quarta-feira, 27 de agosto de 2014

Cordulino, o espantalho

Para a Alice, que ainda vai chegar...
Para a Rafaela, que está aí,  já deixando o mundo bem melhor...
Para a Antônia, que eu quero tanto conhecer...


CORDULINO, O ESPANTALHO

Cordulino era um espantalho. Foi feito de palha, chapéu e roupas velhas para espantar os pássaros.
Mas ele não fazia nada disso.
Acontece que Cordulino era diferente. Ele tinha um coração.
E um cérebro.
E um grande amor pela terra e tudo que dela brota.
E um trato com os pássaros.
Era o seguinte: metade das sementes era para os humanos, metade para os pássaros. Simples assim. Justo assim.
Mas o dono da fazenda, Seu Valentim, não pensava desse modo:
- De que me adianta um espantalho que não espanta?
E resmungava sempre:
- Cordulino? Bobolino. Trouxolino, isso sim.
Um dia, seu Valentim tirou Cordulino da roça. Jogou o espantalho no galpão, junto com um monte de traquitanas velhas.
No escuro.
No frio.
No chão úmido.
Caído ali, Cordulino lembrava do sol, das nuvens, da chuva. Tinha saudade do vento na sua cara de palha, do cocô dos passarinhos na sua cabeça de chapéu.
Até que um dia...
... passinhos e risinhos finos iluminaram todo o galpão.
Eram Alice e Rafaela, as filhas do Seu Valentim:
- Olha o Cordulino! – exclamou Alice.
- Coitadinho – penalizou-se Rafaela.
As meninas resgataram-no do exílio. Inventaram rodas, rodopios, cantorias – toda a sorte de tonturas e doideiras. Cordulino tinha arrepios de alegria em sua palha embolorada.
 Seu Valetim flagrou a festa e trovejou:
- O que vocês querem com esse traste, meninas?
- Ah, pai, dá o Cordulino pra nós – pedichou Alice.
- A gente até sabe onde colocar – argumentou Rafaela.
O pai, apressado, fez um gesto qualquer com a mão e saiu na sua lida de sempre.
A mãe juntou-se as filhas. As três inventaram umas felicidades para Cordulino.
Agora, ele enfeita um canteiro enorme de sempre-vivas. Sempre vivas como o coração de Cordulino, acordado com o cheiro da terra, com os pássaros, com o sol, com as canções das meninas, que brotam do tempo, no espaço do bem querer.