quinta-feira, 17 de março de 2011

Céu de escritores

Scliar chega ao céu. Ao lado de São Pedro, Mário Quintana o aguarda e o saúda:


-   Estás adiantado  para os teus compromissos! - diz, jocoso, o poeta.

Scliar, como sempre, responde à altura:

- E dá para chegar atrasado à verdadeira imortalidade?

As risadas e os abraços são interrompidos por um cabisbaixo assessor de São Pedro:

- Sr. Jaime Moacyr Scliar, por favor, queira se sentar ali.

O assessor aponta a Scliar uma salinha e alguns sofás, como a de um consultório médico. São Pedro, bonachão, interrompe:

- Ô, Cyro, eu falei que não concordava com esse trote...

O assessor levanta a cabeça: Scliar o reconhece:

- Cyro Martins, que satisfação!

Ao que outro responde:

- O Pedrão aí não entende de trote médico! Eu queria te deixar ali sentado um tempão, com revistas velhas, esperando, esperando o julgamento...

Quintana intervém:

- Mas não achamos justo o trote. O Scliar nunca fez isso com ninguém. Vamos logo ao julgamento...

- Julgamento? – sorri, educado, Scliar.

- É, é sim... Vem por aqui. – Conduz Quintana.

Na sala do tribunal, a assistência sorri e abana para Scliar. Na primeira fila, sorridentes, estão sentados Caio Fernando Abreu, Barbosa Lessa, Alcides Maia, Josué Guimarães, Dyonélio Machado... Na segunda fila, Jorge Amado, Machado de Assis, Guimarães Rosa, Monteiro Lobato, Cecília Meireles... Quintana conduz Scliar a uma cadeira, de frente para a mesa do juiz.

O juiz adentra o recinto. Scliar o reconhece:

- Erico!!! Quero dizer, Sua Excelência Erico Verissimo!

O juiz esforça-se para não rir:

- Seja muito bem-vind... er... Quero dizer... Podem sentar. – O juiz titubeia. – Já estão sentados. Que venham os advogados.

Um advogado se apresenta, em reverência:

- Só estou eu aqui, Excelência, seu mui fiel criado... Nem campereando no inferno se achou uma alma que quisesse ser da acusação.

Scliar não se contém:

- Simões Lopes Neto, só pode ser!!!

O advogado sufoca uma risada. O juiz inicia:

- Vamos aos fatos. Família?

- Exemplar pai e marido, Excelência. – Diz o advogado.

- Amizades? – Interroga mais uma vez o juiz.

- Muito a constar. Vamos chamar as testemunhas? – pergunta o advogado.

O juiz olha a lista. Não, muita gente. Só da parte da defesa. Resolve:

- Não, não precisa. Nem os jornais falam mal dele. Era um exemplo de bonomia. Vamos para o próximo item: qualidade das obras literárias?

O advogado entrega um dossiê em 20 volumes. Resenhas, artigos e críticas positivas.

- Além do quê – como é de saber corrente – ele era imortal da Academia Brasileira de Letras...

O juiz suspende a sessão:
- Parece que um juiz precisa olhar as provas. É assim que se faz? Estão todos dispensados. - Decide Verissimo.

Mas ninguém sai do lugar. Scliar chama por Quintana:

- Por gentileza, o que faço agora?

- Espera, ué... Uns dois mil anos... - Diz o anjo poeta, com as bochechas vermelhas.

- Dois mil anos... – Suspira, desanimado, Scliar.

Quintana conduz Scliar pelo corredor. Quando está saindo da sala, a plateia não aguenta e  explode em risos. Chega Manuel Bandeira correndo e diz:

- Brincadeirinha! Entra, Scliar, aqui você não precisa pedir licença.

2 comentários:

  1. Oi, Prof. Que texto emocionante. Tem cara de infância, quando a gente imagina as pessoas queridas que se foram indo parar no céu... Uma bela forma de homenagear o Scliar.
    Beijos.

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  2. Oh, Luh, deve ter sido bem assim mesmo. Eu tive um contato com o Scliar (pra mim Sclyar, porque é diferente, é + "aru") qdo tinha 16 anos, em uma Feira do Livro lá em Santa. Era uma pirralha e mesmo assim senti aquela coisa tdo de bom no sorriso e no olhar dele. Ele consegue (não conseguia, consegue, pois é imortal e não é por causa da ABL não) falar com gente de 8 a 80 anos.

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