Reli "Água Viva" no sábado, noite adentro. Deu-me imensa vontade de copiar aqui o trecho que vai abaixo. Eu me leio nas páginas da Clarice (assim, "da", com artigo definido, como se fôssemos íntimas)...
Eis a Clarice Lispector que me lê, em "Água Viva" (p. 82, 83):
"Como te explicar? Vou tentar. É que estou percebendo uma realidade enviesada. Vista por um corte oblíquo.[...] Agora adivinho que a vida é outra. Que viver não é só desenrolar sentimentos grossos - é algo mais sortilégico e mais grácil, sem por isso perder o seu fino vigor animal. Sobre essa vida insolitamente enviesada tenho posto minha pata que pesa, fazendo assim com que a existência feneça no que tem de oblíquo e fortuito e no entanto ao mesmo tempo sutilmente fatal. Compreendi a fatalidade do acaso e não existe nisso contradição.
A vida oblíqua é muito íntima. Não digo mais sobre essa intimidade para não ferir o pensar-sentir com palavras secas. Para deixar esse oblíquo na sua independência desenvolta.
E conheço também um modo de vida que é suave orgulho, graça de movimentos, frustração leve e contínua, de uma habilidade de esquivança que vem de um longo caminho antigo. Como sinal de revolta apenas uma ironia sem peso e excêntrica. Tem um lado da vida que é como no inverno tomar café num terraço dentro da friagem e aconchegada na lã.
Conheço um modo de vida que é sombra leve desfraldada ao vendo e balançando leve no chão: vida que é sombra flutuante, levitação e sonhos no dia aberto: vivo a riqueza da terra.
Sim. A vida é muito oriental. Só algumas pessoas escolhidas pela fatalidade do acaso provaram da liberdade esquiva e delicada da vida. É como saber arrumar flores num jarro: uma sabedoria quase inútil. Essa liberdade fugitiva da vida não deve ser jamais esquecida: deve estar presente como um eflúvio.
Viver essa vida é mais um lembrar-se indireto dela do que um viver direto. Parece uma convalescença macia de algo que no entanto poderia ter sido absolutamente terrível. Só para os iniciados a vida então se torna fragilmente verdadeira. E está-se no instante-já: come-se a fruta na sua vigência". (LISPECTOR, Clarice. Água viva. Rio de Janeiro: Artenova, 1973. p. 82-83)
segunda-feira, 7 de novembro de 2011
terça-feira, 1 de novembro de 2011
Bolhas
Ana está atrasada. O vestido preto não está passado. Vai o lilás. Azar se ficar ridícula. Liga o chuveiro, soca a roupa usada no cesto transbordante. Com uma mão pega o xampu, com a outra o condicionador, com a outra o sabonete, com a outra o esfregão, com a outra fecha o registro, cruza com a outra para devolver o sabonete a seu lugar e...
....ao cruzar os braços, a espuma branca forma uma grande bolha, cujas bordas sustentam-se entre os seios e os braços de Ana. É uma fina, frágil tenda transparente e delicada que se sustenta, tremeluzente, no ar. A surpresa colorida imobiliza Ana. A frágil tela projeta-se, colorida, no banho apressado. Ana prende a respiração. Não quer estragar. Baixa um pouco mais a cabeça. Espia através da bolha. Dali, parecem ridículas as unhas vermelhas dos pés. A bolha faísca cores interessantes, que pintam, divertidas, os muitos fios de cabelos escandalizados sob o tapete de borracha. Ana olha para seu colo, grandes manchas vermelhas. Só agora sente o quanto a água do banho estava queimando. Que sabonete era aquele? Sorve o cheiro infantil: pegou, por engano, o sabonete da filha mais nova. A bolha pulsa num alerta para a iminência de estourar. Ana não quer, não suporta a ideia da perda da leveza furta-cor. Ana lembra do compromisso, do atraso, da pressa. Se fosse mentirosa, diria que a bolha, contornando seus seios, tem formato de coração. Mas quase. Não sabe que forma é aquela. Também não sabe nomear todas as cores que brincam de esconde-esconde na fina superfície que filtra os raios de sol que entram pelo vidro da janela do banheiro. Fica feliz em não saber. Ana surpreende-se com a constatação de que bate sol na janela do banheiro da casa em que mora há dezessete anos. Os braços cansam da estranha posição cruzada. O gosto de bolha tem fundo salgado, repuxa a língua. Ana entende que a bolha não é para sempre. Como fez aquilo, não sabia. A bolha é filha da pressa. Ana é a bolha, Ana faz parte da bolha, a bolha é o centro de Ana. Se ela não estivesse com pressa, seus braços não teriam se cruzado, nem ela usaria o sabonete da filha, tão cheiroso, com tanta espuma, tão generoso...Ana encanta-se com a bolha. Mas não sabe se está triste. Mesmo se ela não tivesse pressa, a bolha deixaria de existir. Mas a bolha está lá, agora. A bolha é o tudo na pungência do nada. A bolha e Ana.
