segunda-feira, 7 de novembro de 2011

Sobre "Água Viva"

Reli "Água Viva" no sábado, noite adentro. Deu-me imensa vontade de copiar aqui o trecho que vai abaixo. Eu me leio nas páginas da Clarice (assim, "da", com artigo definido, como se fôssemos íntimas)...


Eis a Clarice Lispector que me lê, em "Água Viva" (p. 82, 83):


"Como te explicar? Vou tentar. É que estou percebendo uma realidade enviesada. Vista por um corte oblíquo.[...] Agora adivinho que a vida é outra. Que viver não é só desenrolar sentimentos grossos - é algo mais sortilégico e mais grácil, sem por isso perder o seu fino vigor animal. Sobre essa vida insolitamente enviesada tenho posto minha pata que pesa, fazendo assim com que a existência feneça no que tem de oblíquo e fortuito e no entanto ao mesmo tempo sutilmente fatal. Compreendi a fatalidade do acaso e não existe nisso contradição.


A vida oblíqua é muito íntima. Não digo mais sobre essa intimidade para não ferir o pensar-sentir com palavras secas. Para deixar esse oblíquo na sua independência desenvolta.


E conheço também um modo de vida que é suave orgulho, graça de movimentos, frustração leve e contínua, de uma habilidade de esquivança que vem de um longo caminho antigo. Como sinal de revolta apenas uma ironia sem peso e excêntrica. Tem um lado da vida que é como no inverno tomar café num terraço dentro da friagem e aconchegada na lã.


Conheço um modo de vida que é sombra leve desfraldada ao vendo e balançando leve no chão: vida que é sombra flutuante, levitação e sonhos no dia aberto: vivo a riqueza da terra.


Sim. A vida é muito oriental. Só algumas pessoas escolhidas pela fatalidade do acaso provaram da liberdade esquiva e delicada da vida. É como saber arrumar flores num jarro: uma sabedoria quase inútil. Essa liberdade fugitiva da vida não deve ser jamais esquecida: deve estar presente como um eflúvio.
 
Viver essa vida é mais um lembrar-se indireto dela do que um viver direto. Parece uma convalescença macia de algo que no entanto poderia ter sido absolutamente terrível. Só para os iniciados a vida então se torna fragilmente verdadeira. E está-se no instante-já: come-se a fruta na sua vigência". (LISPECTOR, Clarice. Água viva. Rio de Janeiro: Artenova, 1973. p. 82-83)

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