domingo, 27 de dezembro de 2015

Pelznickel - uma história de Natal

Pelznickel

Eu varria todas as folhas do pátio de terra batida. Era preciso recolher todas, todinhas. Nenhuma folha de cinamomo restaria no chão. Com meus braços curtos,  levantei a vassoura o mais que eu pude. Com toda a força do meu corpo magro, bati nos galhos das árvores. “Se quiserem cair, Donas Folhas, que caiam agora” – tive vontade de gritar. Mas precisava me comportar. Ainda mais em véspera de Natal, que o Pelznickel andava espiando tudo por aí. Eu tinha pena das crianças que não se comportavam. O Pelznickel nunca deixava por menos de umas varadas nas pernas de crianças boazinhas como eu, imagina nas malvadas. Eu até que achava bem-feito no começo. Depois me dava pena. Ainda mais do Morito, meu irmão. Ele era medonho, eu sei, mas esperava que neste ano não apanhasse tanto do Pelznickel. E que não fizesse cocô nas calças como no ano passado. Não sei agora se senti mais raiva ou nojo ou pena ou pavor dele.
                É claro que também era dia de carnear porco. Só me lembrei disso quando vi o Kallu, primo da mãe, despontando lá na curva dos trilhos. Ele era quem fazia o serviço. O pai dizia que ele era o melhor do mundo com uma faca na mão, a pena era que esse louco ainda morreria cedo, andando de pés descalços por aí. A Frau Schmidt profetizava que seria de bichas na barriga, igual àquela história do Jeca Tatu do Almanaque do Biotônico. Eu queria dizer a ela que a história não era bem assim, mas criança não podia se meter nas conversas dos adultos. Se eu ganhasse um tapa da mãe na frente de todo mundo, eu jurava que eu e ela não sairíamos mais na rua de vergonha.
                Será que quando o Kallu morresse não existiriam mais dias de carnear porcos? Sempre me perguntava. Eu odiava esses dias. Quando conseguia, fugia correndo pelos trilhos para não ouvir os gritos dos pobrezinhos. Está certo que eu comia a carne, porque criança tinha que comer tudo o que a mãe e o pai conseguiam botar no prato dela. Naquele dia, não fugiria pelo óbvio motivo do Pelznickel. Eu odiava o Kallu, seus dedões batatudos, sua adaga e seu facão na cinta. Eu não podia odiar o pai, que isso é passagem pro inferno. Eu tentava não ter pena do porco, que dizem que se alguém na casa tem pena o bicho sofre mais para morrer. Eu pensava firme, tentava desviar o pensamento, que esbarrava no Pelznickel e na certeza de algumas varadas nas pernas à noite.
                A mãe chamou pra dentro, ver o pinheirinho e o presépio terminados. A nossa casa era pobre, mas o pinheirinho e o presépio eram coisa de ricos, já que ganhávamos todas as peças do mostruário de um tio, que era representante comercial. Não fazia nem ideia do que fosse isso de representante comercial, mas parecia ser coisa fina. Pena que mulher não podia ser isso, se não eu até chegaria a querer ser isso quando fosse grande. Eu queria ser freira, mas o tio Germano me disse que costuram as partes das freiras, e elas fazem suas necessidades pela boca. Eu era muito nojenta para isso, que Jesus me perdoasse. Eu podia mesmo era ser professora, já que era muito inteligente.
                O pinheirinho ficou lindo, com todas aquelas bolas de vidro coloridas e aquelas velinhas penduradas. A mãe disse que  acenderíamos todas  quando o Pelznickel chegasse. Quem sabe assim ele não bateria tanto, pensei. E aquelas ovelhinhas no presépio, feitas de lã, eram novidades do mostruário do tio. Tudo tão lindo, tudo para o Christkindl.  E as vaquinhas, e os burrinhos, e os camelos, e os patinhos, e os gansos, e o porco lá fora berrando feito louco.
                Havia tanta coisa para fazer, tanta tarefa, tanto grito de “Valquíria, vem cá” que eu nem vi o dia passar. E o Morito? Só na sombra. Não queria nem ver a hora que o Pelznickel o pegasse. Ou queria? Não sei, só sei que a mãe chamou que era hora de tomar café e, depois, banho, para esperar as visitas bem cheirosa e penteada como toda a menina deve ser. O bom de café de Natal era mergulhar os toss no café com leite. Eu sempre preferi aqueles com açúcar e canela; o Morito, os pintados com merengue branco. Nem pelos toss nós brigávamos.
                Depois do banho, a mãe mandou que eu colocasse aquele vestido estampado de branco e preto que foi do enterro da vó Regina. Eu gostava especialmente do laço branco na cintura, que era bem parecido com o que havia no vestido da boneca de louça que eu ganhei da minha madrinha Odette. Eu já sabia que era sortuda de ter uma madrinha assim, e essa sorte me acompanha por toda a minha vida, na lembrança amorosa dela. Passou-me pela cabeça a ideia de vesti-lo do avesso, pois diziam que isso espantava as bruxas. Quem sabe não espantaria o Pelznickel? Mas não dava: todo mundo riria de mim.
                O Morito e eu sentamos na sala, junto com as primas, os primos, os tios e as tias que vieram de longe. Na mesinha do centro, havia pão de laranja, os toss mais bonitos, cuca de uva, cerveja feita em casa, spritzbeer. Os melhores pratos e copos da casa estavam bem arrumadinhos em um canto. O pai e a mãe começaram a acender as velinhas do pinheiro. Pressenti a chegada do Pelznickel. Olhei bem para a cara dos meus primos, medonhos que eram. A Theresa tinha lágrimas nos olhos. Neste ano, não sobraria varada para mim, pensei, de má que fui. Repreendi esse pensamento ruim com uma silenciosa e entrecortada Ave-Maria.
                Um bicho preto de carvão surgiu na porta da sala, batendo um sino na mão direita. Na esquerda, segurava um relho de cavalo e uma vara de marmelo. Na cabeça, um chapéu de palha tão esfarrapado e sujo quanto sua roupa. O medo não me deixava encará-lo. Olhei para baixo e vi os pés descalços e os dedões de batata ainda mais monstruosos do que os do Kallu. Ele já foi perguntando quem não se “gombortou”, forçando um sotaque, quem não via que era deboche? A Tia já foi dedurando os filhos, de ruim que ela era. O animal preto de carvão botou as três crianças em fila para passar o chicote. Quando estalou o chicote no ar, ele bateu em uma das velas. Só eu vi. Estava muda. Aterrorizada. Eu vi o fogo nas ovelhinhas de lã. Eu ouvi meus primos chorando. Eu queria, queria falar. Fechei meus olhos e comecei a gritar “Fogo, fogo”, só esperando a dor cortante e fina do chicote sobre os meus ombros. Mas não. Escutei os berros da tia, da mãe, do pai, senti o leve tremor das tábuas do soalho de madeira, com os passos apressados. O tio me tirou dali, levou para a área dos fundos. Lá, na bacia ao lado da talha, o Pelznickel lavava sua cara preta, revelando sua identidade. Não havia Pelznickel? Nunca houve? Era tudo mentira mesmo, como a Leoni, que nem enxerga direito, havia me segredado? Era só mais uma maldade do Kallu?

