Aos 62
Ana precisava deter o tempo. Reter e expandi-lo. Não era só ela que pensava assim. As capas de revistas diziam. As figuras nos outdoors. Os olhares inquisidores. Não sabia se era ela que pensava assim ou se pensavam por ela. Tanto faz. Não discutia. Era preciso, simples assim. Mas não era dada aos excessos: a natureza fora-lhe generosa. Ela só se incumbira de esconder os poucos fios de cabelos brancos, quase imperceptíveis em sua loirice natural. Visitou, como de costume, o cabeleireiro. Retoque nas raízes, coisa pouca. Deus, para ela, morava nos detalhes.
Ficou bem, ela achou. Mas não tinha tempo de achar mais. Ela era muitas em uma. Precisava pagar uma conta já em vias de vencer. Teve uma leve raiva da greve dos carteiros. Ela fora funcionária pública durante tantos anos. Na metade do caminho em direção à agência bancária, exasperou-se com a lembrança: os bancários também estavam em greve. Precisava pensar rápido – e pensou. Orgulhou-se da rapidez de seus pensamentos: a agência lotérica era ali pertinho.
Uma quadra depois, Ana avistou longa fila. Constatou que era a da lotérica. Não se fez de rogada: os seus 62 anos valeriam, afinal, para algo imediato. Sabia que era bonita – bonita porque mulher. Ergueu a cabeça, equilibrou-se sobre os saltos, retiniu as pulseiras. Passou ao lado da fila, perguntou ao guarda pela fila de idosos. O homem a olhou de cima a baixo, demorado. Braço flácido, estendeu, tímido, o dedo indicador.
Ana encarregou-se de não perceber. Divertiu-se, no fundo. Posicionou-se na fila indicada, muito menor. O rapaz que era o primeiro da fila ao lado comentou algo com a moça do caixa. Ana ouviu um mal-humorado “pergunta pra ela”. Engraçadíssimo. Sentia que todos a olhavam. Parecia jovem, sim, não era isso que queriam? Ouvia fragmentos de conversa. Ela não poderia ter mais de 60 anos. Outra voz fez questão de dizer mais alto que ela só poderia ter problemas mentais. O orgulho inicial deu vez à vergonha. Uma moça magrinha saiu de trás da fila, esbarrou propositalmente em Ana, quase lhe derrubando a bolsa. Foi até a moça do caixa. Denunciou, retumbante: havia pessoas furando a fila. A loirosa ali não tinha idade para a fila dos idosos. A moça do caixa repetiu a resposta: pergunta pra ela.
Pergunta pra ela, pergunta pra ela. A moça magrinha não estava só no coro dos descontentes. Na frente de Ana, só um senhorzinho já sendo atendido. Ana pensava: “Só mais um pouquinho, só mais um pouquinho. É meu direito, pombas!”.
Quando chegou a sua vez no caixa especial, com calma disfarçada, segurando a mão para não tremer, escorou-se no balcão, tirou carteira e contas. A moça da fila ao lado sorriu:
- Mas a senhora não parece mesmo ter sessenta anos.
Foi a gota d’água. Ana sacou a carteira de identidade. Colocou bem junto ao rosto da vizinha de caixa:
- Sabe fazer conta? Dois mil e onze menos um mil, novecentos e quarenta e nove, quanto dá? Hein? Hein? E eu é que sou loira, né?
Olhou pra trás, fuzilando o povo. Alguém gostaria de tentar calcular de cabeça?
A atendente sorriu para ela, solidária na beleza e na cor das madeixas: a senhora é mesmo muito bonita. No que Ana agradeceu, juntando a simpatia possível no momento. A atendente devolveu o troco, cochichando um inaudível “vai firme”.
E Ana foi. Sacudindo os cabelos. Caminhando ligeiro. Pensando rápido. Aos 62 anos de idade.