quinta-feira, 11 de abril de 2013
Entre Scooby, Emílias, livros e TV
Uma das lembranças mais deliciosas, definitivas e definidoras da minha infância é a de cada vez que meu pai voltava de viagem. Sempre me trazia algo para ler: livros, revistas em quadrinhos. Nessa época, estava sendo exibida a primeira versão da Globo do Sítio do Picapau Amarelo. Nas leituras dos livros de Lobato trazidos pelo meu pai, pude perceber que ler era um prazer muito superior ao de assistir TV. Também aprendi que nem sempre a TV está certa.
Mais ou menos na mesma época, assistia ao desenho do Scooby Doo espiando atrás do sofá, medrosa que era. A televisão era em branco e preto. A memória desse tempo, no entanto, tem todas as cores às quais a satisfação de conflitos internos pode chegar. Aos poucos, passei do esconderijo para o sofá propriamente dito e, depois, para a frente do aparelho televisor, alcançando o botão seletor de canais e a tecla liga/desliga.
Hoje, meu filho ainda assiste ao Scooby. E já conhece Lobato. Ainda não é hora de adentrar o universo do Sítio do Picapau Amarelo sozinho — embora ele já folheie os livros e peça que eu lhe conte as histórias. Também já assistiu os DVDs do Sítio, a episódios do desenho animado e sabe que existe o site Mundo do Sítio. É aí que a situação se complica — tanto em relação ao Scooby quanto ao Sítio.
Quanto ao primeiro caso, nesses dias, meu filho deparou-se com um livro da série Scooby Doo, intitulado "O monstro da corrida de carros" (não fui eu quem comprei, nem ninguém daqui de casa, frise-se bem!). O meu incauto leitor pode pensar: “Que legal, o livro vem ao encontro do que ele gosta”. Até seria se... a história fizesse algum sentido, se não fosse do nada para lugar nenhum, se tivesse diálogos bem construídos... Enfim, se fosse um livro que não prestasse o desserviço de deixar brecha para que a criança — e, no caso, o meu filho! — conclua que a história da televisão é mais divertida que a narrada no livro. Além disso, as ilustrações, a caracterização dos personagens, a ancoragem em um ambiente mais do que conhecido para a criança faz com que ela se acomode — como, de resto, ocorre com todas as publicações desse tipo. A obra parte do conhecimento do mundo da criança? Claro que sim, mas não o expande: apenas retroalimenta as estereotipias e a postura passiva já fomentadas pela TV. Ou seja: não se trata apenas de não proporcionar novos conhecimentos à criança, mas de colocar em risco seu desejo por eles. Fico-me perguntando: com tantas obras ficcionais infantis de qualidade publicadas neste país, por que alguém gastaria dinheiro com material de qualidade tão questionável?
Quanto ao segundo caso, o do Sítio, pergunto-me se os produtos derivados do universo ficcional infantil lobatiano poderão ser bons mediadores de leitura. Quem é leitor de Lobato e assiste aos desenhos animados produzidos em 2011 ou acessa ao site Mundo do Sítio percebe facilmente que muito pouco restou dos originais. Emília não passa de uma boneca gritalhona facilmente confundível com as antigas Meninas Superpoderosas. E confundível é tudo o que a Emília, a dos livros, não é. Da mesma forma, os demais personagens foram reduzidos a meras caricaturas. Na tentativa de atualização e de internacionalização do Sítio, somada à produção motivada e sustentada por leis da Ancine, o Sítio mudou de endereço: fica em um lugar qualquer entre o Club Penguim (site da Disney) e algum desenho animado norte-americano. Especificamente em relação ao site, posso dizer que se trata de mais uma das formas de educação (ou treinamento?) para o consumo — como tão eficientemente o faz seu vizinho da Disney — travestida de discursos política e pedagogicamente corretos.
A relação, portanto, entre a infância, a literatura, a televisão e a web está longe de ser “mágica” ou propícia ao desenvolvimento pleno das capacidades das crianças. Não se trata, no entanto, de demonizar as duas últimas. Pelo contrário: devemos — pais e professores — aprender a tirar proveito delas no sentido não só de educarmos as crianças para o contexto que as cerca, educando telespectadores e usuários para a criticidade, mas também de usarmos os recursos desses meios como ferramentas didáticas. Felizmente, não faltam bons exemplos e boas ideias nesse sentido, como o já clássico uso educacional de blogs para a criação de fan fictions (ficções criadas por fãs de livros, de seriados) a partir de leituras feitas em sala de aula, como modo de resolver o velho problema de destinatário dos textos escolares. Afinal, é sempre tempo de ler literatura. É sempre tempo de arte. É sempre tempo de desenvolver-se plena e livremente.
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