                Não havia mais apenas uma menina de vestido bonito e de laço de fita. Era alguém que começava a suspeitar das mentiras do mundo. 

quinta-feira, 15 de janeiro de 2015

Mãe, por que eu preciso ir para a escola?

MÃE, POR QUE EU PRECISO IR À ESCOLA?

PÉPE E SEU GRANDE OLHO IAM À ESCOLA.

PÉPE NÃO SABIA POR QUÊ.

SÓ SENTIA SUA GRANDE MOCHILA.

HAVIA MUITOS OUTROS OLHOS QUE IAM À ESCOLA.

LÁ, HAVIA OLHOS MIUDINHOS POR TODA A PARTE.

E GRANDES BOCAS, QUE FALAVAM, FALAVAM.

MAS PÉPE NÃO OUVIA. PÉPE NÃO TINHA OUVIDOS.

ÀS VEZES, PÉPE TAMBÉM NÃO TINHA CORPO.
ELE NÃO CONSEGUIA IMAGINAR O QUE OS OUTROS OLHOS IMAGINAVAM.
ENTÃO, SEU CORPO SE REPARTIA EM MIL PEDAÇOS.

PÉPE, ENTÃO, ERA SÓ OLHOS DE NOVO. E GRANDES: AS COISAS PERIGOSAS PODEM VIR DE QUALQUER LADO.

UM DIA, A MOCHILA FICOU AINDA MAIOR.

