Foi quando se deu a coisa mais curiosa jamais vista: um saco vermelho boiando. E mais outro. E outro. E vários.
Lúcio jogou-se na correnteza. Pegou um dos sacos. Nadava com um braço só. Engoliu muita água. Debateu-se. Perdeu o pacote. Recuperou-o. Voltou à margem vitorioso e exausto.
Examinou o pacote. Era feito de linha, como saco de batatas. Linha vermelha. Dentro, concluiu que eram frutas. Vermelhas, lustrosas. Seriam maçãs? Puxou o fio vermelho que fechava o saco. Pegou um dos frutos. Só poderiam ser maçãs. Seria possível, meu Deus? Sentou-se no saco e contemplou a fruta. Maçã, finalmente. O cheiro doce. Era vermelha, com uns pontinhos esbranquiçados. Aqui e ali uma listra mais alaranjada. A cor mais linda que ele já vira. Cheirava e cheirava. Seria assim o cheiro da paixão? Queria mordê-la, mas sofreava o instinto. Precisava vê-la, ter certeza da posse. A casca lisa contrastava com a solidez. Não sabia se seus dentes seriam capazes. Parecia muito dura. Criou coragem. Mordeu-a. A resistência. O gosto meio doce, meio ácido. Tudo tão indefinido quanto sua própria vida. Deu mais uma mordida. Um suco doce acompanhou o pedaço da fruta dura. Se quisesse o doce, precisaria vencer a resistência. A cada mordida, o doce superava o ácido. Assim seria o doce do beijo? Assim seria amar? Doce e ácido? Finalmente, Lúcio tinha a sua maçã. A fruta que expulsa do paraíso. A maçã era seu amor.
Quando chegava à semente, seu pai aproximava-se a cavalo. De cima do animal, já gritou que eram pobres, mas dignos. O menino haveria de devolver o saco ao motorista do caminhão que tombou lá em cima, na curva do rio. Era um lageano, mas boa gente. O pobre homem estava desesperado pela perda da carga.
Lúcio não reagiu. O pai levou o saco. O sonho. Ele ficou ali, olhando para a semente. Foi o que lhe restou de tão grande paixão. “Para tão longo amor, tão curta vida.”
O capítulo das maçãs
Era no tempo em que frutas davam em árvores do seu próprio quintal, ou – muito melhor – do quintal do vizinho. Em São José do Cedro, fruta que dava era caqui, laranja, goiaba. E bergamota – coisa de se comer na hora em que se tira do pé, sob o sol tímido de julho no Sul. Bom pra cortar a gripe, diziam as avós.
O tempo assim se ia, no devagar-depressa da troca das safras. Bom mesmo era achar um pé temporão de qualquer coisa. Sabor de saudade.
Para os meninos, tinha escola. Pouca, que o serviço na roça era muito. Vencia-se a cartilha ou talvez um pouco mais, mas só para aqueles que tinham tutano. Era caso do Lúcio. O piá tinha mania de perguntador, de engasgar os tios e corar as tias. Aprendera a juntar as letras na folhinha da venda do Seu Beckenkamp e no Almanaque Sadol.
Na escola, essa tal de cartilha encucou o menino. Havia umas coisas que ele não entendia. Dizia que o Ivo viu a uva. Seu tio era o Ivo, e na casa dele não havia uva. Onde vira então? Na primeira oportunidade, não se sofreu:
- Tio, o senhor já viu uva?
- Olha, aqui no Cedro não. Que história é essa?
- O livro da escola diz que “Ivo viu a uva”. É mentira, né?
O tio engasgou. Ele não tivera escola, mas se está no livro é certo. É outro Ivo. Com certeza é de outro Ivo que estão falando. Quem haveria de conhecê-lo? Ele, um colono.
Lúcio deixou por isso mesmo. A desconfiança no livro aumentava. Havia também uma tal de maçã. A professora ordenou à classe um desenho. Era lição de casa. Ele nunca vira maçã. Escutara na missa que era fruta de Adão e Eva. Imaginou-a vermelha. Uma bergamota vermelha foi o que desenhou. A professora reclamou que aquela maçã estava muito esquisita. Falta de capricho! Sem recreio por uma semana.
O menino cismou com aquela tal de maçã. Precisava ver uma. Pegá-la, cheirá-la, mordê-la. Escreveu seu desejo em uma plaquinha de madeira. Depositou-a ao pé do cedro. Não custava: se o povo dizia que dava certo...
O castigo passou, o ano findou, o tempo de escola esgotava-se. Não esquecia do pedido. A plaquinha ao pé da árvore já fora soterrada por outras tantas. “O povo é pouco; os desejos são muitos.” – pensava ele. Como poderiam querer tantas coisas? Ele só queria a maçã.
Em um domingo de veranico de maio, Lúcio foi às escondidas tomar banho de rio. A correnteza estava forte demais. Não teve coragem de entrar. Sentou-se em uma pedra. Se tivesse a força daquele rio para ir-se embora dali... Não queria mais ficar à margem de seu desejo. Procurava uma motivação forte. Precisava de algo que o inundasse de coragem. Foi quando se deu a coisa mais curiosa jamais vista: um saco vermelho boiando. E mais outro. E outro. E vários.
Lúcio jogou-se na correnteza. Pegou um dos sacos. Nadava com um braço só. Engoliu muita água. Debateu-se. Perdeu o pacote. Recuperou-o. Voltou à margem vitorioso e exausto.
Examinou o pacote. Era feito de linha, como saco de batatas. Linha vermelha. Dentro, concluiu que eram frutas. Vermelhas, lustrosas. Seriam maçãs? Puxou o fio vermelho que fechava o saco. Pegou um dos frutos. Só poderiam ser maçãs. Seria possível, meu Deus? Sentou-se no saco e contemplou a fruta. Maçã, finalmente. O cheiro doce. Era vermelha, com uns pontinhos esbranquiçados. Aqui e ali uma listra mais alaranjada. A cor mais linda que ele já vira. Cheirava e cheirava. Seria assim o cheiro da paixão? Queria mordê-la, mas sofreava o instinto. Precisava vê-la, ter certeza da posse. A casca lisa contrastava com a solidez. Não sabia se seus dentes seriam capazes. Parecia muito dura. Criou coragem. Mordeu-a. A resistência. O gosto meio doce, meio ácido. Tudo tão indefinido quanto sua própria vida. Deu mais uma mordida. Um suco doce acompanhou o pedaço da fruta dura. Se quisesse o doce, precisaria vencer a resistência. A cada mordida, o doce superava o ácido. Assim seria o doce do beijo? Assim seria amar? Doce e ácido? Finalmente, Lúcio tinha a sua maçã. A fruta que expulsa do paraíso. A maçã era seu amor.
Quando chegava à semente, seu pai aproximava-se a cavalo. De cima do animal, já gritou que eram pobres, mas dignos. O menino haveria de devolver o saco ao motorista do caminhão que tombou lá em cima, na curva do rio. Era um lageano, mas boa gente. O pobre homem estava desesperado pela perda da carga.
Lúcio não reagiu. O pai levou o saco. O sonho. Ele ficou ali, olhando para a semente. Foi o que lhe restou de tão grande paixão. “Para tão longo amor, tão curta vida.”
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