Eu varria todas as folhas do pátio de terra batida. Era
preciso recolher todas, todinhas. Nenhuma folha de cinamomo restaria no chão.
Com meus braços curtos, levantei a
vassoura o mais que eu pude. Com toda a força do meu corpo magro, bati nos
galhos das árvores. “Se quiserem cair, Donas Folhas, que caiam agora” – tive vontade
de gritar. Mas precisava me comportar. Ainda mais em véspera de Natal, que o
Pelznickel andava espiando tudo por aí. Eu tinha pena das crianças que não se
comportavam. O Pelznickel nunca deixava por menos de umas varadas nas pernas de
crianças boazinhas como eu, imagina nas malvadas. Eu até que achava bem-feito
no começo. Depois me dava pena. Ainda mais do Morito, meu irmão. Ele era
medonho, eu sei, mas esperava que neste ano não apanhasse tanto do Pelznickel.
E que não fizesse cocô nas calças como no ano passado. Não sei agora se senti
mais raiva ou nojo ou pena ou pavor dele.
É claro
que também era dia de carnear porco. Só me lembrei disso quando vi o Kallu,
primo da mãe, despontando lá na curva dos trilhos. Ele era quem fazia o
serviço. O pai dizia que ele era o melhor do mundo com uma faca na mão, a pena
era que esse louco ainda morreria cedo, andando de pés descalços por aí. A Frau
Schmidt profetizava que seria de bichas na barriga, igual àquela história do
Jeca Tatu do Almanaque do Biotônico. Eu queria dizer a ela que a história não era
bem assim, mas criança não podia se meter nas conversas dos adultos. Se eu
ganhasse um tapa da mãe na frente de todo mundo, eu jurava que eu e ela não
sairíamos mais na rua de vergonha.
Será
que quando o Kallu morresse não existiriam mais dias de carnear porcos? Sempre
me perguntava. Eu odiava esses dias. Quando conseguia, fugia correndo pelos
trilhos para não ouvir os gritos dos pobrezinhos. Está certo que eu comia a
carne, porque criança tinha que comer tudo o que a mãe e o pai conseguiam botar
no prato dela. Naquele dia, não fugiria pelo óbvio motivo do Pelznickel. Eu
odiava o Kallu, seus dedões batatudos, sua adaga e seu facão na cinta. Eu não
podia odiar o pai, que isso é passagem pro inferno. Eu tentava não ter pena do
porco, que dizem que se alguém na casa tem pena o bicho sofre mais para morrer.
Eu pensava firme, tentava desviar o pensamento, que esbarrava no Pelznickel e
na certeza de algumas varadas nas pernas à noite.
A mãe
chamou pra dentro, ver o pinheirinho e o presépio terminados. A nossa casa era
pobre, mas o pinheirinho e o presépio eram coisa de ricos, já que ganhávamos
todas as peças do mostruário de um tio, que era representante comercial. Não
fazia nem ideia do que fosse isso de representante comercial, mas parecia ser
coisa fina. Pena que mulher não podia ser isso, se não eu até chegaria a querer
ser isso quando fosse grande. Eu queria ser freira, mas o tio Germano me disse
que costuram as partes das freiras, e elas fazem suas necessidades pela boca.
Eu era muito nojenta para isso, que Jesus me perdoasse. Eu podia mesmo era ser
professora, já que era muito inteligente.
O pinheirinho
ficou lindo, com todas aquelas bolas de vidro coloridas e aquelas velinhas
penduradas. A mãe disse que acenderíamos
todas quando o Pelznickel chegasse. Quem
sabe assim ele não bateria tanto, pensei. E aquelas ovelhinhas no presépio,
feitas de lã, eram novidades do mostruário do tio. Tudo tão lindo, tudo para o Christkindl. E as
vaquinhas, e os burrinhos, e os camelos, e os patinhos, e os gansos, e o porco
lá fora berrando feito louco.
Havia tanta coisa para fazer,
tanta tarefa, tanto grito de “Valquíria, vem cá” que eu nem vi o dia passar. E
o Morito? Só na sombra. Não queria nem ver a hora que o Pelznickel o pegasse.
Ou queria? Não sei, só sei que a mãe chamou que era hora de tomar café e,
depois, banho, para esperar as visitas bem cheirosa e penteada como toda a
menina deve ser. O bom de café de Natal era mergulhar os toss no café com
leite. Eu sempre preferi aqueles com açúcar e canela; o Morito, os pintados com
merengue branco. Nem pelos toss nós brigávamos.
Depois do banho, a mãe mandou
que eu colocasse aquele vestido estampado de branco e preto que foi do enterro
da vó Regina. Eu gostava especialmente do laço branco na cintura, que era bem
parecido com o que havia no vestido da boneca de louça que eu ganhei da minha
madrinha Odette. Eu já sabia que era sortuda de ter uma madrinha assim, e essa
sorte me acompanha por toda a minha vida, na lembrança amorosa dela. Passou-me
pela cabeça a ideia de vesti-lo do avesso, pois diziam que isso espantava as bruxas.
Quem sabe não espantaria o Pelznickel? Mas não dava: todo mundo riria de mim.
O Morito e eu sentamos na sala,
junto com as primas, os primos, os tios e as tias que vieram de longe. Na
mesinha do centro, havia pão de laranja, os toss mais bonitos, cuca de uva,
cerveja feita em casa, spritzbeer. Os melhores pratos e copos da casa estavam
bem arrumadinhos em um canto. O pai e a mãe começaram a acender as velinhas do
pinheiro. Pressenti a chegada do Pelznickel. Olhei bem para a cara dos meus
primos, medonhos que eram. A Theresa tinha lágrimas nos olhos. Neste ano, não sobraria
varada para mim, pensei, de má que fui. Repreendi esse pensamento ruim com uma
silenciosa e entrecortada Ave-Maria.
Um bicho preto de carvão surgiu
na porta da sala, batendo um sino na mão direita. Na esquerda, segurava um
relho de cavalo e uma vara de marmelo. Na cabeça, um chapéu de palha tão
esfarrapado e sujo quanto sua roupa. O medo não me deixava encará-lo. Olhei
para baixo e vi os pés descalços e os dedões de batata ainda mais monstruosos
do que os do Kallu. Ele já foi perguntando quem não se “gombortou”, forçando um
sotaque, quem não via que era deboche? A Tia já foi dedurando os filhos, de
ruim que ela era. O animal preto de carvão botou as três crianças em fila para
passar o chicote. Quando estalou o chicote no ar, ele bateu em uma das velas.
Só eu vi. Estava muda. Aterrorizada. Eu vi o fogo nas ovelhinhas de lã. Eu ouvi
meus primos chorando. Eu queria, queria falar. Fechei meus olhos e comecei a
gritar “Fogo, fogo”, só esperando a dor cortante e fina do chicote sobre os
meus ombros. Mas não. Escutei os berros da tia, da mãe, do pai, senti o leve
tremor das tábuas do soalho de madeira, com os passos apressados. O tio me
tirou dali, levou para a área dos fundos. Lá, na bacia ao lado da talha, o
Pelznickel lavava sua cara preta, revelando sua identidade. Não havia
Pelznickel? Nunca houve? Era tudo mentira mesmo, como a Leoni, que nem enxerga
direito, havia me segredado? Era só mais uma maldade do Kallu?
Não havia mais apenas uma menina
de vestido bonito e de laço de fita. Era alguém que começava a suspeitar das
mentiras do mundo.