SEU OLHO-MÃE O ARRASTAVA PARA A ESCOLA.
O PESO DA MOCHILA ERA TANTO, MAS TANTO, QUE PÉPE SENTIU UM BURACO. DESCOBRIU QUE TINHA UMA BOCA.
A COCEIRA QUE VINHA DO FUNDO DO CORPO FEZ PÉPE JORRAR UMA PERGUNTA:


- MÃE, POR QUE PRECISO IR À ESCOLA?
A BOCA DA MÃE MEXIA. PÉPE NÃO TINHA OUVIDOS. NÃO CONSEGUIU IMAGINAR O QUE SAÍA DA BOCA DA MÃE.
FOI A VEZ EM QUE A CABEÇA DO PÉPE CAIU.
SÓ O CORPO DE PÉPE FOI À ESCOLA. MAS NÃO DEIXAVA DE SER PÉPE.
A PERGUNTA FEZ CRESCER BOCAS POR AÍ.
UM DELAS DISSE QUE PÉPE IA À ESCOLA PARA SER O PÉPE.
ESSA PALAVRA MÁGICA FEZ O CORPO E A CABEÇA SE UNIREM.
AGORA, PÉPE CONTINUAVA COM UMA GRANDE CABEÇA – COM DOIS OLHOS E UMA BOCA.
OS OLHOS DORMIRAM, E A BOCA PÔDE RONCAR FELIZ.
AMANHECEU OUTRO DIA DE AULA.
A MÃE E O PAI, E O VÔ E A VÓ ARRASTARAM PÉPE CABEÇÃO, OLHÃO REMELENTO, BOCÃO RONCADOR E CORPÃO DESMONTADO PARA A ESCOLA OUTRA VEZ.
VEIO OUTRA COCEIRA TÃO FORTE, QUE SALTARAM ORELHAS NO SEU CABEÇÃO.
ELE NÃO ESTAVA ACOSTUMADO COM AQUILO.
LÁ DO FUNDO, BERROU BEM ALTO PARA QUE SUAS ORELHAS O OUVISSEM:
- MÃE, POR QUE PRECISO IR À ESCOLA?
PÉPE ESCUTOU A SI MESMO.
NEM DEU PELA RESPOSTA DA MÃE, DO PAI, DO VÔ, DA AVÓ, DO AVÔ, DA PROFESSORA, DA VIZINHA, DO CACHORRO DA IRMÃ DA VIZINHA, DA LAVADEIRA DA PRIMA DA CUNHADA DA VIZINHA....
ERA MUITA GENTE FALANDO, MAS TANTA GENTE... QUE O CORPO DO PÉPE SE PARTIU EM MIL PEDAÇOS.
DEVAGAR, OS OUVIDOS NOVOS DO PÉPE OUVIAM, LÁ DE LONGE, VOZES QUE ATRAVESSAVAM SEU CORPO.
O CORPO SE UNIA NOVAMENTE.
A MÃE, O PAI, O AVÔ, A AVÓ, A PROFESSORA QUISERAM ARRASTAR NOVAMENTE PÉPE PARA ESCOLA.
ELE RESOLVEU UM CORPO E UMA CABEÇA E ATIRAR PARA DENTRO DE SI A PERGUNTA:
- POR QUE EU TENHO QUE IR À ESCOLA?
TODO SEU CORPO OUVIU. SUAS ORELHAS, SUA BOCA E CADA UM DOS SEUS MEMBROS E ÓRGÃOS SOUBE QUE OS OLHOS, GRANDES OU MIÚDOS, E AS BOCAS, GRANDES OU PEQUENAS, QUE ESTÃO NA ESCOLA, EM CASA E EM TODOS OS LUGARES SÃO APENAS BOCAS E OLHOS.

PÉPE AGORA TINHA UM ROSTO.

UM ROSTO E UM CORPO.

E UM ROSTO E UM CORPO DE OLHAR O MUNDO.

SUAS PUPILAS SE TORNARAM DOIS GRANDES PONTOS DE INTERROGAÇÃO.

E MUITOS PONTOS DE INTERROGAÇÃO TAMBÉM SURGIRAM EM CASA, PELAS PAREDES, PELOS LIVROS, NA TELA DO COMPUTACOCEIRA.

QUANDO AMANHECEU OUTRO DIA DE AULA, NINGUÉM ARRASTOU PÉPE.
ELE ESTAVA GRANDE DEMAIS PARA SER ARRASTADO.
ELE TINHA PASSOS DE LÉGUAS.
E FOI PARA A ESCOLA PORQUE SEUS OLHOS SÓ SABIAM ESSE CAMINHO DE IR.
O CAMINHO TAMBÉM ESTAVA CHEIO DE PONTOS DE INTERROGAÇÃO.
A ESCOLA ESTAVA CHEIA DE PONTOS DE INTERROGAÇÃO.
PÉPE, COM TODO O SEU CORPO, ABRIU A BOCA, E DELA SALTARAM TODAS AS INTERROGAÇÕES QUE ESTAVAM PRESAS EM SUA GARGANTA.

