segunda-feira, 25 de outubro de 2010

Domingueira III

Este é para quem lembra da letra do jingle antigo do Fantástico.

O fantástico domingo de Ana


O jingle do Fantástico não provocou em Ana o costumeiro frio na barriga. Foi pior. Uma tontura, uns engulhos... mal conseguiu chegar ao vaso. A tremedeira depois do vômito não a deixou levantar. O frio do piso a incomodava – não mais do que a situação vexatória. Vergonha própria. Tamanha mulher com medo de segunda-feira. Domingo, para ela, era a antevéspera do inferno. Depois que o inferno vinha, os diabos nem eram tão grandes e vermelhos assim. Mas e se nem sempre fosse assim? A dúvida tornava, a cada domingo, os capetas em gigantes mais colossais.

Cambaleando, zonza, a mãe a consolava:

- Pelo menos botou pra fora. Não passa mal amanhã.

Quando ela passava pela sala, a irmã mais nova, deitada no colo do noivo, retruca:

- Sorte tua: foi-se a macarronada. Se não, amanhã, terias que malhar... E isso tu não fazes, né, maninha?

Os risinhos maldosos da irmã e do futuro cunhado deram-lhe vontade de voltar ao banheiro... Não venceu. Vomitou novamente - nos pés do cunhado. A irmã se enfureceu:

- Sua gorda porca! Só porque tu não arranjas ninguém não precisa espantar meu noivo. – O rosto da irmã estava verde de raiva. – Ô, mãe, olha a Ana aqui, que nojo.

Enquanto a confusão instaurava-se na sala, o pai a puxou ao quarto. Trouxe-lhe chá e remédio. Cobriu-a com um edredom, como fazia na infância. Ela se sentiu aliviada. O pai fez menção de ligar a tevê, mas ela fez que não...

- Era só para relaxar, Ana, ver uma bobagem no Fantástico antes de dormir...

O estômago retorceu-se novamente. O remédio contra náusea já começava a fazer efeito: um soninho... Sobressaltou-se: e se o chefe não tivesse recebido o relatório? E se tivesse selecionado o endereço de e-mail errado? E se o relatório estivesse todo errado? E se os cálculos estivessem errado? Se tivesse feito um terrível erro de concordância? O jingle pedia: “Olhe bem, preste atenção”. Não, ela nunca olhava bem. Não o suficiente. Era imensa, inadequada, exagerada no que não precisa. Nunca sabia o que era essencial ou acessório. Nenhum acessório lhe caía bem. Nada servia. Viu uma vendedora da loja, que consultara o estoque para ver se havia algo que servisse. “Nada na mão, nesta também” – continuava o jingle. Lembrou do médico charlatão que prometera o emagrecimento rápido. “Nós temos mágicas para fazer”. Só o que diminuiu foi sua conta bancária. “Milhares de sonhos só para sonhar”. O cunhado asqueroso que lhe apresentou um primo encalhado e psicopata, “Miragens que não se pode contar”. E aquele colega novo que entrou no escritório? Tão lindo, simpático, sensível. Até conversou com ela como se ela fosse gente. “Numa fração de um segundo qualquer emoção agita o mundo.” Mas saiu com a colega loira de farmácia. A loirosa sabia que ela gostou dele. Nem remorso sentiu. E ainda espalhou. “Riso, criado por quem é mestre”. Vão casar, os dois. O que ele vê nela, aquela burra? “Sexo, sem ele o mundo não cresce”. Mas eles, os colegas, ainda pagariam caro pelas brincadeiras sem graça. “Guerra, pra matar e morrer / Amor, que ensina a viver”. Qual nada. O tempo se encarregaria de levar tudo, “Foguete no espaço / Rumo ao infinito / Provando que tudo / Não passa de um mito”. Mágoas e rancores vão para o espaço. O efeito do Plasil “É fantástico”.

Ela só queria ser feliz. Provar que conseguiria conquistar alguém. Com 35 anos, “da idade da pedra” à beira de ser titia, qualquer alguém, “Ao homem de plástico”. Nada como ser sincera consigo mesma: “é o show da vida”. “É fantástico”.



segunda-feira, 4 de outubro de 2010

Domingueira II

   A vida deve ser mais fácil para quem vive próximo de acidentes geográficos, pensou ela. Era mais fácil, sim. Haveria de ser. Não era mais um pensamento de domingo à noite. Se o dia estava estressante, tudo bem, o mar ficava a duas quadras. Se a sogra encheu o saco, nada de mal atingiria: dez minutos de bicicleta e estaria à beira de um cânion, vento fresco batendo na cara, segurando o dedo de Deus. Se o caso fosse de gente invejosa e chata, era só esperar o final do expediente. Caminharia descalça à beira da lagoa, areia grossa massageando os pés, marolinhas para refrescar a alma. E o verde. O verde... pastai, pastai olhos meus.


    O fato é que ela morava na grande cidade média. E era domingo. E tudo voltaria à média. Até sexta, teria inveja das vacas que ela via de relance, no caminho para um dos trabalhos, ruminando ao sol.

    Cogitou ligar para um dos chefes, demitir-se naquele instante, nem ir na segunda. Sorriu ao pensar em dormir até as 10. Olhou os gêmeos no berço. Não, e a faculdade deles, quem vai garantir? O emprego do marido era bom, dava conta. Mas e se até lá não desse mais? E se não arrumasse outra coisa? E se... Um dos gêmeos choramingou, era bom atender logo, antes que acordasse o outro.

    Fez contas mentalmente. Era boa nisso. Pensou em se demitir do outro emprego. Mas aquele era legal, os colegas gente-fina. Não, não dava. Quer dizer, até daria, mas e o medo? E se... E se?

   Pensou em conversar com o marido. Ele queria ver a última reportagem do Fantástico. As mesmas notícias. Sempre. Aquela musiquinha punha-lhe os nervos em bolas de fogo. Fez um chá. Não, o marido não quis. A tal da reportagem não vinha nunca. Sobre o quê, mesmo? De novo? Os empregos, os chefes, os colegas, as pilhas de problemas para resolver. E se...

   A reportagem veio, o marido nem prestou atenção, trabalhando no laptop. Muito menos ela. E se ela fizesse de conta que dormia, o fingimento resultaria em sono? Tentava. O marido não desligava aquele troço. E se ela jogasse contra a parede? Não, muito caro.

   E se ela pedisse para ele desligar?

   - Benhê, não vai dormir?

   ...

   E se ela pedisse mais diretamente? Não era hora de discutir. Isso tiraria de vez a possibilidade do sono. E se ela pedisse uma redução de carga horária no emprego chato? Não, mais reduzida do que está não daria. E se eles a mandassem embora? Tomariam a decisão por ela, fácil assim. E se a família se mudasse para uma cidade mais calma, perto de um acidente geográfico maravilhoso? O mar, que saudade do mar.  Poderiam mudar de ramo, o marido e ela, fazer algo menos estafante. Mas... e a faculdade dos pimpolhos, daqui a 16 anos? E se não houvesse mais faculdade federal? E se eles não conseguissem passar no vestibular? E se... E se?

  Um dos gêmeos choramingou de novo. Febre. O outro também. O marido largou o laptop e dormiu. A noite prometia.