A bolha se vai, de repente, a beleza pelo ralo. A bolha existiu? Nem Ana. A Ana que descruza os braços não é mais a mesma Ana que abriu o chuveiro. E ela sabe disso, sempre sabia, encarregando-se de não saber. Não se seca. Usa seu vestido lilás. Quer andar descalça na grama, mas fica pra depois. Uma coisa a cada vez. A Ana que cruzará a porta também não será a Ana que voltará no fim daquele dia.
....ao cruzar os braços, a espuma branca forma uma grande bolha, cujas bordas sustentam-se entre os seios e os braços de Ana. É uma fina, frágil tenda transparente e delicada que se sustenta, tremeluzente, no ar. A surpresa colorida imobiliza Ana. A frágil tela projeta-se, colorida, no banho apressado. Ana prende a respiração. Não quer estragar. Baixa um pouco mais a cabeça. Espia através da bolha. Dali, parecem ridículas as unhas vermelhas dos pés. A bolha faísca cores interessantes, que pintam, divertidas, os muitos fios de cabelos escandalizados sob o tapete de borracha. Ana olha para seu colo, grandes manchas vermelhas. Só agora sente o quanto a água do banho estava queimando. Que sabonete era aquele? Sorve o cheiro infantil: pegou, por engano, o sabonete da filha mais nova. A bolha pulsa num alerta para a iminência de estourar. Ana não quer, não suporta a ideia da perda da leveza furta-cor. Ana lembra do compromisso, do atraso, da pressa. Se fosse mentirosa, diria que a bolha, contornando seus seios, tem formato de coração. Mas quase. Não sabe que forma é aquela. Também não sabe nomear todas as cores que brincam de esconde-esconde na fina superfície que filtra os raios de sol que entram pelo vidro da janela do banheiro. Fica feliz em não saber. Ana surpreende-se com a constatação de que bate sol na janela do banheiro da casa em que mora há dezessete anos. Os braços cansam da estranha posição cruzada. O gosto de bolha tem fundo salgado, repuxa a língua. Ana entende que a bolha não é para sempre. Como fez aquilo, não sabia. A bolha é filha da pressa. Ana é a bolha, Ana faz parte da bolha, a bolha é o centro de Ana. Se ela não estivesse com pressa, seus braços não teriam se cruzado, nem ela usaria o sabonete da filha, tão cheiroso, com tanta espuma, tão generoso...Ana encanta-se com a bolha. Mas não sabe se está triste. Mesmo se ela não tivesse pressa, a bolha deixaria de existir. Mas a bolha está lá, agora. A bolha é o tudo na pungência do nada. A bolha e Ana.
A bolha se vai, de repente, a beleza pelo ralo. A bolha existiu? Nem Ana. A Ana que descruza os braços não é mais a mesma Ana que abriu o chuveiro. E ela sabe disso, sempre sabia, encarregando-se de não saber. Não se seca. Usa seu vestido lilás. Quer andar descalça na grama, mas fica pra depois. Uma coisa a cada vez. A Ana que cruzará a porta também não será a Ana que voltará no fim daquele dia.
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