AS INTERROGAÇÕES DE PÉPE MISTURARAM-SE ÀS INTERROGAÇÕES  DA MARIA, DO EDUARDO, DO FÁBIO, DA ANA, DA CAROLINA, DA CAMILA, DO VÍTOR, DA GABRIELA, DA OUTRA GABRIELA, DA LETÍCIA, DO BERNARDO...

UM ARCO-ÍRIS DE INTERROGAÇÕES COLORIU OS CÉUS DA ESCOLA, DA CIDADE E DO MUNDO.

OS OLHOS DO PÉPE – E DE TANTOS OUTROS PÉPES – GOSTARAM DAQUILO.

E AS RESPOSTAS ERAM MUITAS, VINDAS DE MUITAS E MUITAS BOCAS.

OS OUVIDOS GOSTAVAM DE UMAS, NÃO GOSTAVAM DE OUTRAS.
O CÉREBRO FILTRAVA. O CORAÇÃO ESCOLHIA.

DA BOCA DE PÉPE, AINDA SAEM E SAIRÃO, SEMPRE, MUITAS PERGUNTAS.
MAS O QUE ELE SABE, DE VERDADE, COM TODO O SEU CORPO,  É QUE ESTÁ NA ESCOLA E NA VIDA PARA SER ELE MESMO.

PARA SER FELIZ. 

quarta-feira, 14 de janeiro de 2015

Fome de bola

UMA GORDA HISTÓRIA DE MAGRO TERROR

                Era uma vez um guri gordinho.
                Era uma vez um guri magrinho.
                Eles eram amigos.
                Os dois tinham fome de bola.
                Jogavam futebol todos os dias depois da aula no campinho do bairro onde moravam.
                Um dia, no meio do jogo, um outro guri deu um chute forte na bola, mas um chutão tão forte, que foi parar lá longe e quebrou a vidraça do casarão abandonado do outro lado da rua.
                Era um casarão velho, abandonado, mal assombrado, amorcegado, mal encarado. Aquela era a única bola que tinham. E a fome de futebol era muita.
                E agora? Quem seria corajoso que entraria lá?
                - Eu! – Gritou o gordinho.
                - Eu! – Gritou o magrinho.
                E lá se foram eles, roendo as unhas, batendo o queixo e tremendo os joelhos. Mas foram, os dois valentões.
                O portão rangeu, uma coruja piou, um morcego deu um voo rasante, o grande relógio sinistro badalou, o pó caiu, etecetera, etecetera, etecetera: aconteceu tudo aquilo que você já sabe sobre casas sinistras.
                Mas o que você não sabe é que, quando os guris acharam a sala da vidraça quebrada, tudo ficou ainda mais escuro. E esfumaçado. Ouviram risadas de bruxa.
                Os guris se abraçaram e apertaram os olhos. Quando o gordinho abriu o olho direito e o magrinho o esquerdo, a fumaça foi embora. Apareceu, lá longe, um ponto brilhante. Ele aproximava-se a toda velocidade. Ficava cada vez maior, retangular e metálico. Era atropelamento na certa.
                Grandes garras metálicas saíram do teto. Suspenderam os guris no ar, sobre a grande caixa metálica e brilhante. Outras garras vieram e colocaram óculos escuros nos dois amigos.
                As garras desceram os meninos. Eles ficaram cara a cara com o imenso objeto metálico, retangular e brilhante, que, na verdade, era uma grande, majestosa e tecnológica GELADEIRA.
                Que raios uma geladeira fazia ali?
                Uma voz anunciou:
                - Nessa geladeira vocês encontrarão tudo aquilo de que mais têm fome!
                Nã-nã-ni-nã-não: você pensou errado. O gordinho não imaginou pudins e sorvetes, tampouco o magrinho pensou em verduras e frutas. Nem o contrário.
                - Mas a gente só queria... – murmurou o magrinho.
                - A nossa bola de volta! – Completou o gordinho.
                A voz de robô trovejou:
                - Abram a porta ou sofram as consequências.
                Os dois guris abriram a porta ao mesmo tempo. Um vendaval gelado os despenteou. Surgiu no centro da geladeira a sua velha bola de guerra. Em três plocs, ela criou dois olhos e uma boca, que assoviou e ordenou:
                - Turma, é aqui mesmo! Avante!
                Da geladeira começaram a saltar outras bolas, bicicletas, patins, patinetes, livros, lápis de cor, giz de cera, cadernos em branco, tinta, pincéis, bolas de gude, mais bolas de futebol, livros, livros, livros, livros... E todos eles saltavam pela janela quebrada, direto para as mãos das crianças do bairro, que entenderam tudo.

                Era a vez e a coragem de matar a fome e a sede de novas aventuras.